Capítulo 1
Rapunzel era o meu conto de fadas favorito na infância.
Parte da minha estúpida inocência acreditava que não havia nada mais bonito do que esperar por anos até que o amor verdadeiro fosse capaz de me encontrar.
No dia tão esperado, eu certamente estaria penteando os meus cabelos diante de um espelho adornado por marfim, e quando o meu príncipe me alcançasse na torre mais alta de um castelo esquecido, seus cabelos dourados reluziriam com o mais puro cor de ouro. Ele me salvaria daquela incessante espera e, tomando-me em seus braços com todo o cuidado com que se colhe uma flor, galoparia-nos sobre o seu cavalo branco entre as relvas e planícies sem fim.
O roteiro era perfeito, eu só precisava encontrar alguém que pudesse segui-lo da minha maneira.
Um fato é que Rapunzel não deixou de ser o meu conto favorito por ter compreendido que não havia nada mais machista do que exigir que uma garota indefesa esperasse por seu salvador, gastando o seu tempo com futilidades femininas. Muito menos por ter esperado por um estereótipo que jamais habitaria o mundo real.
Não.
Eu não acredito em contos de fadas porque encontrei o meu príncipe de cabelos dourados e o que ele me ofereceu não foram flores e um amor eterno, mas uma avalanche de escuridão e dor, varrendo parte da minha existência com a sua falta de reciprocidade.
Ele não seguiu o roteiro, e eu tampouco fui boa o suficiente para exigir a sua atuação. O meu castelo esquecido desmoronou sobre a minha cabeça, e os estilhaços derrubaram a minha coroa e deturparam o meu título real.
Talvez eu tenha custado a acreditar que nunca fui uma princesa, e que meus cabelos negros como uma noite sem estrelas não eram fortes o bastante para sustentar a minha queda. Ou, quem sabe, meu príncipe de cabelos dourados não era nada mais do que um homem cuja existência tornara-se a minha fonte de apoio.
Um erro, eu admito. Todos sabem que não se deve buscar a felicidade baseando-se em uma relação repentina.
Eu não sabia, até hoje.
Desta forma, aqui estou eu, diante de uma íngreme escadaria de ferro, tendo a companhia de lojas fechadas que são enegrecidas pelas sombras da madrugada iminente. Estou escutando um eco que vagueia da atividade que se segue lá embaixo, olhos embaçados pelo choro reprimido e estômago retorcido em um forte nó. Meus cílios úmidos grudam-se nos fios de cabelos soprados pelo vento, e atrapalham a minha visão borrada e ondulante. Sei que já não estou em minha sã consciência.
O mundo parece girar em uma frequência diferente, afundando-se em meus pés firmemente presos na calçada brilhante. Com dedos rijos e trêmulos, eu me seguro no corrimão que me fere como um ferro em brasa. Eu m*l posso respirar através de meus pulmões comprimidos em uma ardente inspiração. A única certeza que tenho é que eu não deveria ter chego tão cedo naquele bar.
Não deveria ter aberto a porta dupla com a mais serena esperança de encontrar o meu futuro esposo dividindo drinks com nossos colegas de trabalho. Nem subido as escadas até o primeiro andar daquele pub com vista para o centro e decoração pacífica, ansiosa para contar-lhe sobre o meu maravilhoso dia de trabalho como Presidente da Morgan Enterprises.
Samuel nunca reclamava quando eu começava a falar, parecia que em muitas vezes não me escutava claramente, mas nunca me pedia para calar a boca. Sua paciência lendária e o senso de humor foram as primeiras características que bambearam o meu coração, e eu nunca soube de fato o que o atraíra em mim de modo tão inesperado.
Não que eu me considere feia ou refém da minha própria auto-estima. Tenho um porte físico bem comum para alguém que não pratica esportes com muita frequência. O que traz qualquer destaque para o meu rosto são os meus olhos que oscilam entre azul e verde, mas que, de perto, desvanecem o seu brilho por um singelo tom de dourado ao redor de minhas pupilas. Sou abençoada com resquícios de um esplendor hereditário, embora meus traços sejam medíocres por eles mesmos.
Minha fisionomia sempre fora confusa demais para ser compreendida.
Ignorando o meu drama íntimo, continuei o trajeto que me levaria até o topo do pequeno bar. Meus pensamentos autodepreciativos deslizaram para longe num suave suspiro da brisa em meus cabelos, e eu abri o meu melhor sorriso ao encontrar a mesa dos meus supostos amigos. Mas, pouco menos de dois metros de distância dos guinchos e das gargalhadas ébrias, eu congelei.
O murmúrio prendeu-se em minha garganta e eu engasguei, apertando a mão contra a ponta da mesa mais próxima. Em um estalo de lábios separados, Samuel se virou e os olhos azuis arregalaram-se ao me ver de pé, antecipada em vinte minutos do horário correto para a saída do trabalho. Levantando-se lentamente de onde estivera sentada, estava a secretária do seu setor, de lábios inchados e expressão atordoada.
Eu estava travada.
Meus joelhos não me obedeciam e minha mão se recusava a soltar a mesa. Nenhum dos dois se dignara a me oferecer qualquer desculpa. Eles não se moveram. Não por estarem tão paralisados quanto eu, mas, simplesmente por terem sido interrompidos durante um momento que eu estava convencida de que não era o primeiro.
A expressão culposa no rosto de cada um dos nossos amigos em comum deixava este fato bastante claro. Internamente eu imaginava o quanto aquela piada pesava em meus ombros e divertia a cada um deles a cada dia de trabalho compartilhado.
Não eram meus amigos, no final das contas.
A dupla de traidores só demonstrou alguma emoção quando reuni toda a minha dignidade e me arrastei para longe, descendo aos tropeços e empurrões pelo recinto lotado. Não me seguiram de imediato. Fiquei me perguntando se terminaram o que começaram, mas não ousei voltar para conferir.
Em vez disso, decidi me sentar na calçada fria, inconsciente ao fato de que meu sobretudo de textura confortável e cara deixaria de valer alguma coisa pela poeira que cobria o chão.
Meus cotovelos marcaram um ponto dolorido acima dos meus joelhos cobertos por uma grossa meia-calça n***a, e a minha saia lápis ficara manchada pelas lágrimas derramadas sobre o tecido n***o, mas mantive a cabeça apoiada em minhas mãos.
Aquilo estava errado.
Malditamente errado.
Não era daquela maneira que o meu roteiro perfeito deveria seguir. E eu não conseguia compreender onde havia errado em escrever a minha própria história perfeita. Estava tudo certo até vinte e quatro horas antes.
Samuel e eu nos casaríamos em poucos dias. Minha família deixara de lado o rancor por decisões antigas e se dispusera a me ajudar com os preparativos. Marjorie, minha única melhor amiga — e graças aos céus, a única pessoa ausente naquele momento —, estivera reunindo cada uma das minhas vontades em uma planilha especial para a realização do meu casamento dos sonhos. Éramos as únicas que tínhamos uma noção do quão importante aquele passo seria.
Ninguém mais compreendia como o vazio no meu peito só era preenchido pela presença de Samuel, e como eu desejava ardentemente selar um compromisso depois de cinco anos juntos. Cinco anos que foram jogados no ralo por uma noite de fraternização em que cheguei no horário errado. Uma noite que tinha tudo para ser a mais feliz da minha vida, se todos eles tivessem seguido o meu maldito roteiro.
Segundos de uma infinidade angustiante depois, escutei a porta sugando o ar atrás de mim enquanto era aberta e ressoando a suave música do bar para a noite silenciosa. Eu me preparei para lutar contra o torpecimento em minha voz.
— Por quê? — perguntei, sem levantar a cabeça. Minhas lágrimas banhavam boa parte do tecido em minhas pernas, e eu não tinha a menor disposição de dar a liberdade para escorrerem pelo meu terninho azul-bebê.
Um muxoxo impaciente ressoou em minhas costas.
— Você é realmente tão patética? — retrucou Samuel, tão rispidamente que saltei sobre o concreto gelado. — Eu estou cansado de ouvir você tagarelar sobre a porcaria de um emprego que você nem mesmo deveria ter. Fala sério, Betty! Sabe quantas pessoas se matariam para chegar onde você chegou? E além disso, como você chegou em qualquer lugar com um QI tão inferior ao de um animal? Eu disse várias vezes que nunca me encaixaria nos seus planinhos estúpidos. Não quero e não vou me casar com uma mulher frígida e burra, lide com isso.
Eu não soube lidar.
Não soube o que dizer.
Apenas fechei os olhos e deixei o meu corpo resfolegar pelas lágrimas soltas. Perdi a minha compostura, e com ela, toda a minha pose de CEO de uma das empresas mais poderosas do país.
Tornei-me uma garotinha de olhos assustados e coração apertado, cujo maior sonho era encontrar o seu príncipe encantado para fugir do castelo em ruínas em que fora obrigada a morar. A garotinha me olhou através da neblina do passado, apertou uma pelúcia em seu peito, e seus soluços se tornaram os meus.
Eu não sei dizer se o vento que rugiu contra as minhas orelhas foi alto demais, ou se fora realmente uma risadinha traçando um caminho da porta abarrotada de clientes até a calçada, mas algo me fez secar as lágrimas apressadamente. Sabia, no entanto, que a minha vergonha era ainda mais pública por deixá-la tão aparente em meus sons de desespero.
Não apenas Samuel, sua secretária e nossos amigos tinham a mais certeza da minha estupidez. Desconhecidos e bêbados lançavam suas risadas no ar, ecoando-as pelo frio daquela noite de Fevereiro. Se eram para mim, ou um puro efeito de suas garrafas de cerveja pela metade, eu jamais saberei.
Por fim, insatisfeito com as palavras cuspidas sobre mim, o homem com quem planejei me casar se agachou e puxou o meu queixo para erguer a cabeça, um movimento brusco e livre de cortejos.
— Eu nunca amei você, Bettany. — Confessou em tom afiado e sombrio, nivelando o olhar com o meu. — Deus cuide do homem que terá que lidar com as suas crises existênciais, se é que ele existe.
Eu nunca o ouvira soar tão sincero na vida. Nunca vira seus olhos brilharem com tamanha maldade. E a forma com que soltou o meu maxilar — tão forte que meus dentes rangeram —, despertou em mim lembranças tão vivas de um passado distante, que, não tive outra reação senão me colocar de pé e fazer o meu caminho pela rua com sinal aberto.
Não lembro se lancei qualquer olhar sobre os carros que buzinavam e assopravam as ofensas de seus donos enquanto eu me embrenhava cegamente pela rua parcamente iluminada.
Talvez esperassem que eu respondesse a altura dos xingamentos, ou corresse para o outro lado da calçada e evitasse um acidente fatal. Eu não fui capaz disso também.
Meus braços enrolaram-se ao meu redor, protegendo-me pelo súbito frio que estremecera os meus ossos, e meus pés mantiveram-se em movimento, levando-me cada vez mais para longe, sem rumo. Eu me fechei por dentro e por fora. Deixei de ser eu mesma para me tornar um eco.
E, mesmo após longos dez minutos diante de uma das muitas estações de metrô ainda em funcionamento em uma vizinhança adormecida, meus sentidos perecem atormentados pela visões brutas das minhas lembranças. Meu atordoamento é tão bem empenhado que só me dou conta de que estou bloqueando o caminho para a entrada da estação quando um senhor idoso esbarra levemente em mim.
— Sinto muito, moça — ele murmura, o ar frio da noite transformando suas palavras em vapor. Ajeitando o chapéu em um cumprimento, ele desce os degraus com toda a lentidão de sua idade avançada, deixando-me para trás com uma súbita sensação de Déjà Vu.
Um arrepio se arrasta pela minha pele, e só então percebo que minhas lágrimas cessaram. Mentalmente eu me amaldiçoo por tamanho desespero. Não é como se a minha vida fosse acabar por um fim de noivado.
Embora meu deplorável estado emocional prove o contrário, nunca fui dependente da atenção de Samuel. Tínhamos um relacionamento aberto demais para que eu me importasse com as suas escapadas em horários premeditados. Talvez a culpa tenha sido minha, afinal.
Meu emprego sempre foi a minha maior prioridade, e Samuel estava na minha lista de obrigações para o final do dia. Até mesmo minha amiga Marjorie alcança um patamar de afeição maior do que meu ex-futuro-marido.
É quando estou usando o meu Charlie Card para ter acesso ao subsolo da estação que uma sombra de mau agouro recai sobre os meus ombros. Se eu acabo de perder o meu noivo, como posso continuar os planejamentos para um casamento que deveria ocorrer em menos de um mês?
Estupidamente procuro a minha resposta no telão da estação, não encontrando nada além do último horário para o metrô que seguirá de Boston para Washington.
O ardor da derrota estapeia o meu rosto como uma brisa sussurrante. Esqueço do meu amor próprio e desejo voltar no tempo e me atrasar por apenas vinte minutos. O tempo suficiente para não ver aquela cena que ainda dança em meus olhos abertos. Talvez assim jamais soubesse da infidelidade de Samuel. Jamais tomaria uma dose da sua impulsividade e escutaria as suas odiosas palavras, e consequentemente perdesse o meu rumo.
Mas, se tal fato ocorresse, o meu casamento perfeito seria uma mentira. Todos os anos sonhando com o príncipe encantado deixariam de ser algo bom para tornar-se um pesadelo daquela garotinha presa em minhas mórbidas lembranças.
Não. Uma mulher que se opõe firmemente aos insistentes caprichos de homens em seu trabalho não pode se rebaixar às migalhas que outro lhe oferece entre quatro paredes. Esta não sou eu. Não posso ser. Não mais.