Prólogo
Desde que os humanos passaram a ter consciência de suas palavras, muitas lendas acerca do bem e do m*l foram criadas.
Há uma história em particular, nascida entre os religiosos fervorosos que passam seus ensinamentos de geração em geração, querendo influenciar seus dependentes a acreditar que o m*l é absoluto e imutável. De acordo com esta história, acredita-se que o d***o perambula pela terra em forma humana, afim de encontrar pecadores para punir antes de reclamar suas almas para o inferno.
Por conta dessa lenda, as pessoas se tornaram intolerantes diante de qualquer atitude que pudesse considerar indevida para um humano normal; desde ser devoto a uma religião que não se iguale ao cristianismo, até o simples ostentar de uma tatuagem na pele. As pessoas tentam convencer com a força bruta àquelas que não se dizem entender as palavras do livro sagrado. As pessoas que pregam a palavra de Deus de modo tão devoto, são as mesmas que pecam ao ferir o próximo por ideais que não condizem com o que eles consideram uma verdade absoluta. E eles não entendem, mas é atrás deste tipo de pessoa que o d***o que perambula pela terra está buscando.
Se esta história fosse levada em consideração para algo além do que apenas uma lenda feita para assustar as crianças e manter os jovens no seio da igreja, ninguém poderia dizer que o d***o estava na forma de uma mulher que trabalhava todos os dias numa lanchonete de uma cidade litorânea. Ninguém diria que o d***o residia abaixo da pele daquela mulher que se rodeava de humanos de bom coração. Ninguém jamais pensaria que a rainha dos demônios levaria uma vida comum ao lado de pecadores e santos; observando seus hábitos, aumentando seus poderes. Ninguém nada diria, até que o dia chegasse. Até que uma profecia se concretizasse; invalidando toda e qualquer história que a humanidade pudesse ter criado para culpar os demônios de suas próprias falhas.
O dia em que Deus se cansou da sua criação mais perfeita havia chegado. O mundo entrou num colapso global, cercado de desastres e devastações, que dizimaram uma grande parte da população de modo silencioso e quase indetectável. Nem mesmo a rainha dos demônios percebeu até que fosse tarde. Até que o Criador virasse suas costas para os humanos. Até que ele os abandonasse para a própria sorte. Até que apenas a governante do inferno estivesse realmente disposta a lutar, até que o destino de todos fossem selados de acordo com as escolhas dela. E o momento em que a rainha dos demônios percebeu que a profecia estava se realizando, foi no exato momento em que uma nova lenda nascia. Aquela sobre a mulher que foi criada pelo d***o para combater o homem criado por Deus.
Às sombras do surgimento de uma nova lenda, aquela mulher manteve sua vida normal entre os humanos com quem criou laços. Ela se dedicou a cada novo dia para passar despercebida, enquanto reparava em cada pequeno ato de negligência ocorrido bem nas vistas dos ceres celestiais que guardavam a terra.
No momento em que esta história começa, a rainha dos demônios estava olhando para a vitrine de uma loja com peças feitas em porcelana, imaginando que deveria comprar um jogo de chá para que suas amigas parassem de reclamar de ter de usar os seus copos de plástico. Ela sorriu com prazer ao imaginar que o conteúdo aquecido de suas xícaras perduraria enquanto elas bebericassem o líquido no recipiente firme daquela porcelana, e que talvez isso pudesse ajudar naquela sua aversão ao chá.
Ela entrou na loja ainda com o sorriso no rosto. O casaco que usava se enroscou na maçaneta da porta, e ela abaixou a cabeça para se soltar, fazendo com que o sino acima da porta soasse duas vezes enquanto ela tentava passar. Notou que a loja tinha um cheiro muito característico de naftalina, e pensou com divertimento de que aquele aroma deveria pertencer a todas as pessoas de idade, porque se deparou com uma pequena e franzina senhora atrás de um balcão de madeira polida.
— Boa tarde, meu bem — saudou a idosa com um sorriso aberto que fez mostrar as próteses removíveis que eram seus dentes. Os lábios eram largos e murchos. Os cabelos presos num coque grisalho e arrepiado. E os olhos... Os olhos daquela mulher chamaram a atenção da rainha dos demônios no mesmo momento em que os dela se erguiam. — Posso ajudar?
Armando-se de todas as convicções possíveis de que a mulher não representava nenhum perigo, a rainha dos demônios sorriu e disse:
— Eu gostaria de levar aquelas peças de porcelana na vitrine, por favor.
— Ah, uma pessoa de bom gosto — disse a idosa em tom de prazer contido. — É tão difícil encontrar clientes que entendam o que é a verdadeira arte de se tomar chá numa peça de porcelana. É claro que ninguém está interessado em todo o trabalho para modelar, polir, pintar... Eles só querem continuar se apegando àquilo que os outros consideram moda. É ainda mais raro encontrar jovens que pensem da forma correta.
A rainha dos demônios não pensava em fazer artes, ela só queria beber o seu chá num recipiente que o mantivesse por tempo suficiente para que suas amigas não ficassem reclamando que todas as noites em que se reuniam tinha de beber coisas mornas porque, aparentemente, os seus copos de plástico não eram bons o suficiente. Escondendo o sorriso pelo devaneio, a mulher deu de ombros por baixo de seu casaco pesado, e gesticulou com as mãos para as peças atrás de si.
— Eu acho incrível que peças como essas sejam feitas a mão — disse ela de modo amistoso. — Não imagino por que é que as pessoas se recusariam a apoiar um artista.
A senhora idosa deu a volta pelo balcão, e a rainha dos demônios notou que ela usava um vestido florido e um avental rosa sobre a cintura. No entanto, enquanto observava a idosa passar diante dos seus olhos para se encaminhar até a prateleira com as xícaras e pires de porcelana expostos, ela observou aquilo que ninguém mais podia naquele mundo. Observou com olhos sobrenaturais que momentaneamente se tornaram magentas e num segundo de percepção depois voltaram para o marrom-uísque de sempre, ao perceber que não havia um guardião protegendo a mulher.
Guardiões eram, naquilo que ela descobriu há quase um ano atrás, arcanjos designados por Deus para proteger um humano até o fim da sua vida. Grandes guerreiros celestiais que usavam roupas brancas e xale transpassados nos p****s, e que embora nunca portassem espadas, estavam sempre com uma expressão de cautela nos rostos sobrenaturalmente belos. Ela se tornou capaz de enxergar estes arcanjos que se moviam como sombras atrás dos humanos quando aceitou todos os seus poderes infernais, quando ela se tornou a rainha do inferno por mérito e sacrifícios. Por vezes ela ainda tinha de conter a expressão de susto ao perceber que os arcanjos também conseguiam deduzir do lugar de onde ela tinha vindo, mas que nada poderiam fazer já que o seu corpo era humano, mesmo que a sua alma fosse tão velha quanto cinco séculos. Nada poderiam fazer desde que ela não fizesse nada também.
Por muitas vezes ela se deparou com humanos sem arcanjos, na maioria pobres desfavorecidos, jovens rebeldes, ou criminosos condenados... Em outras ocasiões, como nas únicas amigas que ela possuía naquele mundo, ela notava que a falta de um arcanjo era apenas por todo o sofrimento ao qual aquelas pessoas passaram em algum momento de suas vidas. Apesar de toda a humanidade acreditar que o m*l era aquele que condenaria um humano ao inferno, ninguém poderia imaginar que na verdade, antes mesmo que suas almas fossem reivindicadas, eles poderiam deixar de receber a p******o de um guardião, e que suas vidas poderiam a qualquer momento — por escolha do Criador — serem assoladas por desgraças e tragédias.
A rainha dos demônios não pôde deixar de estreitar seus olhos sobre a senhora idosa que cuidadosamente embrulhava as peças de porcelana em folhas de seda, tomando tanto cuidado com os objetos que suas mãos enrugadas e flácidas nem pareciam tremer, claramente agindo de modo automático por fazer aquilo há muito tempo. Ela não correspondeu ao olhar indagador da rainha dos demônios, e recebeu o p*******o com um sorriso que se alargava em seu rosto enrugado e tomado pelas consequências do tempo. Ao pegar o troco, ela finalmente se deixou observar o rosto de sua cliente, e parecia estar com aquele mesmo instinto de suspeita ao analisar cada expressão da outra.
— Como é mesmo o seu nome? — perguntou a senhora de repente, esticando a sacola para a mulher que ainda apertava os olhos em sua direção.
— Keigh — disse a rainha dos demônios, puxando a sacola para si. — Mas há quem me chame de Alanea.
Um brilho de surpresa correu pelos olhos escuros da senhora idosa.
— Já escutei muitas histórias sobre você, Alanea — disse ela com voz suave. — Eu fui criada por uma família que pregava a palavra de Deus em cada lar por qual passava. Sempre fui uma mulher que tomava os dez mandamentos como um princípio básico de vida, até entender que nada acontece sem a permissão de Deus. Até perceber que nenhum humano se torna m*l por livre-arbítrio. No dia em que percebi isso, foi o mesmo dia em que ele me abandonou. E no dia em que eu notei que já não existia mais um Deus olhando por mim, algumas histórias sobre você se ergueram nas trevas.
— Como pode já ter escutado sobre mim? — perguntou Keigh, franzindo o cenho.
— Por conta do seu nome, é claro — respondeu a outra.
Keigh deu uma risada desdenhosa, agarrando-se ao pacote de sua compra para evitar a sensação r**m que foi se arrastando até o seu peito, quase como um sinal de que havia sido descoberta. Mas ela acreditava que aquilo fosse impossível. Um humano normal jamais saberia da localização da rainha dos demônios. Nem mesmo uma criatura sobrenatural poderia parar diante dela sem que ela permitisse. Estava usando feitiços para esconder a alma brilhante que a destacava contra todos os seres do mundo. E a magia dela não era daquele mundo. Não poderia ser vista ou sentida por um humano que não houvesse sido tocado pelo m*l; isto é, possuído.
Os olhos da mulher permaneceram sobre ela, e ela percebeu que deveria ter dito alguma coisa, mas passou tempo demais divagando em seus próprios dilemas. Notava agora que os olhos da mulher se enrugavam pelo sorriso que estava crescendo em seu rosto. Ela realmente sabia.
— Como é que você sabe de alguma coisa sobre aquilo que eu sou? — perguntou Keigh em voz fria.
A senhora idosa deu uma risadinha fraca.
— Sou velha demais para não ter notado que algo acontecia com as pessoas de minha própria raça, Alanea. — Ela observou as vitrines de sua loja, mirando o céu lá fora que começava a cair na escuridão da noite iminente. — As histórias que meus netos e bisnetos cresceram ouvindo foi da mulher nascida no inferno que lutaria por nós. A rainha dos pecadores e dos monstros, que se ergueria do fogo para andar entre nós e nos proteger ao menor sinal da negligência do senhor. A história que os meus netos espalham para os seus filhos e assim por diante, é a da mulher que surgiu do m*l para mostrar que o bem nunca foi tão benevolente quanto pensávamos. É por isso que eu conheço este nome. É por isso que eu sei que não existe outra Alanea em qualquer mundo. Só existe você.
Keigh engoliu em seco. Nunca imaginou que os seus feitos em vários séculos de vida pudessem ter respingado na vida de humanos comuns. Jamais ocorrera-lhe de que ela poderia ter conhecido e vivido com muitos outros humanos até conseguir quebrar a maldição de sua morte. Ela observou novamente a mulher, sentindo aquela ardência em seu peito, entre os s***s que escondiam a tatuagem do seu pecado capital. Ela era a ganância; a imagem corpórea de Lúcifer. E, de alguma forma que não soube explicar, aquela idosa abandonada por Deus e seus arcanjos, sabia muito bem de suas origens.
— Bem... Obrigada, mas eu preciso ir — disse Keigh, dando alguns passos para junto da porta.
A senhora idosa ergueu o braço e acenou, seus lábios ainda abertos num sorriso.
— Precisa mesmo, majestade — disse a idosa, lançando mais um olhar para a vitrine que lhe permitia ver os céus. — Esta é a noite em que a trama do Criador tomará um novo rumo. A senhora precisa estar preparada.
Keigh se assustou ao bater com as costas na porta, e saiu correndo para a calçada, m*l escutando o tilintar do sino em cima de sua cabeça. Ela atravessou a calçada o mais rapidamente que pôde, desviando de pessoas que passavam pelas ruas com aquela empolgação habitual de uma sexta-feira. Ela se enfiou em seu carro e só quando já estava com as mãos no volante é que percebeu que tremia da cabeça aos pés. A sacola de suas peças de porcelana quase despencou para baixo do banco do passageiro quando ela tentou livrar suas mãos de qualquer coisa que pudessem torná-las mais instáveis.
Os seus olhos subiram até o espelho retrovisor no centro do carro, e ela se viu com olhos arregalados. Fazia muito tempo desde que se lembrava de quem realmente era. Ela tinha se refugiado nas terras humanas depois de toda a tragédia ocorrida no inferno. Ainda era a rainha dos demônios, ainda tinha a tatuagem de serpente coroada gravada entre os seus s***s, mas já não se sentia mais digna de se sentar no trono. Mesmo depois de tanto tempo, ela ainda não sentia que poderia voltar e encarar aquelas criaturas de novo. Não depois de tudo.
Ela ligou o carro e partiu quase que de modo inconsciente para a sua casa. Não conseguia se esquecer daquela mulher. Não conseguia parar de pensar se algum dos seus amigos poderia ter possuído a mulher para lhe dar alguma dica de que o inferno precisava da sua ajuda. Ela não tinha contato com ninguém daquele mundo há muito tempo. Não sabia se o inferno tinha sucumbido ao fogo e ao desespero, ou se a sua amiga Faye, o pecado da gula, estava conseguindo lidar com tudo sem necessitar da atenção de sua rainha. Ela só sabia que não estava preparada para voltar. Não estava preparada para ter de lidar com as lembranças daquele lugar. E ela só queria esquecer daquele encontro com a idosa estranha.
Já era tarde da noite quando ela notou que havia algo muito errado.
Ela já estava dormindo, e acordou com uma sensação h******l em seu coração. A sensação era como se alguma coisa estivesse sendo arrancada, embora não doesse realmente. Ela se sentou na cama, e quase que de imediato notou a origem do problema. Os ventos da noite fria balançavam as cortinas do seu quarto, e uma chuva torrencial estava recaindo pelo mundo. Ela se levantou e se aproximou da janela, quase nem sentindo suas pernas ao realizar o ato. Observou o céu escuro, rugindo em lampejos de raios luminosos, que tornavam a escuridão acima como uma parede n***a repleta de rachaduras. Ela arregalou os olhos ao entender. Ao perceber que a chuva tinha um novo significado agora que sabia em qual mundo ela realmente pertencia.
Aquilo só podia significar que os seres celestiais não estavam contentes. A chuva com raios só trazia uma sensação de que a qualquer momento um arcanjo poderia invadir a sua casa e tentar sequestrá-la. Houve uma tentativa deste tipo no ano anterior, quando ela esteve ali com um trio de amigos sobrenaturais. Ela quase foi enforcada por um arcanjo que dizia que teria de levá-la com ele para cumprir a profecia. E ela não teve medo de retornar para aquela mesa casa depois de todos os eventos traumáticos pelos quais passou no último ano. Na verdade, ela meio que esperava que Deus e seus arcanjos tivessem a audácia de tentar atacá-la sem motivos. Ela já não tinha mais medo de nada e ninguém. Não depois de tudo.
Ainda assim, foi difícil conseguir respirar ao notar que nas sombras da noite, atravessando de modo trôpego e instável a chuva que caia em grande quantidade, a inconfundível silhueta de um homem se aproximava. Ele praticamente tropeçava adiante, sem conseguir caminhar em pernas firmes. Quando já estava dentro do pátio do complexo de apartamentos, ele desabou. Keigh imediatamente desatou a correr para a sua porta, saindo na chuva fria antes que pudesse se conter. Antes que ao menos percebesse o que estava fazendo.
A rainha dos demônios notou de imediato que as costas do homem sangravam, cobrindo totalmente a origem dos fluídos. As vestes finas e brancas dele estavam manchadas de vermelho que se escorria ainda mais líquido pela chuva que a lavava. Ela o virou em seu colo e sentiu algo flexível e úmido tocando em suas pernas. Não usava mais do que uma camisola curta. E aquilo que a tocava acima dos joelhos, vindo das costas do homem, eram o que um dia foram lindas asas brancas e de pelugem cheia. Porque aquele homem caído em seu colo, com o rosto totalmente retorcido pela dor e as lágrimas que se misturava com a água da chuva lhe banhando, era o seu arcanjo. Era Nikkolai.
— Começou — ele disse num sussurro úmido. Tentou se erguer, forçando as mãos contra o pavimento que se enchia com seu sangue. Não conseguiu fazer mais do que se virar no colo de Keigh. E ele a observou com olhos de um azul-violeta cobertos pela dor. — Majestade... Ele selou o destino da humanidade. O Criador sabe da profecia, e ele quer concretiza-la. Ele vai exterminar todos os humanos até os próximos dois meses. A menos que você prove que eles merecem. A menos que você lute. A menos que você escolha qual mundo quer governar.
Keigh ficou imóvel. Ela não sentia a chuva caindo ao seu redor. Não percebia que estava tremendo de frio e de espanto. A rainha dos demônios ficou sem palavras diante daquilo.
— Por que ele acabaria com a sua própria criação? — perguntou ela, arregalando os olhos. — Por que me faria decidir se lutarei pelos humanos ou pelos demônios?
— Porque ele se cansou — disse o arcanjo num murmúrio. — Deus se cansou de todos nós.