Capítulo 04

1872 Words
— E em relação a você? — questionei em voz baixa. — Você foi expulso... Mas você está na terra. Não está no inferno como os outros. Você agora é um novo pecado ou coisa parecida? — Não — disse Nikkolai sem titubear. — Eu já disse que sou valioso demais para ser totalmente desviado de minhas funções no paraíso. Franzi de leve o cenho, refletindo sobre o assunto. Até onde eu sabia sobre os anjos-caídos, mesmo aqueles que não foram designados a representar um pecado capital, eram imediatamente exilados para o inferno. Por um momento eu acabei pensando que pela morte de Valtrax, a vaga de pecado da luxúria estaria livre para quem quisesse tomá-lo, considerando que o pecado da preguiça não estava realmente morto — o meu cão de três cabeças, carinhosamente chamado de Cérbero, se encarregou de engolir os corpos que o receptor do pecado da preguiça usava para esconder os traços de magia angelical em sua alma —, e que apesar dos poderes da preguiça residissem em mim depois do meu roubo e ataque de fúria, apenas o território de Valtrax estava realmente sem um dono. Foi difícil não chegar a este tipo de conclusão ao notar o novo porte físico de Nikkolai, principalmente com ele tão próximo, sem camisa, e ainda com os resquícios da brutalidade cometido pelas autoridades celestiais. Nós tínhamos nos vistos por uma única vez pessoalmente, naquela mesma casa, há quase um ano atrás quando eu estive na terra com meus amigos infernais. Nikkolai sempre foi bonito, desde as miragens através das sombras que ele usava para me espiar no inferno. Só que agora ele fazia muito mais o meu biotipo favorito. Sempre notei que ele era um homem grande, mas os músculos passavam despercebidos, agora ele tinha elevações consideráveis em seu abdômen e nos bíceps. Por isso eu realmente delirei por instantes pensando que ele só estava ainda na terra porque eu deveria delegá-lo ao novo cargo no inferno. Pior ainda foi constatar que se ele quisesse fazer algum teste para se tornar o pecado da luxúria, poderia passar com muita facilidade, porque nós nunca tivemos um grande contato físico além das suas sombras me acompanhando. Ter a perspectiva de que ele provavelmente permaneceria em minha casa até que os arcanjos parassem de persegui-lo, me deixava ainda mais nervosa. Eu tinha total convicção dos meus sentimentos com Valtrax. Ainda tinha certeza que ninguém nunca me faria sentir da mesma forma que ele, mas a questão com Nikkolai nunca foi desejo, nunca foi pelo s**o ou por qualquer sedução... Era algo mais íntimo e puro. E aí estava o problema, porque eu sequer reparava quando ele me tocava ou recuava quando minhas próprias mãos o buscavam. Era algo tão natural que eu me odiava por sequer perceber. — Mas o que significa isso de verdade? O quão valioso você é? — indaguei, cruzando as mãos no colo, porque os meus dedos simplesmente estavam tentando acabar com a distância em que Nikkolai se encontrava. — Eu pensei que depois de me contar sobre a primeira profecia, aquela que envolve a nós dois, você estaria em maus lençóis. Você disse que tudo ficaria bem. Então dessa segunda vez foi punido dessa forma. Eu realmente não entendo como é que as coisas podem funcionar no paraíso. — Eu não fui expulso por uma punição, Keigh. Eu escolhi desertar. Eu me tornei um anjo-caído porque eu escolhi estar ao seu lado, e não por ter mencionado o destino da humanidade — disse ele solenemente. — Mas então por que é que você continua tendo uma magia angelical? Você não deveria ter perdido isso ao cair na terra? Os outros que foram para o inferno perderam a magia angelical e se tornaram receptores de um pecado, além dos demônios menores que apesar de serem anjos também apenas possuíam a magia dos donos de seus correspondentes territórios. Como é que essa questão funciona no céu? — Não há territórios no paraíso, Keigh. O paraíso é único. Há habitações para todos. Nada como você está acostumada a ver no mundo humano, e muito menos castelos como os que existem no inferno. O paraíso é tudo aquilo que Lúcifer nunca pôde replicar, mesmo que usasse toda a magia em seu sangue. E no paraíso não temos uma hierarquia para comando. O Criador é absoluto. Não há ninguém além dele. Nós, arcanjos, recebemos algumas delegações para que possamos manter a ordem diante dos cães celestiais. Escutei tudo em silêncio, absorvendo o conhecimento daquele mundo desconhecido. Eu me lembrava vagamente do primeiro momento em que a minha mente deslizou para a de Nikkolai no momento em que eu estava à beira da morte e do afogamento no território da inveja. Ele estava num lugar aberto e muito iluminado, cercado por nuvens densas e uma decoração até bastante exótica, com muitas plantas e o ar de quem gosta de ostentar aquilo que tem. Nikkolai estava vestido com trajes tão finos e maculados quanto aquele que deveria ter usado naquele dia, antes de todo o seu sangue manchar as roupas brancas. O lugar era diferente, mas visto pela mente de Nikkolai, através dos meus olhos que não passavam de sombras de um lugar muito distante. Eu tinha certeza de que a visão real daquilo era muito melhor do que eu podia ter imaginado. — O que são cães celestiais? — Questionei com um franzir de rosto. Minha mente correu mais depressa do que a resposta de Nikkolai e passei a imaginar criaturas terríveis e que se equiparavam aos monstros do inferno. Só que eu pude me lembrar da última vez em que estive em confronto com um arcanjo, e reparei que nos céus estava se aproximando uma nuvem n***a e repleta de criatura; nada como os demônios do inferno em sua forma bestial. Certamente notando o rumo dos meus pensamentos, Nikkolai tratou de explicar a verdadeira forma daquelas criaturas. — São arcanjos de uma patente mais baixa, Keigh. Não são como os monstros do inferno, não possuem uma forma de animal ou uma feição absurda de ser contemplada. Eles apenas possuem características em sua magia que diferem os soldados do Criador — disse Nikkolai em voz suave. — Os cães celestiais podem entrar nos humanos que não possuem a p******o de um arcanjo. É um método parecido com a possessão dos demônios, embora eles não façam isso para o m*l. Eles apenas cumprem as ordens do Criador. Instantaneamente eu pensei em Anne e Zylah. Nenhuma das duas possuía um arcanjo em suas costas, e eu estive por longos meses me apossando do cargo para mantê-las seguras. Se alguém me perguntasse o real motivo para ter me aproximado tão repentinamente daquelas mulheres e ter as aceitado como minhas irmãs, eu nunca saberia dizer. Eu simplesmente senti que deveria ser feito. — E por que geralmente o cara-lá-de-cima ordena para que esses cães entrem nos corpos humanos? — Porque ele precisa conferir a pureza de uma alma — disse Nikkolai, gesticulando suavemente com os ombros. — Nem sempre os relatórios dos arcanjos que acompanharam a vida toda de um humano podem ser usados com veracidade absoluta. Os cães ajudam no julgamento das almas. — E qual é o seu papel, afinal de contas? — perguntei. — Eles me chamam de Anjo da Morte, Keigh — disse ele, parecendo totalmente alheio ao meu arregalar de olhos. — Eu sou a última visão que um humano tem antes de realmente falecer. Eu sou aquele que surgirá após um ataque cardíaco fulminante e oferecerá ao humano falecimento uma morte calma. Aquele que estará de braços abertos para sustentar os corpos daqueles que caírem de grandes altitudes. Aquele que trará conforto para os que morrem de fome. Aquele que cantará uma prece aos desesperados e em sofrimento. Eu sou, mesmo depois de ter sido expulso, a criatura que Deus pode usar para separar uma alma de um corpo humano, e também sou aquele pode designar quem deve ir para o céu ou para o inferno, sem a necessidade de um julgamento de seus pecados em vida. É por isso que digo que sou valioso, e é por isso que ele não me exilou ao inferno imediatamente. Um arcanjo não pode ser substituído. A menos que ele decida criar uma nova vida e fazer com que ela adquira uma função parecida com a minha, mas nunca a mesma, eu ainda vou ser o anjo da morte mesmo que já não tenha mais permissão de subir aos céus. — E como é que ele pode ter deixado que o anjo da morte se tornasse o guardião da rainha do inferno? — perguntei, abismada, e até um pouco admirada em não ter recebido um arcanjo qualquer. — Ele realmente não queria que qualquer um dos seus soldados espreitasse os seus planos ao longo dos séculos — explicou ele, pegando o fio dos meus pensamentos. — O Criador me incumbiu da missão de observá-la por acreditar que, quando o momento chegasse, eu poderia facilmente desgarrar a sua alma do corpo. Então você levaria algum tempo para retornar, isto é, se retornasse. — Somente Lúcifer pode me m***r — falei com um sorrisinho debochado. — Eu também posso — disse Nikkolai sem se alterar. Meu cenho se franziu novamente. A minha cabeça parecia em chamas. Eu precisava dormir, mas antes precisava entender como é que tudo poderia estar conectado e da pior maneira possível. Suspirei e inspirei. Quanto mais o tempo passava, mais a minha vida parecia uma completa bagunça. Eu só queria saber quando é que aquilo terminaria. — Então, o cara-lá-de-cima colocou você como uma sombra em minhas costas na esperança de que você me matasse quando eu menos esperasse, mas, por ironia, você acabou criando sentimentos por mim e ficando impossibilitado de me m***r? — questionei com um sorriso ainda estranho no rosto. — É sério mesmo que nada na minha vida nunca foi e nunca vai ser normal? — É sério — disse Nikkolai, piscando seus olhos azul-violeta em minha direção. — Eu deveria m***r você em algum momento. Este era o plano. Até a nossa profecia ser feita. — O que aconteceu primeiro, então? Você se apaixonou ou o Destino quis brincar mais uma vez com a minha cara? — Eu me apaixonei. — Ah, que bom — falei, ainda rindo com deboche. — Isso é melhor do que pensar que você apenas se aproximou por querer saber como é que a profecia se realizava. — Os meus sentimentos por você sempre foram puros, Keigh — disse Nikkolai, num tom levemente ríspido. — Eu nunca estive tentando me aproximar de você por conta da profecia. Eu soube que o destino tinha algo para nós, mas eu já estava mais envolvido do que imaginava. — É, mas se você pretendia me fazer apaixonar por você de volta, não deveria nunca ter mencionado a profecia — disparei, mantendo a expressão séria. — Você estragou todo o desfecho da profecia. — Não estraguei, Keigh. — Ele se recostou na borda do sofá, tomando distância. Os cabelos já estavam se secando, mas algumas mexas úmidas ainda deslizavam contra a sua testa. — Não há outra maneira da nossa história terminar. Você não tem outra escolha.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD