Capítulo 03

1785 Words
A visão da minha sala repentinamente mudou para um espaço totalmente ocupado por prateleiras imensas e cobertas de objetos redondos e brilhantes, feito globos de neve com luz fluorescente azul em seu interior. Os meus olhos correram pelas prateleiras, e quando dei um passo adiante, notei que o meu corpo estava muito mais pesado e musculoso. O rosto de Nikkolai entrou em foco quando olhamos para uma das esferas que brilhavam em tom azulado, e nosso cenho se franziu levemente diante do meu choque para aquela cena. Eu sempre pensei que a nossa ligação só permitia que víssemos algo em tempo real, mas aquilo claramente se tratava de uma lembrança. Eu poderia dizer isto pela maneira com que os fundos da sala pareciam borrados e enevoados, feitos para que eu não tivesse uma reação noção do lugar onde eu estava. Os meus olhos voltaram para a esfera diante de mim, e em vez de Nikkolai chamar a minha atenção, foi o nome cravejado em ouro numa pedra branca que me fez estreitar os olhos. Na pedra podia-se ler “O Apocalipse”. As mãos de Nikkolai se ergueram para o objeto, sem que ele se certificasse de que estávamos mesmo sozinhos, ele segurou a esfera diante de um olho, trazendo o objeto tão perto que até mesmo sua superfície gelada tocou em nossa bochecha. Ele piscou um olho e dentro da esfera nós vimos uma sala que se localizava num arranha-céu, de onde era possível ver as nuvens gordas e densas passando do lado de fora, enquanto um grupo de homens com trajes brancos e maculados se reuniam. As palavras não podiam ser ouvidas, havia um som parecido com o chiado de uma televisão ou a estática de um rádio, embora as bocas dos homens se movessem formando as palavras. No centro da mesa, Nikkolai observou um globo que mostrava uma cidade totalmente em ruínas. Naquele mesmo globo, humanos se atacavam com armas e veículos, enquanto ao redor fumaça e sangue se misturavam. As imagens dentro do globo se misturavam para mostrar centenas de tragédias ao redor do mundo humano, dando a entender que a sua extinção ocorreria muito antes do que imaginavam. Os arcanjos reunidos não pareciam nem um pouco alarmados com a situação, pelo contrário, pude perceber que estavam ligeiramente contentes do livramento do fardo de cuidar e proteger daquelas pessoas por tantos anos. Nenhum arcanjo parecia verdadeiramente abalado com a situação, ninguém além de Nikkolai, porque pude sentir seu corpo estremecendo e o seu coração se apertando diante da imagem. Ninguém além dele fechou os olhos ao notar corpos humanos que se amontoavam numa terra devastada pela guerra e pelo ódio, enquanto todos os outros viraram suas costas para aquele fim terrível. No momento em que aquela profecia foi feita, Nikkolai levou uma mão ao coração e fechou os olhos, sentindo uma dor terrível. A mesma dor que eu podia sentir agora, estando dentro dele e notando que os humanos não tinham a menor noção de que suas orações já não ajudariam em nada. Os seus guardiões já não sentiam qualquer amor por suas vidas. Eles estavam condenados. Porém, ainda que não pudéssemos escutar os sons daquela lembrança, foi notável a agitação entre os membros da mesa. Nikkolai reabriu nossos olhos, e bem no centro do globo uma mulher se erguia com uma espada n***a em mãos, brandindo-a contra os ventos que açoitavam seus cabelos pretos contra o seu rosto. A rainha do inferno se ergueu entre os humanos mortos, ela se colocou diante dos caídos e apontou a espada justamente para os espectadores da profecia, como se pudesse vê-los, como se soubesse o que estava para acontecer. Então tudo aconteceu muito rápido. Nikkolai percebeu que todos na mesa agora estavam olhando em sua direção, alguns com expressões chocadas, outros com rugas de raiva torcendo seus belos rostos angelicais. Eles reconheceram a mulher. Eles sabiam que aquela era a protegida de Nikkolai. Por isso, antes mesmo que eu piscasse, os arcanjos ao lado de Nikkolai pegaram-no por ambos os braços e o levantaram. Retornei para o meu corpo com um suspiro alto e profundo, como se houvesse prendido a respiração enquanto observava o ocorrido pelos olhos de Nikkolai. Ele estava muito próximo de mim, também ajoelhado ao chão, por isso minhas bochechas se esquentaram quando ele falou. — No momento em que a profecia foi feita, eles perceberam que você sabia do que aconteceria, então tentaram me prender nos Ninhos do Céu — disse ele, com a mão ainda tocando o meu rosto e o poder do seu anel espiralando com nuvens de um violeta tão profundo quanto os seus olhos. — Os Ninhos do Céu é o nome que damos para as prisões celestiais. Há um encantamento que enclausura aqueles que devem ser punidos nas alcovas que rodeiam um penhasco, são, na descrição mais infame possível, prateleiras sobre uma montanha que só se pode alcançar com asas em perfeito estado. Uma vez preso naquele lugar, a pessoa não pode sair. Por isso eu demorei algum tempo para retornar e contar sobre a profecia... Eu estava esperando... Eu estava sendo obediente e pacífico, apenas esperando pelo momento em que me libertaria, e então eu pude vir até você. Engoli em seco, tentando imaginar todos os acontecimentos sem me sentir ainda pior em minha recusa para escutar o que Nikkolai tinha a dizer sobrea profecia. Na época, eu achei que ele apenas estava se referindo ao fato de que deveríamos governar juntos. Que estaríamos destinados. Porque o meu coração queria fazer o seu próprio destino, e não haveria ninguém além de Valtrax com quem gostaríamos de viver para sempre juntos. Só que não me ocorreu que a profecia da qual Nikkolai queria me informar poderia colocar em risco a vida dos humanos que me importavam. Daqueles que ainda eram bons, mesmo num mundo tomado pelas injustiças. Eu fui egoísta naquele momento, deixei que a minha dor fosse maior do que qualquer preocupação, e essa negligência estava cobrando seu preço agora. — E você foi expulso por ter me contado o que houve? — perguntei, sabendo que deveria recuar o rosto, que deveria fazer com que a nossa magia unida fosse quebrada e que meu corpo estava errado de se sentir tão confortável ao toque dele. Mas eu não fiz. — Eu fui expulso porque escolhi lutar com você — disse ele simplesmente. Com você, não por você, porque agora não apenas minha vida estava em jogo. Todos os humanos estavam destinados a morrer. Todos eles seriam abandonados, isto se já não estivessem sendo há muito tempo. Eu tentei me lembrar de todas as vezes em que encontrei boas pessoas que não estavam sendo seguidas por guardiões. A maioria daqueles que estavam condenados ao inferno eram as melhores pessoas daquele mundo. Eu nunca tinha pensado que a falta de um guardião não significava exatamente que eles puderam ter sido tocados pelo m*l em algum momento, agora entendia que na verdade o Criador estava retirando suas forças da terra, estava deixando seus filhos vulneráveis, querendo ver se eles haviam aprendido alguma coisa ao longo dos milênios. É claro que eu não me deixava enganar com a esperança de que a humanidade aprenderia a lidar consigo mesma. Nem mesmo os milênios permitiriam que isso acontecesse. A maldade, o egoísmo, as mentiras, eram coisas enraizadas em cada pessoa. Tudo isso via de uma criação sempre igual. Por natureza, éramos a pior espécie ocupando a terra, e não havia como mudar isso de uma hora para a outra. Os humanos estavam sendo condenados sem ter a menor chance de mudar sua história, porque era impossível fazer com que a empatia e o amor reinassem numa terra tomada pela guerra. — Então... qual é o plano? — perguntei, notando que as sobrancelhas de Nikkolai se franziram sem entender a minha reação. — Como é que vamos provar que os humanos merecem viver? Por onde começamos? Eu acho que Nikkolai se sentiu agradecido por eu não ter agido da mesma maneira que alguns meses antes. Porque um brilho de admiração surgiu em seus olhos bonitos, e mesmo quando ele piscou, tentando buscas as palavras, aquilo ainda se mantinha fixo em seu olhar. — Eu não tenho um plano, Keigh — confessou ele, parecendo verdadeiramente abalado. — Por muitos anos eu acompanhei essas pessoas. Por muitos anos eu estive percebendo que elas não se importavam com o menor dos sinais que há muitos anos fora escrito para que não se esquecessem. E todos esses anos, a esperança Dele diminuía. Por todos esses anos, ele assistiu enquanto o mundo tratava de se lembrar dos demônios e dos pecados capitais, culpando-os por agir de maneira impulsiva, quando eles mesmos causavam sua destruição. O Criador perdeu a sua esperança há anos, Keigh. Nem mesmo ele nunca soube o que nós, arcanjos, precisávamos fazer para florescer algum sentimento puro e bom nos humanos. — E ele acha que eu posso fazer isso? — perguntei com uma nota de pânico na voz, inclinando de leve a cabeça. — Ele realmente acha que se eu decidir lutar por eles, abandonando o inferno de uma vez por todas, vou poder despertar um sentimento verdadeiro e legítimo na criação dele? — Ele não acha — disse Nikkolai, afastando levemente seus dedos do meu rosto. — Ele sabe que você vai ter de decidir, e que quando fizer isso, você estará escolhendo um dos mundos para viver. — Isso é impossível. Eu tenho pessoas importantes no inferno e tenho pessoas especiais aqui na terra. — Ele sabe disso. — Então como pode ser tão c***l em querer que eu decida? — perguntei num sibilo irritado. O olhar de Nikkolai se tornou um pouco mais duro, e eu me lembrei de que não era nada gentil ficar irritadiça por ter uma escolha na frente de uma pessoa que foi punida absolutamente por nada. Pelo menos ele ainda estava me dando algum tempo. Só que aquilo mais se parecia com um prazo de despedidas, porque seria impossível fazer com que a humanidade mostrasse alguma compaixão, ou para que os demônios concordassem em defendê-los. — A única coisa da qual tenho certeza, é a de que você lutará, Keigh. — Disse Nikkolai em voz baixa e afetada. — Mesmo que morra tentando. Você lutará pelos humanos. E saber daquilo, mais uma vez, me deixava diante do fato de que não poderia deixar que a história seguisse aquele rumo. Não poderia deixar que meus amigos no inferno morressem. Eu suspirei de exasperação, já muito ciente do modo como a história estava se encaminhando para mais um destino onde eu deveria arriscar tudo para não sofrer. O destino era mesmo uma filha da p**a.
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