Capítulo 4

1469 Words
Não me lembro com clareza o que aconteceu, mesmo porque eu era muito pequena quando aconteceu. Minha mãe sempre me conta sobre a mulher que me trouxe ao mundo, ela diz que eu não devo esquecer minha história para que, no futuro, eu possa fazer as melhores escolhas. As coisas que tenho em minha mente são apenas flashes, acho que isso é perfeitamente normal considerando que eu tinha apenas três anos quando na época. Gritos, tapas, bituca de cigarro queimando minha pele, até hoje tenho pavor quando alguma pessoa chega perto de mim com um cigarro acesso e sei que é por causa disso. Família completamente disfuncional, é assim que denomino as pessoas que me colocaram ao mundo. Se Deus existe? Sim, é claro que existe já que viu que aqueles dois não tinha a mínima capacidade de criar um ser humano, ainda mais eu, com uma doença que me fazia ser uma bomba relógio em pessoa a ponto de explodir a qualquer momento. Foi difícil, nossa, como foi difícil. Enquanto via pela fresta da janela as crianças brincarem na rua, eu estava trancada dentro do quarto sem a mínima disposição de ser criança. Dores nas pernas, cansaço, manchas roxas por todo o corpo, é assim que eu me lembro da minha infância e não com toda aquela alegria comum que todos comentam. O Grandão sempre foi um bom pai, mas a Joana, acredito que não existe uma mãe melhor que esta. Ela nunca me questionou, nunca me pressionou, sempre respeitou o meu espaço, sempre esteve comigo. Dava para ver o olhar de expectativa todas as vezes em que ela preparava a nossa comida enquanto falava pelos cotovelos. Era nítido que ela queria alguém para conversar e não somente para ouvir, mas entendeu que se contentar apenas com isso. Eu não sei porque não consigo, na verdade não é isso, eu consigo falar, só não me sinto confortável, só não quero me abrir, parece mais um meio de defesa do meu próprio corpo porque para mim, o natural é exatamente não falar. Para agradá-los, eu ainda tento, tento de verdade, mas esse não é o meu mundo. Quantas vezes o Grandão veio conversar comigo com aquele jeitão dele todo marrento, se fazendo de rei da cocada preta tentando me convencer de que minha mãe precisava me ouvir, saber o que estava acontecendo comigo, para poder me ajudar mesmo, me entender. Eu sei, sempre soube, ele ficava apreensivo, não achava aquilo normal, mas eu não conseguia e ainda não consigo. Eu tentei tanto, mais ainda quando vi meu pai indo embora, nos deixando sozinhos para enfrentar o que a vida estava disposta a proporcionar. Como eu senti, como ela sentiu, como ela precisava ouvir que ia ficar tudo bem, ter maior consolo, mas eu não consegui, dessa vez, o Jú teve que fazer isso sozinho. Falando nele, é difícil explicar, mas com ele eu consigo até falar algumas coisas, não sei se é porque eu me sinto ainda mais segura ou porque ele me incentiva a ser como eu quero ser, ficar como quero e permanecer, mas com ele é diferente, parece que ele realmente me entende, ele lê os meus olhos. O Jú foi o meu principal incentivador durante minha vida e o único que sabia que eu queria me profissionalizar e ajudar as pessoas através do cuidado com a alimentação. Esse era meu hobe, estudar, nossa, eu sempre gostei disso, sempre. As vezes, quando ele entrava no meu quarto e me via estudando, só dava um beijo na minha testa, desejava sorte e saía para não me atrapalhar. Dizia que minha vida não era vida de morro, que aqui não era lugar pra mim e que se dependesse dele, faria o possível e o impossível para que eu tivesse o melhor. Eu queria estudar? Ser uma nutricionista renomada? Sim, mas primeiro tinha que passar pelo obstáculo da fala, eu sabia que tinha, não dava mais para postergar e isso estava me incomodando, significava que teria que passar por um psicólogo e contar toda a minha vida, todo o meu problema para uma pessoa completamente desconhecida, mas se nem eu sabia o que estava acontecendo, como poderia ser ajudada. O Jú sempre me disse para estudar o máximo que pudesse e ser diferente. Tinha que me vestir diferente e não igual a essas meninas que usam pedaços de panos rasgados grudados ao corpo e que elas chamam de roupa. Tinham que saber ler e escrever como uma pessoa de presença para poder crescer na vida, eu tinha que viver no morro, mas o morro não podia viver em mim e foi isso que eu fiz, estudei, estudei, estudei e passei em primeiro lugar no meu curso do coração e está sendo tudo muito incrível, eu amo tudo isso. 10 meses depois “Passou rápido hein”, Marina tagarelava ao caminharmos para fora do campus no último dia de aula. Neste último ano, decidi morar aqui perto, na cidade universitária para não ter que ficar perdendo tempo me locomovendo, o difícil foi convencer minha mãe. O Jú teve que se empenhar bastante já que eu me embanava toda para soltar uma só palavra. Ele também queria, na cabeça dele, eu tinha que ficar o mais longe possível daquele morro. - Embora Uma das únicas palavra que eu conseguia dizer para mainha e para mim estava mais que compreensível. Minha voz estava embargada, eu queria explicar, mas a ansiedade já tinha tomado meu ser por inteiro. - Faculdade E cada vez mais os olhos da minha mãe se arregalavam. - Como é que é? Não tinha jeito, o Jú tinha que intervir e foi isso que ele fez, saiu mais cedo do lugar que ele chama de trabalho só para me dar apoio nesse momento. - Mãe, ela passou no naquela prova lá que faz a gente entrar na faculdade e agora ela quer ir morar lá perto. - Mas...mas..como ela quer ir morar lá perto? Longe de mim? Longe da gente? Meu coração começou a se apertar quando vi seus olhos se encherem de lágrima e realmente pensei em desistir. Olhei para meu irmão e parece que ele já tinha decifrado minha intenção, mas como em toda a minha vida, não me deixou fazer isso. - Pode ficar tranquila coroa, tu acha mesmo que eu não vou ficar de olho nessa gatinha aqui? Que eu nunca vou deixar ela sozinha? Todos os seus passos vão ser monitorados e isso serve de aviso pra você também viu tampinha. - Mas e se ela precisar da gente? E se tiver pesadelos? Quem é que vai abraçar ela? Vai dizer que tá tudo bem? É, eu tinha pesadelos com certa frequência, os flashes ainda não tinham me deixado, mesmo depois de tanto tempo, mas estava disposta a tentar, seguir o conselho do meu irmão, só não achei que seria tão difícil convencer a dona Joana né, só que no fim tudo deu certo e tenho que considerar que o ponto crucial foi quando ela ficou sabendo que voltaria em todas a minhas férias. A diferença era só para a minha família mesmo, eu não tinha amigos, nem sabia quem eram meus vizinhos, eu conseguia ser a menina invisível e fiz esse ótimo trabalho também na universidade, menos para a Marina, para essa não. Ela tinha grudado em mim e não me largava por nada, as vezes chegava até ser inconveniente, mas eu gostava muito dela, seu espaço no meu coração estava guardado. Como minha família, ela nunca me julgou, nunca tentou me convencer que o natural das pessoas é manter uma relacionamento social e falar pelos cotovelos, ela apenas me dava o espaço que eu precisava e ocupava o que ela achava que devia. - Último dia! Marina ficou até surpresa quando ouviu eu formulando a frase. Ela sabia que eu não me sentia confortável batendo o maior dos papos e eu era muito agradecida por isso, mas de tanto ficarmos juntas, conquistou um pouco da minha confiança, tanto que ao seu lado, parecia que eu estava na presença do Jú. Ouço a buzina e vejo ao longe meu irmão camuflado dentro de seu Corolla preto que ele usava para fazer os seus negócios do serviço que ele nunca me contava. Porém, mamãe sabia o que era, afinal, isso que sustentava a casa não é, e ele sempre foi muito eficiente no quesito “manter a irmã afastada”. Dou um beijo molhado e um abraço apertado em minha amiga e saio correndo, hoje é dia de voltar pra casa e ficar deitadinha no colo de mainha. Dia de comer bolo de milho com café preto no chá da tarde e escutar todas as fofocas que dona Joana contar. Hoje é dia de família e eu estava morrendo de saudade disso.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD