Capítulo 4

1888 Words
— Isso não era bem o que eu esperava para uma sexta-feira a noite — resmunga Marjorie, bufando com o esforço de sustentar o peso do homem desconhecido entre nós. — Se serve de consolo — dou um grunhido em resposta ao forte estalo em meus ombros, onde o braço do homem se apoia — eu teria preferido sofrer com um episódio triste de Stranger Things na companhia de um generoso pote de sorvete do que tentar salvar a vida de um desconhecido. Puxando o ar ameno para meus pulmões com uma dificultosa tragada, encaro a fachada iluminada do hospital, lembrando-me que já não havia uma brisa fria envolvendo-nos quando Marjorie estacionou o carro rente ao meio-fio da loja de Lingerie para nos salvar, dez minutos atrás. O homem desmaiado com a cabeça pendendo morbidamente para o lado, no entanto, permanecia frio e inerte. Minha amiga me ajudou a colocá-lo em seu carro, e eu não poderia estar mais agradecida por não ouvir qualquer queixa de sua parte sobre todo sangue que encharcava o homem e suas roupas. Durante o trajeto, tive que contar cada detalhe desta terrível noite, incluindo o episódio com Samuel. Ela não pareceu tão surpresa ao escutar todas as minhas lamentações, limitando-se apenas em arquear a sobrancelha nos momentos em que mencionava o fim do meu casamento perfeito, e parecendo muito mais concentrada em saber sobre o desconhecido e como eu me sentia. — Nada que uma dose de Jack Daniels não resolva — respondi secamente, ainda que sentisse o remorso machucando o meu peito. Eu tenho certeza de que se dirigir a toda velocidade para chegar até o hospital não estivesse tomando toda a sua atenção, minha cabeça estaria agora latejando por ter de escutar todos os seus sermões. Não que minha amiga costume agir no papel de minha mãe, mas acredito que me ver sentindo a necessidade de salvar a vida de um desconhecido — principalmente depois de quase perder a minha — não seja algo tão bem visto quando colocado em prática. Há uma tênue diferença entre ser solidária e arriscar o próprio pescoço pelo de outros. Talvez me torne ainda mais egoísta estar neste exato momento lamentando por ter dado ouvidos às súplicas deste homem, e ainda arrastado a única pessoa que confio para um território que não conhecemos os riscos. Marjorie tropeça no pavimento e rosna baixinho, e por um instante, posso jurar que ela vai atirar o homem com todo o seu peso entorpercido para mim, mas se limita em afastar o braço que pesava em seus ombros para abraçá-lo pela cintura. — Esse é o problema, Betty! Você sempre encontra um jeito de ferrar com a sua noite. Caramba, o que custa você ser uma mulher normal que trabalha, come e transa? Não necessariamente nessa ordem, mas... O homem entre nós abruptamente ergue a sua cabeça para tossir o sangue em sua boca, e ambas quase despencamos com o solavanco de seu corpo frio e esmorecido. — Mas... — continua Marjorie com um grunhido. — Você prefere se envolver em um assassinato em massa, ligar para a sua melhor amiga no meio da noite e fingir que está salvando a vida de um Deus grego para que ela se sinta curiosa o bastante para deixar o maravilhoso conforto de sua cama, apenas para que possa acudir você. E, caramba, Betty... Isso não se faz! Bufo, exasperada. — Eu não podia deixar ele sozinho naquela calçada! — Podia sim! — ela retruca. — Porque Bettany Wilson se acha superior demais para ajudar alguém que precisa de socorro imediato, e nós duas sabemos muito bem disso. Você podia simplesmente fugir e deixar que outros cuidassem disso. Não seria a primeira vez... Parando sob a fachada luminosa do hospital, ela subitamente se vira para mim, e seus olhos escuros como a noite me fitam com uma pequena cintilação de culpa. Marjorie move a cabeça para se livrar dos fios de cabelos castanho-dourados que roçam em suas bochechas sardentas, e suspira. Honestamente, não espero que ela se desculpe. Não há motivos para isto, afinal. Marjorie conhece todos os meus segredos e fez parte do pior deles. Se tenho alguma dor que servira para esculpir os meus ossos, minha amiga é sem dúvidas feita de toda a tormenta que me aflinge. As portas duplas se abrem quando nós as empurramos com um cambaleio coletivo. O homem que respira com dificuldade ao pé do meu ouvido tem o rosto tão branco quanto as paredes que nos rodeiam, e os sons que soam de todas as direções começam a ecoar em nossos ouvidos antes que possamos chegar até o balcão de recepção. — Ainda acho que teria sido uma melhor ideia levar ele para a minha mãe... — sussurra Marjorie, acenando freneticamente com a mão livre em busca de ajuda. A garota da recepção move o extenso r**o de cavalo em seu cabelo quando chama a atenção dos enfermeiros. Eles correm para nos alcançar, e não sei dizer se sinto alívio por ter cumprido com meu papel ou se me preocupo ainda mais por deixar este homem em maus lençóis, pois tudo o que ele não queria era ter de se explicar para médicos e policiais. — Sinto muito por não poder ajudar, camarada... — sussurro em seu ouvido, embora saiba que ele não está me ouvindo dentro de sua inconsciência. O meu sobretudo que o cobria é devolvido por um dos fortes homens que o cercam, e eu enrolo o tecido em meu braço, alheia a qualquer coisa que não seja o desconhecido e seu semblante quebradiço. Quando os enfermeiros o levam em uma maca e a recepcionista nos chama com um sutil gesto de mãos, eu me dirijo à Marjorie: — Por que você achou que sua mãe poderia fazer alguma coisa? Marjorie encolhe os ombros inocentemente. — Talvez porque ela é médica... — Veterinária! — E daí? — Seus lábios se curvam num sorriso atrevido. — Mamãe me ensinou que a única diferença entre cães e homens é que, quando você está triste, um deles lambe o seu rosto e faz palhaçadas até que você sorria, enquanto o outro te chama de histérica e acha que o problema é você e todos os malditos hormônios do seu corpo. Fora isso, não há diferenças. — A anatomia humana discorda de você. Marjorie revira os olhos e se apoia no balcão de madeira pálida da recepção. — Qual o grau de parentesco com a vítima? — pergunta a moça de expressão simpática. — Somos só acompanhantes, quero dizer, nem mesmo o conhecemos... — diz Marjorie com um sorriso sedutor no rosto. — Não que eu realmente quisesse estar na companhia de um homem essa noite... A recepcionista desvia o olhar com uma timidez curiosa e eu me inclino para ver completamente o semblante de Marjorie. Aqui está a mais pura face de minha amiga; o inabalável impulso de se conquistar a atenção de quem conquiste a sua. A julgar pelo rubor nas bochechas da garota atrás do balcão, tenho a certeza de que está funcionando. Marjorie não é o tipo de pessoa que se pode descrever como exigente. Ela se deita tanto com homens, quanto mulheres, tendo maior preferência para o seu próprio gênero. Toda a sua arte de conquista se concentra na profundeza do seu olhar de íris negras e no sorriso bonito que reserva apenas para aqueles que lhe chamam a atenção. Em plenos vinte e cinco anos de idade, ela já consegue ter uma coleção de corações necessitados de sua simpatia, e a lista só aumenta. — Assine aqui... — pede a recepcionista com uma das mãos sobre a caderneta de visitantes. Marjorie não desvia o olhar da garota até me entregar a caneta e pegar o formulário de pacientes. Eu percebo que em vez do verdadeiro nome, minha amiga usou um pseudo e, sem pestanejar, repito a ação, certa de que não quero nenhuma complicação para ter de lidar no dia seguinte. — Você é solteira? — Marjorie pergunta de repente. Eu sorrio, mas evito olhar para a garota. Enquanto pego a prancheta das mãos cor de avelã de Marjorie, escuto a garota limpar a garganta com um som suave. — Sou... — Legal... — Marjorie suspira e se debruça no balcão, inclinando de leve a cabeça com longos cabelos queimados pelo ouro. — Tenho dois ingressos para o show do Ed Sheeran na semana que vem e não tenho companhia. Você ainda pretende estar solteira até a metade da próxima semana, anjo? Eu franzo o cenho e solto a caneta. — E por que você não me leva no show dele? Você sabe que eu amo o meu ruiv... Sua resposta é uma forte cotovelada no meu seio esquerdo. Vejo estrelas quando todo o meu ar escapa, e por reflexo cubro o local dolorido com a mão, gemendo de dor. — Só pretendo levar quem realmente me desperte algum interesse... — sua mão sorrateiramente brinca com as pontas dos dedos da garota, e eu me convenço de que é hora de me afastar. Esfregando a dolorosa pancada em meu seio, me distraio pensando que é incrível como a capacidade do flerte de Marjorie não se altera mesmo em situações de completo caos. Quem me dera ser assim. A sala de espera fica ao lado da recepção e está tão vazia quanto todo o prédio parece, embora os sons continuem ecoando. Com a prancheta no colo e um assento confortável de apoio, preencho o máximo de informações que consigo sobre o desconhecido, mantendo apenas o apelido ou sobrenome que usaram para chamá-lo durante a agressão. Hollis. O odor de antisséptico e instrumentos cirúrgicos começam a me enjoar aos poucos, e por isso vou para a grande janela em busca de ar puro. De repente, um dos bolsos do sobretudo vibra, e a ligação em meu celular me chama a atenção assim que a explícita canção de 50 Cent enche o ar ao meu redor. O nome na tela me assombra mais do que a estrondosa batida de Candy Shop em plenas meia-noite e quarenta e cinco da manhã, dentro de um hospital. Temendo que o som chame a atenção de todos no prédio, eu atendo com dedos trêmulos e suados. — Mãe? Algum problema? Algum tempo atrás, eu comemoraria o milagre de receber a sua chamada. Agradeceria de joelhos por ter a chance de receber o perdão de minha família. Mas, desde que todos eles tomaram as rédeas sobre o meu casamento, as ligações só ocorrem para certificar-se de que o meu gênio difícil não tenha feito o meu noivo sair correndo. Eu me odeio por ter dado uma conquista para eles esta noite. Eles tem a capacidade de farejar o meu fracasso, e é por isso que estão me ligando, penso com amargadura. Imagino que Samuel deve ter ligado para eles e reclamado, como se eu fosse uma mercadoria que não deseja mais usar. E eu nem sei se a hipótese é real, mas começo a rezar para ter a oportunidade de matá-lo com minhas próprias mãos. — Bettynha, querida! — Minha mãe me cumprimenta com a mesma falsidade com que se relaciona com nossos parentes distantes. — Sei que é tarde, mas... Poderia passar a ligação para o seu noivo? Preciso falar com ele agora mesmo.
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