Naquele momento eu dei uma risada tão alta e aguda que até um cão s***o teria escutado. Nikkolai, para o seu crédito, se manteve sério e tranquilo. Eu não gostei da presunção no rosto dele, só que também não estava disposta a entrar no assunto. Eu não queria começar a me revoltar pela morte de Valtrax naquele momento. Por maior que fosse a minha raiva da falta de ajuda de Nikkolai — quando ele sempre soube que eu só morreria para trazer Valtrax de volta —, eu ainda sentia compaixão pela perda das suas asas. Porque ele estava condenado a continuar servindo a um Deus que lhe roubou sua liberdade. Isso já era r**m o bastante para que eu quisesse gritar em seu rosto.
— Bom, já que a história da profecia é um assunto que vamos ter que destrinchar para entender como é que o cara-lá-de-cima espera que eu convença os humanos de merecer suas vidas, é melhor partirmos para outra questão... — controlei o meu tom de voz e afastei qualquer deboche para não tornar a situação ainda mais difícil. — O que é que vamos fazer com você?
— Eu... Pensei que você pudesse me oferecer abrigo por algum tempo — disse Nikkolai, mordiscando o lábio inferior. — Quero dizer, eu não preciso ficar dentro da casa. Só gostaria que você usasse algum feitiço para manter meus poderes tão nulos quanto os seus.
— Oh, o arcanjo poderoso que pode me m***r sem esforço não sabe se esconder do todo-poderoso? — debochei, sem me conter. Ao som da minha risada, Nikkolai amarrou a cara. — Certo... Eu vou usar os meus poderes para manter os seus dons em segredo, mas, em relação a ficar em minha casa... Eu acho que isso pode ser estranho.
— Você sabe que eu sempre estive observando você, não sabe? — ele questionou de cenho franzido. — Conheço seus sentimentos e pensamentos mais do que os meus próprios.
Eu não duvidava. Até porque, eu me tornei ainda mais arisca desde a morte de Valtrax. Afastei todos os homens que pudessem ter qualquer esperança de ter sentimentos correspondidos pela minha parte. Nikkolai, no entanto, ainda estava ali, sentado e sem camisa, bem ao alcance de minhas mãos. Sem falar que ele não mencionou qualquer palavra errada que me fizesse querer cair no choro ou sentir ódio pela sua negligência ao longo de cinco séculos. Maldito fosse aquele arcanjo, até mesmo a maneira como ele me olhava deixava bem claro de que ele escutava cada um dos meus pensamentos. Quando a minha mente correu em torno das lembranças da sua companhia e do modo como dançamos juntos uma vez, comecei a pensar que não deveria ter deixado que aquele elo entre nossas almas tornasse a se fazer presente, porque sabia que ele também via tudo aquilo se passando diante dos seus olhos.
— Mesmo que você tenha visto algumas coisas...
Nikkolai inclinou a cabeça.
— Estive vendo muitas coisas...
Ignorei totalmente.
— E mesmo que você ache que sabe tudo sobre mim...
Nikkolai continuou muito tranquilo.
— Eu sei tudo sobre você.
Não deixei as palavras me alcançarem.
— Eu ainda acho que você deveria procurar outro lugar.
— E deixar você totalmente vulnerável? — ele perguntou.
— Nikki, é você quem está vulnerável — frisei, arqueando as sobrancelhas. — Nenhum arcanjo me encontrou desde que voltei para a terra. Eu estou mais do que segura. Você não tem suas asas. Você ainda tem de servir ao seu mestre. Eu não quero correr o risco de que você fique na minha casa e atraia as atenções para cá.
Na verdade, eu não queria era estar sozinha com ele em casa, porque isso nunca aconteceu. Porque eu ainda sentia os desejos e as saudades que uma mulher pode sentir de um homem. E na falta de Valtrax... nunca se sabe.
— Você foi a minha prometida e protegida por séculos — disse ele, sacudindo os ombros. — Você é o meu lado mais fraco, Keigh. Você acha que eu me importo com as minhas asas? Que eu me importo com a minha auréola quebrada? Eu me importo com você. Eu estou aqui porque escolhi você. E todos eles sabem disso. O seu disfarce é bom, não é rastreável, mas não é absoluto. Você tem amigos humanos que ele conhece. Você tem amigos no inferno que ele também conhece. Me manter longe não garante que ele não mande os cães para a sua porta na próxima manhã.
— E o que vai me garantir algum benefício tendo você por perto? — questionei, ainda sem abusar de um tom agressivo. — Desculpe, Nikki, mas você é um guardião de m€rda. Você nunca me ajudou em nada.
— Como assim nunca ajudei? — ele fez uma expressão totalmente horrorizada. — Keigh, eu sempre estive tentando proteger você. Sempre estive falando o que você deveria fazer. E a única vez em que me escutou de verdade, foi quando mandei você entrar naquela floresta e pude abrir o portal para que você passasse. É você quem nunca quis a minha ajuda!
Apesar da indignação, apesar da vontade de contradizer suas queixas, eu já estava quase abrindo a boca para xingar, quando reparei melhor nas suas palavras.
— Foi você quem me chamou com aquela voz na minha cabeça? — perguntei.
— Sim — disse ele, exasperado. — Eu sempre estive tentando levar você para o seu mundo. Eu sempre tentei fazer você enxergar o lugar ao qual pertencia. Só que, infelizmente, assim que você chegava ao inferno, por todos os séculos, Lúcifer entregou aquele colar para você, e ele sempre bloqueou a nossa conexão.
— Por isso eu sempre tive de segurá-lo longe do peito para me comunicar com você— ponderei.
— Exatamente — disse Nikkolai, assentindo com a cabeça. — E, se você se lembrar direito, vai saber que o destino só criou um meio de que nossos caminhos se cruzassem e separassem para que nunca percebêssemos o quanto seríamos fortes juntos. A nossa magia, Keigh, é capaz de tudo e mais um pouco.
— Eu já posso fazer tudo e mais um pouco sozinha — retruquei.
— Não pode — disse Nikkolai, impassível. — Não fazer o que mais quer, que é poder trazer o anjo-caído de volta. Mas, juntos, podemos.
Tentei esconder todo o meu interesse, mas falhei, pelo modo com que Nikkolai semicerrou seus olhos. Se ele não suspeitasse da repetina vontade que cresceu em mim para ajudar a humanidade, com toda certeza reparou no meu calmo e solícito tom de voz.
— Bem, eu concordo em trabalharmos juntos para tentar resolver a questão do destino da humanidade, e concordo que possamos unir nossas magias para trazer Valtrax de volta, se isso for possível... — falei do modo mais natural possível, embora meu corpo inteiro parecesse transbordar de expectativa. Se fosse possível trazer Valtrax com a magia infernal e angelical unidas, então boa parte dos meus dilemas estariam resolvidos. — Porém, eu não aceito ter qualquer tipo de aprofundamento em nossa relação. Quero que você continue sendo apenas o meu guardião, nada além disso. Se você precisa de abrigo, então fique. Não pense que vamos ter qualquer coisa, porque não vamos. E se você sonhar em avançar algum sinal...
— Keigh, eu sou um arcanjo.
— É um anjo-caído agora, e eu sei que pode pecar, se quiser.
— Não quero pecar.
— Ótimo, porque eu não gostaria de pecar junto com você.
E eu me esforcei bastante para não me chamar de mentirosa dentro da minha cabeça, porque se fizesse, ele escutaria. E tudo o que eu menos precisava era querer tirar a virgindade de um arcanjo com milênios de existência. Embora não fosse uma tarefa muito difícil para ele arranjar qualquer humana que o condenasse ao inferno pelo pecado do ato carnal, eu não daria a menor brecha para que ele achasse que eu queria fazer parte daquilo.
— Eu tenho objetivos além de ceder aos desejos profanos da carne — disse Nikkolai, dando um risinho sem humor. — Quero a sua prot€ção porque estarei visitando alguns humanos que foram meus protegidos em outras encarnações. Tenho uma ideia que possa funcionar se eu contatar as pessoas certas.
— Qual plano seria esse?
— Um dos humanos que já foi meu protegido é um policial que você já conheceu — disse ele, desviando os olhos rapidamente ao perceber o modo como eu fiquei com raiva de lembrar que ele me abandonou quando eu mais precisei, no momento em que encontrei o meu livro dos mortos. — Eu quero me encontrar com ele e descobrir um jeito de inserir a ideia nos humanos de que o fim do mundo pode estar bem próximo.
— E como é que vai fazer para que ele não o ache completamente maluco? — perguntei com um franzir de rosto. — Até hoje, se eu parar para pensar direito, acho toda a minha história de vida uma completa palhaçada Divina.
Nikkolai deu uma risadinha, mas o som logo morreu, porque ao se mover contra o sofá, ele reparou na falta das asas. Eu soube que a sua expressão pesarosa só significava aquilo por um repentino sentimento de culpa em meu coração.
— Não podemos nos comunicar com os humanos que protegemos, mas, ao ser expulso dos céus, eu perdi totalmente o meu sigilo. Eles podem me ver e ouvir como um humano comum. Aqueles com quem eu estive observando ao longo dos milênios em suas reencarnações, podem me reconhecer como um velho amigo, mesmo nunca tendo me visto — ele lançou um olhar para o anel em seu dedo, e as nuvens de poder azul lá dentro espiralaram suavemente até o rosto dele. — Eu posso usar essa familiaridade para fazer com que o maior número possível de humanos saiba o que está chegando. Pelo menos eles estarão preparados.
Uma pequena quantidade daquele poder alcançou os meus dedos, trazendo um calor quase reconfortante, antes que o meu próprio poder em tom magenta se libertasse em resposta. Juntas, as nuvens de magia se ergueram até a altura do meu peito, onde se envolveram totalmente e se tornaram o tom puro de violeta. Quando meus olhos tornaram a se erguer para Nikkolai, ele também estava observando a magia unida.
— A guerra está chegando mesmo, não é? — questionei baixinho.
— A guerra já chegou, Keigh — disse ele, detendo seus olhos nos meus. — Nós dois somos os únicos que podem mudar alguma coisa.
Um silêncio recaiu na sala. O mundo ainda desabava pela chuva lá fora. Eu tinha uma leve suspeita de que a fúria nos céus não passaria por um bom tempo, principalmente com o arcanjo mais poderoso dos céus, o anjo da morte, recebendo abrigo pela rainha dos demônios. Deus deveria estar furioso. Durante aqueles segundos em que nenhuma conversa parecia digna de ser iniciada, notei que Nikkolai estava, deliberadamente, evitando olhar nos meus olhos. Agora ele estava olhando para as marcas em suas mãos, certamente se lembrando dos horrores de sua punição.
— Você pode ficar — falei em busca de chamar a sua atenção, acenando distraidamente para a casa. — Na verdade, nem precisava ter pedido para ficar. Eu não expulsaria você nesse estado. E eu peço desculpas pelo jeito com que falei... Eu realmente estou disposta a fazer qualquer coisa pelas pessoas que eu amo nessa terra e no inferno. É só que as coisas mudaram depois de Valtrax. E eu não sou capaz de esconder a minha raiva pela morte dele ser, de alguma forma, por sua culpa.
— Eu sei — disse ele, novamente contendo a sombra de um sorriso sem humor. — Agora você entende como eu me senti durante todos os séculos em que você escolheu morrer por ele. Entende como eu sempre pensei que a culpa era dele.
— Mas, no fim, a culpa sempre foi sua — disparei em perceber.
— Sim — disse Nikkolai, abaixando a cabeça. — A culpa foi minha.
O meu coração protestou, mas eu engoli a vontade de dizer que só me agradava escutar aquilo para ter alguém a quem culpar. Mesmo com a garganta oscilando pelas palavras não ditas, não falei mais nada. Eu me levantei, subi até o meu quarto para trazer um colchão inflável que minhas amigas mantiveram em minha casa para as noites em que passávamos juntas, e deixei na sala para que Nikkolai dormisse, assim como um travesseiro e cobertores. Eu não falei nada para ele quando subi até o meu quarto, deitei na cama e fiquei observando o teto.
Algum tempo depois, minha audição aguçada registrou o barulho de Nikkolai se ajeitando no desconfortável colchão no andar abaixo, e ele dedicou longos minutos para sussurrar uma oração; pedindo pela benção do mesmo Deus que o puniu sem piedade. Eu só soube que ele havia dormido quando o meu próprio sono me assaltou. E, quando eu embarquei naquela semiconsciência, tive a sensação de que ele estava deitado ao meu lado na cama; como há muito tempo eu havia sentido em minha primeira noite no inferno, quando também me perguntava como é que salvaria o meu mundo se ainda nem sabia como salvaria a mim mesma.