Meus olhos ameaçam saltar das órbitas, tão crescente é o meu espanto.
— Como você ainda pode estar vivo? — questiono, estranhando o modo como a minha voz soa mais aguda do que o normal. — E por que diabos essa noite infernal só consegue se tornar ainda pior?
Uma atividade frenética se inicia em minhas costas. Passageiros desesperados e que se unem para avaliar o policial morto, seguranças da própria estação que surgem das portas laterais como se durante todo aquele tempo estivessem esperando por uma entrada triunfal, e aqueles que ignoram o chão decorado com um generoso rastro de sangue e desatam em uma corrida às cegas, afim de fugir de qualquer futura confusão e deparando-se com mais corpos. Não os culpo, fugir é exatamente o que eu deveria ter feito.
Minha política de sobrevivência sempre foi bem clara: Se algo terrível está acontecendo, e não é problema meu, não devo me envolver. O meu erro foi hesitar com receio de que isso pudesse prejudicar ainda mais o meu repentino estado de choque. O homem ferido aos meus pés tem parte na culpa deste fato.
Por falar nele, após um silêncio que não dura mais do que um batimento cardíaco, ele resmunga um longo gemido. Aquele olho que antes me observava, agora está fechando-se com pálpebras trêmulas.
— Apenas me ajude a levantar, não deixe que cheguem perto... Preciso... Não posso chamar a atenção. — Sua voz é rouca, carregada de vulnerabilidade e dor. Mesmo escutá-lo falar é agoniante demais para mim.
Aparentemente, além do rosto gravemente machucado e do visível ferimento sangrento na altura do seu estômago, as pancadas não se resumem apenas às partes superiores do corpo do sujeito. Uma grande elevação em sua coxa esquerda é assombrosa o suficiente para retorcer as minhas entranhas em uma crescente náusea, e nem mesmo o tecido apertado do jeans escuro pode esconder o modo como o seu joelho direito parece compactado ao chão, esmagado sob tecidos e carne.
A surra, pelo que me permito analisar, é parte de um sobressalente pacote de humilhação a qual este homem fora submetido. Seja lá em quais problemas ele se meteu, não consigo enxergar em que mundo uma punição onde cada pedaço do seu corpo é reduzido a estilhaços pode ser aceito como um p*******o.
Diante de tamanha brutalidade, sou tomada por uma forte torrente de compaixão. Mesmo que a minha conduta siga um caminho contrário às decisões que tomo, dessa vez, sinto que o certo está longe de ser ignorar e seguir adiante. Por isso, eu me abaixo com cautela e com o mesmo cuidado e atenção, levo a mão do desconhecido até o meu ombro, posicionando-o melhor para que eu possa apoiá-lo.
Quando o homem está de pé e instável como um recém-nascido, percebo que a minha intenção de apoia-lo pela axila em meu ombro não funcionará corretamente. Talvez a sua altura alcance um metro e noventa e cinco — ou os ombros largos, que sustentam músculos fortes e volumosos, tensionados sob as vestimentas pesadas, sirvam de ilusão para complementar o seu tamanho — mas, comparado aos meus um metro e sessenta, e a compleição franzina com que sou agraciada, tenho certa dificuldade para controlar as minhas próprias caretas de dor.
Desconcertantemente frio e trêmulo, ele arrasta uma das pernas e se equilibra naquela que tem o joelho estranho. O desconhecido inspira com dificuldade e abre o olho saudável.
— Me ajude a chegar em qualquer lugar isolado... Longe de... Longe da atenção das pessoas.
Um relativo número de pessoas acaba de descer a íngreme escadaria de ferro, seus semblantes variando desde a previsível preocupação a uma curiosidade desmedida. Seguindo o meu olhar, o homem parece inquieto, e se apoia em mim com tanta força que os seus dedos — mais curvados e inflexíveis do que o normal — cavam dolorosamente o meu ombro.
— Tente não partir nenhum dos meus ossos também, camarada — resmungo, sem saber onde devo colocar as mãos para manter o seu equilíbrio. Decido tocar em sua cintura, onde um de seus braços já está dobrado com a esperança de conter o sangue que continua escorrendo vívido e espesso. — Não posso tirar você daqui sem chamar a atenção.
Ele tosse com força, sacolejando-se por inteiro, e atrai a atenção de um par de curiosos. Tento me mover de modo que a sua fraqueza não seja motivo de alerta, contudo, o seu peso quase me leva ao chão também. Inclinando o tronco para frente, cospe o sangue aos meus pés e resmunga algo inaudível. Penso que talvez tenha falado em outra língua, mas, neste momento, não possuo total controle da minha inteligência para saber de onde vem este rosnado.
— Apenas continue a andar, moça bonita. Faço o meu próprio caminho quando estiver fora daqui. — Ele murmura, colando o seu forte e quebradiço corpo ao meu. Arrisco dizer que há uma sombra de humor n***o em suas palavras.
E assim, tomamos um caminho oscilante diante de olhares assustados e prudentes. Ninguém nos para, nem mesmo a polícia, cuja viatura estacionada em frente a entrada da estação não passa despercebida pelo homem ao meu lado. Não deixo de notar o modo que o seu corpo estremece em um rompante de dúvida conforme traçamos um caminho na calçada iluminada por luzes neon e abrigando algumas pessoas confusas. Eu ignoro tudo o que não tem relação ao meu trajeto. Os olhares alheios, no entanto, queimam em nossas costas mesmo após uma esquina de distância.
O assobio do vento invernal sussurra em meu rosto, os toques tão suaves quanto as gentis carícias de uma mãe. Apesar de refrescante, isso não afasta o fogueamento em minhas pernas e braços cansados. Meu corpo inteiro lateja de dor.
— Eu não aguento mais... — reclamo baixinho, tropeçando em meus próprios pés. O homem cambaleia e cai ao meu lado, estatelando no chão como uma fruta podre. Eu tento sentir pena da sua queda, mas os meus músculos rangem pelo esforço e eu não me permito ignorar o orgulho. — Você é grande demais, maldição!
Frustrada, arrasto uma mecha de cabelo para longe do rosto, e assisto ao estranho gargalhar com sangue nos dentes e no queixo, enquanto se arrasta para uma vitrine escura que exibe sombras de manequins usando lingerie.
— Engraçado... — O desconhecido puxa o cabelo de madeixas castanhas com um movimento letárgico das mãos, exibindo à luz da lua cada lombada em seu rosto machucado. — Não é a primeira mulher que diz isso — ele consegue lançar um sorriso maroto.
Mordo a minha língua, segurando a vontade de retrucar a piada obscena. Preciso me lembrar de que é um milagre que ele esteja sequer usufruindo da capacidade de pensar após perder tanto sangue. E homens, seja em qualquer situação, nunca perdem a oportunidade de exalar sua testosterona.
— Por que vocês, homens, mesmo a beira da morte não sabem abrir a boca para nada além de falar asneiras? — bato em minha própria testa. Sei que só estou descontando em um homem ferido a minha própria amargura, e tenho consciência do quão patético isso aparenta ser.
Em resposta o homem guincha de dor, e ainda assim, seus lábios se curvam naquele mesmo sorriso com sugestão de malícia.
— Costumo abrir a boca para outras coisas, moça, mas não acho que consiga te mostrar agora.
Não me dou ao trabalho de fazer nada além de revirar olhos.
— Você vai ficar bem sozinho? — pergunto, mesmo que a resposta seja óbvia. Sem ajuda médica imediata, esse homem não tem qualquer chance de sobreviver.
Desfazendo o sorriso, ele cerra os dentes, ondulando o corpo em mais uma trovoada de dor.
— Sim, eu vou. Obrigado, moça bonita. Ninguém... nunca... Obrigado.
Aquela sensação estranha me detém a um passo de distância. Deixá-lo morrer naquela estação, ou abandoná-lo aqui não se difere tanto assim. Então, eu retorno para o seu lado e me agacho, cutucando-o para ter a certeza de que pode me escutar. Ele não abre o olho, mas resmunga no seu idioma brusco e rouco.
— Vou chamar um táxi e levar você para o hospital. Isso e nada mais, fui clara?
Sua cabeça escorrega para ambos os lados do vidro temperado em que se apoia, e ele respira com ainda mais dificuldade.
— Sem hospital, moça. — Pede, arquejante. — Sem polícia.
Suspiro, contrariada.
— Não vou chamar a polícia, só quero que você tenha uma chance de sobreviver, sim? Não estou em um dia apropriado para assistir a morte de alguém.
O homem amolece contra a vitrine, e mesmo sem abrir o olho, gira a cabeça em minha direção. Não sei se fico contente que a sua audição ainda é perfeita ou se me preocupo ainda mais com a sua integridade física. Não tenho respostas para nenhuma de minhas perguntas, e isso me irrita.
— Como pode explicar estes machucados sem mencionar aquilo que não deveria ter visto, moça? — Mesmo sem querer, tenho que concordar. Ele ri com um chiado. — Não se preocupe, eu estou bem agora.
Essa afirmação, solta em um murmúrio fúnebre, apenas me preocupa ainda mais.
Sempre que uma pessoa tem um problema que não pode lidar, ela recusa a ajuda e desdenha de atenção dizendo que está bem. Talvez muitos anos com o rosto enfiado em livros de ficção tenham me preparado para lidar com aquilo que os seres humanos da vida real tentam esconder dentro de si.
E a leitura que faço dele me obriga a tomar uma atitude que talvez ele não considere certa, mas a partir do momento em que a responsabilidade de alguma situação é dada para mim, não consigo deixar de dar tudo o que tenho para resolvê-la. É uma obsessão com o perfeccionismo, e aquilo que define quem sou.
Lançando um olhar de esguelha para o semblante vazio de expressões e tomado por bolhas de uma severa agressão, pesco o meu celular no bolso do casaco e disco o meu número pessoal para emergências. Roendo as unhas, espero e espero... Alguns carros passam com fortes faróis pela rua escura, ainda não sou atendida. Encosto na vitrine de lingerie e tento relaxar os músculos tensos, e ainda não sou atendida.
Quando estou prestes a desligar, a linha fica muda e de repente uma voz grogue e arrastada me cumprimenta.
— O número para qual você ligou pertence a uma mulher de TPM e muito sonolenta, o que significa que se um meteoro não estiver atingindo a terra neste exato momento, eu vou procurar você e te matar. Deixe a sua mensagem após o bip. Bip.
Prendo o riso. — Major, sou eu.
Marjorie rosna baixinho.
— Sim, Betty, é para isso que o identificador de chamadas existe. Qual é o nome do meteoro e qual é a distância em que ele vai passar pela terra?
Bato os pés no chão, grunhindo. — Não tem meteoro nenhum! Eu preciso da sua ajuda. E meio que é um caso de vida ou morte.
A linha emudece outra vez, e eu estou quase achando que Marjorie pegou no sono quando escuto o farfalhar de tecidos.
— Onde você está? — ela pergunta menos adormecida. Suspiro, emocionada.
— Eu estava próxima da Back Bay Station quando umas coisas aconteceram...
Enquanto falo, poupando o máximo de detalhes que posso disfarçar, chaves ressoam pelo outro lado da linha e Marjorie tem a respiração ofegante quando finalmente me pergunta:
— Samuel, cara-de-pastel, não está com você?
Engulo o misto de ódio e tristeza que chegam na borda do meu emocional e luto para que isso não transpareça na minha voz.
— Ele não está aqui, mas preciso da sua ajuda para salvar a vida de um cara estranho.
Marjorie fica em silêncio por um momento torturador, enquanto o homem no chão treme com tanta força que mesmo sem tocá-lo consigo sentir o seu sofrimento. Convencida de que o frio da noite não é nada comparado ao frio da morte, retiro o meu casaco e embalo ao redor do homem.
— Por que você sempre tem que se meter em coisas esquisitas e ligar para mim? — A pergunta retórica deixa a sua voz um pouco mais abafada e divertida, posso imaginá-la sorrindo com leve tristeza. — Eu sinceramente espero que esse cara seja uma personificação de um Deus musculoso e bronzeado ou eu mesma mato ele.
Antes de desligar, eu me sento ao lado do estranho e passo a mão na frente do seu rosto para ter certeza de que ele respira. Meus dedos aquecem gradualmente e eu encolho a mão. — Acho que se você demorar um pouco mais, nunca saberemos se ele já foi um cara bonito — sussurro, sentindo o ar frio da noite levar as minhas palavras para longe.