Capítulo 4

1865 Words
Lúcia O garoto novo não saia da minha cabeça, mas não de uma forma boa, na verdade meus sentimentos por ele não eram tão agradáveis desde o nosso último encontro. Havia algo de diferente com aquele cara e eu não acredito que além de morar ao meu lado eu ainda preciso ter que compartilhar uma janela em frente ao seu quarto. O peguei me observando, mas não conseguia decifrar o que se passava em sua mente e olhos avaliadores. Por que ele estava me encarando depois de ter sido um grosso na escola? Será que tinha algum problema comigo? Espero que saiba que eu já não o suportava e não havia ido com a sua cara. Também não me importava de bater de frente com ele se fosse necessário. Não era do meu costume tolerar grosserias. Ele era estranho e observador, tinha a impressão de ser inteligente e também muito arrogante, claro que era arrogante, isso estava explícito na forma que olhava as pessoas e pelo seu jeito de andar. Eu não gostava de pessoas arrogantes porque elas se achavam superiores. Na minha percepção não existe ninguém melhor que ninguém. Todos somos iguais, tentando sobreviver nesse mundo egoísta. Uns se acham melhores por seus bens materiais, riquezas e talentos, mas no fundo m*l sabem eles que nada disso importa, nada disso é importante porque no final da vida todos vão para o mesmo lugar. Pessoas que se achavam melhores eram ridículas, e eu não fazia questão de me importar. Naquela manhã abri minha cortina, observando a casa vizinha com curiosidade, a cortina escura da casa da frente estava fechada e suspirei aliviada por isso. Era melhor assim, não quero ter que abrir minha janela e ter uma visão desagradável logo ao amanhecer. Não estava animada com o novo vizinho, mas não deixaria isso afetar meu humor logo cedo. Eu não estava de repente pegando no pé dele, dificilmente brigava com alguma pessoa ou me importava em me preocupar com algo que não me agradava, mas aquele cara conseguiu deixar um boa impressão negativa em mim. No momento esquecer da sua existência era o melhor a se fazer. Toda manhã gostava de observar o mundo e minha árvore, não queria que o vizinho achasse que eu estava o espionando. Não sei que conclusões ele tiraria se me visse fazendo isso. Odiei o modo que me tratou ao se esbarrar comigo, como se a culpada fosse eu. Era tão ridículo, e não precisava ser tão grosso, quando eu nem ao menos fui m*l-educada. E por que eu estava pensando nesse cara mesmo? Era ridículo sua imagem intrigante estar na minha mente, incomodando-me de inúmeras formas que não deveriam. Deveria estar criando passos de coreografia e não pensando em bobagens. Fechei minhas cortinas e comecei a fazer o ritual de todas as manhãs antes de ir para o colégio. Era sempre a mesma coisa. — Vai se alimentar direito hoje? — minha mãe colocou um sanduíche na minha frente assim que entrei na cozinha. Me sentei na mesa e assenti observando o quanto ela parecia bem hoje. Não podia desperdiçar um momento assim porque eram raríssimos. Anna era depressiva, essa era a verdade, é um fato que tentávamos negar, mas não poderíamos mais. Minha mãe nunca mais voltará a ser a mesma depois da morte do papai e isso apenas machucava nós duas a cada dia que se passava. Eu lutava todos os dias sozinha enquanto ela se afundava da tristeza e melancolia. Minha mãe simplesmente havia se esquecido de viver e acabava levando nós duas ao fundo do posso. — Mãe, vamos sair um pouco? — Sair pra onde? — perguntou desinteressada. Se afundar dentro dessa casa era o que ela queria, não saia nem ao menos para ver a luz do dia e isso me doía profundamente. — Não sei, podemos pensar em algo legal. Sinto falta de quando fazíamos algo juntas. — Fazemos todas as refeições juntas, quando você para em casa. Só quer saber daquele estúdio de dança. — resmungou. É claro que ela sempre joga a dança na minha cara, como se fosse o m*l entre nós, quando na verdade era a minha salvação. Era tudo o que eu tinha e conhecia de mim mesma. A cadeira fez uma ranger irritante quando ela se sentou à minha frente, bufando. Respirei fundo buscando paciência ao olhar para a xícara cheia de café que ela servia para si. Anna era viciada em café e ultrapassava os limites por dia. Todo aquele café a faria m*l em algum momento da sua vida, mas eu não poderia falar nada porque ela se irritava. Ninguém falava do seu café, assim como não deveriam falar da minha dança. — Podemos tirar um fim de semana para ir a um parque. — sugeri ignorando o fato dela ter alfinetado sobre a escola de dança. Acho que ela ainda não percebeu o quanto isso era importante para mim. Se ela tinha o café, eu tinha a dança. No fim nós duas vivíamos fugindo da realidade, mas ao menos eu estava tentando viver. Isso era tão irônico que doía. — Pode ser. Me passa o pão. Lhe entreguei o pão, não vendo humor em sua face. Mesmo que tenha concordado de alguma forma, eu sabia que ela não iria. — Não está atrasada hoje? Você vive correndo. Essa era a insinuação para que eu fosse embora e a deixasse sozinha. Às vezes tinha medo de deixá-la sozinha em casa, e estava pensando na ideia de ter um cachorro. Ele pode distraí-la de alguma forma e talvez ela até desperte o interesse de sair de casa para caminhar. Realmente o cachorro era uma ideia importante a se pensar. — Acordei mais cedo. — suspirei e ouvi uma movimentação de carro na casa ao lado. Olhando pela janela da cozinha conseguimos ver o quintal dos novos vizinhos. — Esses vizinhos são estranhos. A mulher tem cara de rica, esnobe, e o homem não fala com ninguém. — Anna revirou os olhos. — Pensei em levar uma torta de boas vindas, mas mudei de ideia. Isso porque ela ainda não havia visto o filho, era um arrogante. Parece que essa não é uma família tão receptiva. — Acho que eles não gostam de torta. É melhor ficarmos longe daquela família. Não me admira os pais serem iguais ao filho também. Não quero ninguém ofendendo a minha mãe ou recusando sua torta. (...) Fiquei no meu canto na escola como todos os dias. Eu apenas assistia às aulas e fazia meus trabalhos passando despercebida por todos. E era assim que queria terminar o colegial, sem complicações. Não me importei em procurar o novato com os olhos porque não me interessava, mas os murmurinhos sobre ele não cessavam e eu precisava ouvir as garotas suspirarem apaixonadas. Isso até elas descobrirem o quão arrogante ele é. Tenho certeza que a paixão irá embora bem rápido. Fui mais cedo pro estúdio para poder treinar um pouco e aliviar a tensão, não passei em casa e depois da escola fui direto para lá. Eu não podia me desleixar, porque queria ser uma dançarina profissional um dia. Daria a vida pela dança e viveria por ela, para ela porque era o que me fazia bem, era minha esperança. Houve um acidente na entrada da escola de dança. Alguns alunos estavam comentando quando cheguei lá aquela tarde. O portão estava praticamente destruído e eu imagino a raiva que Roberta a dona do local, estava sentindo. Nunca havíamos sido atacados dessa forma antes e o pessoal já estava suspeitando de um ato de vandalismo. Isso era estranho porque ninguém desse lugar fazia m*l a ninguém e a Dona era um amor de pessoa. — O que houve? — perguntei para Sônia, a secretária do local. O estúdio de dança era bem organizado e administrado, mesmo sendo um local simples e de baixa estrutura. Sônia era branquinha e tinha olhos puxados na cor castanha, o que a tornava engraçada e fofa. Sônia tinha seus 28 anos, casada e com alguns gatos de estimação. — Adolescentes apostando rachas e o alvo dessa vez fomos nós — ela deu de ombros soltando um suspiro cansado. Rachas eram ilegais e perigosas, vez ou outra você ouvia falar de garotos ultrapassando os limites da velocidade por aí. Eu odiava isso, odiava andar de carro desde que meu pai morreu. A velocidade me assustava, assim como me preocupava com esses delinquentes desgovernados por aí. — Alguém se machucou? — O garoto quase machuca Roberta, mas acertou apenas o muro. Não se preocupe, eles já resolveram tudo, o filhinho de papai irá fazer trabalho comunitário aqui no estúdio para pagar o prejuízo. Trabalho comunitário? Só podia ser brincadeira. Não gosto de julgar os outros, mas imagino como seria esse filhinho de papai inconsequente. Nossa escola de dança não era um parque de diversões para menores infratores. — Ele deveria estar na prisão, não solto por aí correndo o risco de machucar alguém. — O pai é rico, você sabe como funciona essas coisas. — Sônia deu de ombros, não parecendo surpresa. É claro, ali estava o dinheiro resolvendo todos os problemas do mundo. Tudo seria mais fácil se o dinheiro não abrisse portas injustamente. Não havia nada a se fazer, o mundo já corrompido pelo dinheiro. — Espero que tudo se resolva então. Vou treinar um pouco. — Boa sorte. Deixei minhas coisas em um canto e me alonguei quando cheguei a sala vazia. Liguei a caixinha de som conectando a música Thinking out loud - Ed Sheeran. Gostava de inovar a cada dia e criar novos movimentos, mesmo que fossem estranhos. Fui dando pequenos passos até o centro da sala, a melodia começou e meus primeiros passos foram dar rodopios pelo local. Fechei os olhos e me deixei levar pela melhor sensação do mundo, a sensação de estar viva e sentir uma energia fora do comum. Algo inexplicável e belo demais. Danço de olhos fechados sinto o toque na alma, fervendo em cada célula do meu corpo. A música me envolvia de um jeito inexplicável, é paixão, intensidade e pura vida. Poderia fazer por horas e dias, sem parar. Apenas para sentir que estava viva, que a vida ainda era bonita e tinha muito para me dar. Dançava no chão e dava giros, meu corpo se mexia levemente e se dobrava dando curvas e saltos, me sentia como um pássaro livre, voando em uma dança singilosa. A melodia foi ficando distante e diminuindo dei o giro final e abri os olhos. Pior erro. Estava acostumada a dançar em público, mas não quando havia uma plateia sem ao menos eu saber sobre ela. Foi quando o som de palmas invadiram a sala. Olhei assustada para trás, surpresa ao me deparar com um par de olhos me encarando com uma intensidade absurda. Era ele. Dario estava aqui na minha frente encarando-me como se eu fosse um ser de outro mundo, como se fosse normal espiar pessoas por aí. O observei melhor vendo o pequeno detalhe que carregava nas mão, eram produtos de limpeza. Me senti surpresa por um breve momento. Era Dario. O filhinho de papai que estava fazendo trabalho comunitário.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD