Quando Felipe acordou na manhã de quarta feira, precisou pensar duas vezes antes de sair da cama: ele não precisava levantar cedo, não precisava vestir uma roupa decente ou fazer a barba... Encarou o teto de seu quarto: podia ficar dormindo.
Levantou-se e caminhou até a sala vestindo pijamas: todos ainda dormiam. Achou que deveria fazer algo útil com o seu tempo, então pegou o notebook e começou a digitar o que seria um texto de apresentação aos alunos:
"Então, meus queridos e estimados alunos, eis aqui, o nosso novo normal...
Achou o início promissor e impactante, coçou a barba e encarou a tela praticamente em branco... Como as palavras pareciam fugir-lhe da ponta dos dedos as vezes?
... a partir do momento em que somos obrigados a alterar o curso normal de nossas vidas e portanto, de nossas aulas, saímos de nossa zona de conforto, e eis que me lembro de uma importante frase para este momento "ninguém cresce na zona de conforto", e com isso, meus queridos, quero deixar claro que por mais abominável e assustadora que seja essa experiência para cada um de nós, ela certamente nos fará evoluir e nos levará à um crescimento, como pessoas, como humanos.
A sociedade como um todo, lida com situações desse tipo há milhares de anos: pensem nos livros de história, quantas "pragas' assolaram as sociedades? Por quantas vezes viveram-se situações de surtos, epidemias, pandemias... Desta vez, estamos vivendo a história, literalmente. Em cinco, dez anos, estarão lembrando destes tempos que vocês terão vivido.
Existem diversas teorias a respeito de tudo o que está acontecendo, mas eu, como professor de todos vocês, me obrigo a fazer-lhes um alerta e um pedido:
Alerta: Nem tudo o que lemos / vemos / ouvimos é verdade! Chequem as informações, usem o raciocínio, o senso crítico.
Pedido: Não compartilhem notícias / imagens / áudios e conteúdos em geral dos quais vocês não têm plena confiança da veracidade.
Em momentos como esses, a responsabilidade, a prudência e o respeito, são ainda mais essenciais"
Felipe analisou o que escrevia: estava ficando realmente bom. Lucia apareceu vestindo um robe de tecido floral, os cabelos amarrados em um coque alto em cima da cabeça:
- Bom dia - ela diz sorrindo - vou fazer café, você quer?
- Eu sempre quero café - ele sorri para ela - bom dia, à proposito... Você dormiu bem?
- Sim - ela responde - no fim das contas, acabei apagando logo depois do jantar - ela olha para a cozinha - lavou a louça?
- Sim - ele diz - lavei, enxuguei e guardei e agora - ele aponto o dedo na direção dela - me deve uma, e eu estou querendo comer quindim...
- Quindim, Felipe? - ela grita - Sabe o trabalho que dá?
- Aposto que tanto como fazer seu serviço - ele indica a cozinha.
- Você não é um bom irmão...
- Como é?- ele larga o notebook sobre a mesa e corre em direção à irmã lhe fazendo cócegas.
- Pára, Felipe - ela implora, chorando de tanto rir.
- Repita comigo - ele a encara - "você é o melhor irmão do mundo todo".
- Você é o melhor irmão do mundo todo - ele a solta - e o mais boboca também.
Lucia segue para a cozinha e Felipe volta ao trabalho: sempre havia sido daquele jeito, desde que ele se lembra. Lucia era dois anos mais velha do que ele, mas sempre fora moleca demais, então, logo que ele fez seis anos, ele passou a sentir-se tão responsável por ela quanto seria se fosse ele o mais velho.
Durante toda a vida, ele a defendera de tudo e de todos, e quando ela fora embora para estudar, a coisa que mais sentiu falta foi seu irmão, afinal, ninguém estava lá para tirar ela do meio das encrencas que costumava se meter, e principalmente: ninguém cozinharia para ela ou prepararia um chá quando o dia ficava pesado, difícil ou triste. Apesar de ser a senhorita independente e de sempre se esforçar para resolver tudo, ao lado de Felipe ela simplesmente mudava e o deixava resolver tudo.
Felipe lembrava-se bem daquilo: Lucia era quem sempre tinha um ideia, um plano... Era quem sempre queria mais, a que nunca estava satisfeita com nada: inquieta, perturbadora da paz e do sossego da casa. Arrastava móveis de madrugada, pintava paredes e corria na chuva, e quando as coisas ficavam feias, aninhava-se ao lado dele em busca de colo e aconchego e esperava tudo passar.
"Tudo vai passar" escreveu ele em um post it e colou em seu planner. Havia lido aquela frase tantas vezes que parecia grudada em sua mente...
- Tá fazendo o que? - pergunta Lucia entregando a caneca de café.
- Escrevendo - ele responde.
- Esclarecedor - ela debocha.
- Texto de apresentação do projeto para os alunos - ele indica a tela do computador - quer ler?
- Não - ela responde - sem chance. Nada de mensagens inspiradoras e motivacionais - ela revira os olhos - tá tudo uma m***a e ainda vai ficar pior.
- Não pode ser tão pessimista - ele a repreende.
- Realista.
Ela levanta-se e sai da sala, deixando-o novamente com seus pensamentos e a tela do notebook:
"Quero que pensem nessa situação de agora, na situação de seus estudos, como se ela fosse permanente, e assim, levem à sério tudo o o que estamos realizando, e não somente nas tarefas, mas nesse interação que vamos criar em meio ao caos. Que sejamos sinceros, verdadeiros e que deixemos de lado todas as amarras e os julgamentos, todos os status, definições e pré-conceitos, que o Grupo do Zoo seja um lugar para que cada um de vocês seja exatamente quem é.
Ainda quero acrescentar, afim de aproveitar que vocês todos estão atentos e pedir, que todos vocês, cumpram com as medidas de prevenção determinadas pelos órgãos competentes, que se cuide e que cuidem dos seus. A família ainda é o nosso maior tesouro, preservem!
E agora, a partir deste momento, vocês deverão começar a pensar em seus "avatares" aqui no grupo: escolham cuidadosamente um animal, este será você daqui para frente, pensem nas características dele, no comportamento, e escolham algo que vocês acreditam se identificar.
Fiquem atentos, alunos, de agora em diante, o Grupo do Zoo está online! "
O professor leu novamente seu texto: estava bom. Preparou para enviar aos seus alunos por email e programou o envio para às dez horas da manhã. Espreguiçou-se e foi com o seu notebook para a varanda, ao menos poderia escolher um home office que lhe parecesse mais adequado sempre que quisesse. No fundo ele sabia que tinha pouco tempo para lançar a primeira tarefa de maneira satisfatória, então começou preparando o formulário: nome completo do aluno, email, animal escolhido... características do animal escolhido, pontos positivos e negativos.
Primeira Tarefa
"Incialmente, preciso que preencham a ficha de inscrição em anexo. Ela será confidencial e servirá para que eu possa avaliar os alunos e conceder as notas corretamente. Os três últimos itens devem ser preenchidos novamente no formulário da plataforma. Caso tenham dúvidas, podem me chamar. Não se esqueçam que eu quero características reais dos animais - pesquisem - e utilizem apenas o que acreditam que se aplica a cada um de vocês. O nosso primeiro encontro síncrono ocorrerá amanhã, às dez horas da manhã. Estejam presentes e com a tarefa realizada"