Regras Do Prazer

Capítulo 2

Parada obedientemente atrás da linha vermelha, encaro a faixa amarela um pouco a frente dos meus pés, e inspiro lentamente, ignorando os perigosos e brilhantes trilhos abaixo de onde estou. Mesmo sem saber para onde ir, permaneço de pé na plataforma vazia da estação de metrô, sabendo que voltar sozinha para casa não me renderá nada além de mais lágrimas e inconformação. Preciso de tempo, e preciso me esquecer desta noite, aliviar a tensão com uma passagem para qualquer outro lugar.

O telão marca meia-noite e meia. São apenas cinco minutos até que o último metrô apareça, e não há ninguém além de mim, pouco menos de dez pessoas espremendo-se em seus pesados casacos, um policial, um faxineiro, e o atendente na central de atendimento ao usuário.

Toda esta quietude me deixa em alerta, como se nada disso fosse certo. Aperto meu sobretudo ao meu redor, aconchegando-me no tecido delicado e quente. Minhas lágrimas ainda me fazem o favor de umedecer a barra da minha vestimenta, incomodando os pontos em que tocam em minha pele. O inoportuno pela minha própria estupidez me distrai de um ponto vital em toda a confusão que minha vida acaba de se tornar: Como posso avisar aos meus pais que não preciso mais de um vestido bordado e uma dúzia de pombas brancas, já que não haverá casamento algum?

Admito que apesar de nunca ter tido um relacionamento saudável com a minha família, devo tudo o que sou a eles. Se a minha infância conturbada ainda se impregna nas decisões que tomo, posso dizer que sou moldada com minhas trágicas lembranças. Tenho uma tolerância maior para lidar com situações difíceis, desde que não envolvam diretamente aquilo que ainda me assombra.

Eu tento me convencer de que a traição de Samuel é só a ponta do iceberg. Repito como um mantra de que para que eu me afunde completamente, é preciso muito mais do que apenas uma transa com uma v***a qualquer. Contudo, aquela garotinha sabe que só estou mentindo para mantê-la calma e distraída. Ambas sabemos que nem sempre é necessário um motivo para uma recaída.

Um olhar de um estranho? O esbarrão proposital de uma mulher bonita? A falta de educação de um colega de trabalho? Um pesadelo onde acordo com frio e pegajosa pelo suor? Não há uma razão concreta. Subitamente estou além do limite onde posso esperar pelo trem, em cima da faixa amarela, olhando fixamente para os trilhos.

O ar abandona o meu corpo, e me pego ofegante, desesperada por meu fôlego perdido. Meus olhos ardem e crepitam a minha visão, forjando sombras psicodélicas que zombam da minha existência. Meus dedos enrolam-se em minhas mãos, fechando-as em punho. Estou em crise.

Eu sei uma escapatória suficiente para não dar explicações. Conheço a saída perfeita para não passar pela vergonha de encarar a minha família negligente e os meus falsos colegas de trabalho. Seria tudo mais fácil se eu apenas desistisse. Se eu apenas deixasse de me enganar com conquistas fúteis e vazias. Um emprego de sucesso? Por favor, ninguém sobrevive apenas para o trabalho. 

Tenho uma única pessoa que me ama da melhor forma que pode, e ela é uma amiga tão maluca quanto eu. Compartilhamos a sensação de procurar pelo o que nem sabemos o que é. Rimos das tragédias e debochamos de nossos próprios medos, somente para nos desfazermos em lágrimas na solidão da noite.

O vazio que existe dentro de mim é antigo como a voz de uma entidade poderosa. Ela chama o meu nome, acalenta a minha alma, e me dá coragem para mais um passo.

— Ei, você! — Grita uma voz distante.

Mais um passo, eu me abaixo e pulo nos trilhos. Só mais dois minutos. Cento e vinte segundos.

— Moça, saia já daí! — Repete a voz.

Continue, objeta uma voz fantasma em meus ouvidos.

— O que é que...

Um estrondo me faz pular e tropeçar em meus próprios pés. Eu caio com todo o peso do meu corpo, como se durante o meu transe toda a minha massa tivesse se transformado em pluma e retornado como chumbo. A pancada da queda me deixa surda de um dos ouvidos, e aquela sensação de alerta se choca com o meu corpo novamente.

Estou arrepiada, arfando e de olhos arregalados. Meu subconsciente percebe antes de mim que a minha surdez não é resultado de uma queda tão inocente, pois outro estrondo soa das minhas costas, e, ainda ajoelhada nas ferragens desconfortáveis, eu me viro para averiguar.

Gritos propagam-se em ondas confusas dentro da minha cabeça. Por mais persistente que eu seja para me colocar de pé, eu não consigo e caio de joelhos novamente. Ergo o olhar ao máximo que posso, e vejo os poucos passageiros que esperavam pelo trem correndo em disparada para a saída. O policial jaz ensanguentado no chão, seus olhos arregalados e opacos. Um pouco distante, um homem empunha a sua arma para as costas de um dos passageiros fugitivos e dispara.

O estrondo me ensurdece outra vez, ampliado pelo eco da estação vazia. Eu corro e me agacho rente a borda dos trilhos, tomada pelo ímpeto de sobrevivência. A ironia não deixa de me afetar.

— Não deixe testemunhas, i*****l. Vá atrás deles! — uma voz rouca e áspera ordena.

Passos se misturam a outros tantos, e a escadaria de metal range pela corrida apressada daquele que presumo ser o homem armado.

— Traga este filho da mãe até aqui. — Um som rastejante aproxima-se perigosamente de onde estou. Cubro meus lábios com uma das mãos e prendo a respiração, rezando para que os painéis de propagandas que refletem todo o entorno da estação não me coloquem em foco. — Você pensou que podia escapar de mim, bastardo?

Uma gargalhada empoeirada, maldosa e desagradável, reverbera em meus ossos, e eu finalmente ganho coragem para olhar o reflexo nos painéis do outro lado. Um homem careca e com uma imponente jaqueta de couro se inclina sobre um corpo estatelado no chão. Outros dois homens permanecem em suas costas, olhando cada um para um lado. Um deles até mesmo se aproxima da faixa amarela, mas não se dá o trabalho de olhar para baixo. Quase suspiro aliviada, porém, quando o corpo estirado no chão geme e se move, a angústia me domina outra vez.

— Eu pensei que você soubesse onde estava se metendo, Hollis. Você só pode parar de trabalhar para mim quando eu disser que não preciso mais de você.

O homem no chão não responde. Não demonstra qualquer sinal de vida além de resmungos incoerentes e tentativas de se afastar. Ele não consegue fazer com que os homens parem com as hostilidades, e quando o homem armado retorna, meu estômago está embrulhado com o gosto amargo da bile. Temo pela vida do desconhecido, e ainda mais pela minha, pois sei que não sairei daqui até que o grupo tenha a certeza de que não há qualquer sobrevivente para assistir o seu crime.

— Mas sabe o mais engraçado, amigo? Eu acabei de decidir que não preciso mais dos seus serviços.

Outro estrondo que me ensurdece, outro tiro. E o choque me assombra de tal forma que começo a tremer compulsivamente, desesperada e aflita. Mesmo quando tento me controlar para não chamar a atenção, meus pés que descansam nos trilhos tremem em uma velocidade absurda. Engulo o choro e forço a entrada de ar para os meus pulmões, ainda cobrindo minha boca com mãos trêmulas.

O tremor em meu corpo se torna mais intenso, incontrolável. O choque dá lugar a compreensão em questão de instantes, e eu repentinamente giro a minha cabeça para a esquerda, onde a luz dos faróis do metrô correm a toda velocidade ao meu encontro.

O ranger dos freios me atordoam completamente e eu não sou mais capaz de controlar o meu horror. Morrer esmagada não me parece uma boa solução neste momento, mas levar um tiro tão pouco parece atrativo para uma sexta-feira a noite. Apavorada e instável como uma vara verde, decido enfrentar as consequências de ser uma bisbilhoteira que estava no lugar errado e na hora errada, e salto para longe dos trilhos em tempo de sentir a lufada de ar bagunçando os meus cabelos com a velocidade com que o metrô se aproxima.

Caio de costas no piso gelado, e levo um tempo de entorpecimento para me lembrar dos homens, mas não os encontro em qualquer lugar que possa procurar. Não há qualquer sinal de que estiveram aqui, ignorando o policial morto a poucos metros da pilastra principal, um passageiro caído nos primeiros degraus da escadaria e o homem desacordado ao meu lado.

Estou ofegante e de olhos presos nas luzes do teto, tentando encontrar qualquer explicação plausível para o inferno desta noite. Minha confusão não me permite reagir de outra maneira que não seja chorar e rir. Ou chorar de tanto rir, a esta altura, não faço ideia do que estou fazendo comigo mesma.

O metrô segue para a sua parada, e subitamente eu sei que pode ser considerado puro egoísmo, ou autopreservação, mas como única testemunha viva, não tenho como provar de que não sou culpada e penso seriamente na possibilidade de fugir. Além do mais, negar ajuda é crime de qualquer maneira. Ficar ou não ficar, me causará problemas que não posso suportar. Tenho apenas cinco segundos de uma coragem insana para descobrir o meu próximo passo.

Lembro-me do quão perdida já estou, e no quanto isso pode ficar pior com uma ficha na polícia, e novamente estou agindo como uma covarde. Fico de pé num salto, ajeito a minha roupa e meus cabelos desgrenhados com uma das mãos. Minhas reações contraditórias só provam a intensidade da minha instabilidade emocional momentânea. Não posso ajudar a polícia quando eu mesma não consigo ajudar a resolver a minha própria vida.

Por outro lado, posso me esquecer dessa noite sem qualquer dificuldade. Na verdade, esquecer os problemas é a única coisa que realmente sei fazer. É para isso que existe o vazio dentro do meu peito; para guardar os acontecimentos que me recuso pertinentemente a me lembrar.

O metrô ainda não está com suas portas abertas, e eu me sinto aliviada de ter um tempo para fugir. Minha covardia é tão grande que me deixa alheia ao meu sobretudo preso em alguma coisa no chão, e mesmo puxando bruscamente uma das laterais com a mão, a ponta não se solta.

Irritada, giro sob meus calcanhares e faço menção de me abaixar, e é quando me dou conta de que o homem baleado e com o rosto formado por ondulações — certamente da surra que levara — tem aberto um de seus inchados e arroxeados olhos.

O olho é embalsado por uma grotesca olheira, duelando com a cor de sua íris de um verde intenso, salpicado de tons âmbar. Eu arrisco dizer que esta é a cor mais linda que tenho visto em toda a minha vida, e não deixo de notar como os cabelos castanhos e longos do sujeito adornam perfeitamente a sua beleza genética. Além disso, não posso dizer se os lábios rachados em uma extensa cicatriz, e o nariz torcido em um ângulo estranho fazem jus ao que posso ver. De qualquer modo, não sou capaz de admitir a minha covardia neste momento. Não enquanto ele mantém este olhar sobre mim.

Gritos esganiçados me fazem ter a certeza de que os passageiros que chegavam do metrô perceberam a situação, e minha consciência grita contra a minha vontade de sair correndo. Apesar da aparência vulnerável e da quantidade absurda de sangue cobrindo a sua roupa, o homem não me solta, e talvez devo agradecê-lo por não me deixar tomar uma atitude tão desumana.

Mas eu não tenho tempo de fazer qualquer coisa. Num instante sua mão que me prende escorrega para o chão, e a tatuagem n***a de uma cruz entre seus dedos polegar e indicador encantam os meus olhos com a mesma intensidade que o seu olhar é capaz.

Ainda olhando para mim, o desconhecido com rosto desfigurado busca o ar em uma respiração anasalada, e, cuspindo sangue e saliva, implora:

— Não me deixa morrer, por favor.