— Você não nos disse exatamente o que foi que aconteceu na noite passada — disse Zylah, posicionando uma caneca com cerveja pela metade na mesa de pernas finas entre nós. — Anne e eu simplesmente acordamos em sua casa depois da saída do cinema... Nós duas tivemos sonhos estranhos... O seu amigo misteriosamente voltou a dormir em sua casa quando você nos disse que ele estaria longe por um bom tempo... Falando sério, Kei, o que anda acontecendo?
Ao nosso redor, o bar lotado de um dos locais mais frequentados na cidade soava com risadas, copos que tilintavam contra garrafas e muita conversa trôpega entre os mais bêbados. O cheiro era uma mistura de cigarro e bebidas baratas, que se aliviava um pouco quando a porta se abria e um vento frio passava por nós, que estávamos mais perto da saída. Mesmo assim, nada podia ser feito pelo abarrotamento de gente. Tínhamos sorte de estar do lado da porta, porque aqueles no centro do local estavam sendo empurrados e agredidos sem intenção daqueles que apenas se espremiam para alcançar a mesa de sinuca nos fundos e a caixa de música encostada numa parede curva. Não dava para escutar a música do local em que estávamos, mas a conversa nos arredores era o bastante para dar qualquer privacidade aos assuntos mais delicados e sombrios.
— Sem falar no quanto você nos irritou fazendo perguntas sobre a nossa família — disse Anne, com o rosto afogueado pela cerveja que bebia em pequenos goles de sua caneca grossa. Ela se distraiu momentaneamente quando um homem alto se precipitou para sair do bar e por muito pouco não caiu em cima de nossa mesa. Antes de continuar falando, Anne puxou sua cadeira para o mais próximo possível da mesa, afim de evitar qualquer pancada desnecessária pelos bêbados. — Eu realmente não me senti nada bem ao acordar esta manhã. Tive a sensação de que estava dopada antes de dormir. Nem posso me lembrar como é que isso aconteceu.
Nikkolai não saiu de casa antes que minhas amigas acordassem, porque ele queria estar lá para confirmar a minha versão sobre termos simplesmente saído do shopping e voltado para casa. Ele tinha um talento natural de convencer os humanos a aceitar qualquer versão de uma história. Ele disse que estava tendo um bom desempenho ao lado do humano policial que estava tentando abrir os olhos para o fim do mundo, mas que era uma coisa cansativa, porque ele tinha de usar magia para poder soar com o convencimento necessário. Só que, ou a magia dele estava mesmo tão fraca quanto o cão celestial dissera, ou minhas amigas se recusavam fortemente a agirem feito humanos comuns, porque elas não acreditaram em uma só palavra do que dissemos e nos encheram de perguntas.
Apesar da sua boa vontade, Nikkolai teve de me deixar sozinha com elas, porque ele ainda precisava trabalhar no que quer que estivesse fazendo todos os dias com o humano policial, e ainda dar conta do seu trabalho para o Criador. Ele dissera que era o anjo da morte... que estava lá para recolher as almas dos corpos de humanos falecidos... E eu nem precisei questionar para saber que ele deveria estar em todos os locais de tragédias que apareciam no noticiário. As mortes de causas naturais e misteriosas estavam cada vez mais frequentes. Doenças estavam se espalhando... Crianças quase não nasciam... O mundo inteiro estava se depredando aos poucos. Eu enxergava tudo aquilo, ainda sem saber como é que faria para provocar a redenção dos humanos, ou como é que me prepararia o suficiente em tempo de lutar por eles. Um único cão celestial já foi difícil demais para lidar, eu não queria imaginar em todo o arsenal do Criador de uma só vez.
— Eu trouxe vocês aqui para contar a verdade — falei, cruzando os braços ao redor da minha própria caneca de cerveja. O líquido já estava quente, porque a minha ansiedade para aquele momento tinha atingido o ápice do nervosismo, e minhas mãos suaram tanto ao redor do copo que tive de soltá-lo. Eu lamentei por conta do sangue mágico em minhas veias que me curava de qualquer enfermidade e me proibia de perder os sentidos, porque adoraria estar bêbada para dizer o que precisava. — Nikkolai não é meu amigo. Ele é meu prometido. Estamos destinados a ficar juntos.
Zylah engasgou, mesmo sem estar tomando nada, Anne ficou imóvel. Levou apenas um segundo para que as duas caíssem na gargalhada. Eu fiquei parada, observando enquanto ambas se divertiam com o absurdo. Este era o grande problema. Se elas já achavam impossível a ideia de um homem estar destinado a me encontrar, como é que eu poderia contar sobre o resto da profecia sem parecer uma lunática?
— Keigh, você é demais! — disse Zylah, contendo o acesso de riso e enxugando os cantos úmidos dos olhos. — Eu realmente achei que você diria algo sério.
— Eu estou falando sério e gostaria que vocês mostrassem um pouco de respeito, sabe... — falei com um suspiro cansado.
— Ah, Kei, como é que podemos acreditar num homem destinado para você que some de uma hora para a outra e então aparece reforçando as mentiras que você nos conta? — disse Anne, gesticulando com as mãos. — Seria mais fácil se você contasse tudo de uma vez, em vez de ficar criando mentiras sobre o destino e tudo mais. Sabemos que há um clima entre vocês, não precisa fantasiar tanto.
— Eu estou falando sério — tornei a dizer, cruzando os braços.
— Tudo bem, vamos aceitar que apesar do clima estar fortíssimo, vocês ainda precisavam estar destinados — disse Zylah, forçando a voz para não cair na risada. — E o que isso tem a ver com a noite passada e o jeito super estranho em que dormimos em sua casa?
— Eu tive de usar magia em vocês, por conta do cão celestial — expliquei, ainda de braços cruzados. Para o meu alívio, Zylah parou de achar graça, mas olhou para Anne com visível descrença. — Nikkolai é um arcanjo. Ele é destinado para mim. E, juntos, nós teremos de salvar a humanidade da fúria do cara-lá-de-cima.
— Você quer dizer que Deus está furioso? — perguntou Anne, franzindo o cenho. Ela olhou para Zylah em busca de ajuda, mas nossa amiga apenas desviou o olhar, certamente indisposta em perceber o quanto eu deveria estar louca de dizer aquilo. — Quer dizer que Deus, a misericórdia em pessoa, está furioso com alguma coisa e você e o seu destinado precisam salvar os humanos? Os humanos que Deus criou?
— Sim, Anne. Eu tenho que salvar os humanos, mesmo não pertencendo a este mundo — falei com um dar de ombros.
Zylah tornou a me encarar, agora semicerrando os olhos. Anne ficou em silêncio, então pegou a minha caneca e averiguou a quantidade de alcool que eu poderia ter ingerido. Ficou muito claro que ambas não acreditariam em nada sobre a verdade. Ou eu deveria estar fazendo aquilo da pior maneira possível. Intimamente eu desejei que Nikkolai estivesse ali para me ajudar, porque revelar sobre o fim da humanidade estava sendo mais complicado do que eu pensava.
— Amiga, eu acho que não deveríamos ter feito tantas perguntas enquanto você está bêbada — disse Zylah, mordiscando o lábio inferior. — Eu aceito a ideia do loirinho ser o amor da sua vida, apesar de ser um desconhecido, porque a química entre vocês é nítida, mas... Acreditar que vocês vão salvar a humanidade...
— É por isso que eu nunca contei toda a verdade para vocês. Ninguém acreditaria! — reclamei, batendo a mão na testa. — E ainda tem o fato de que vocês não são humanas comuns, principalmente você, Zy, que viu o cão celestial na noite passada e algumas noites antes dela.
Zylah fez uma expressão de quem fosse rir, mas imobilizou no meio do ato. Ela me observou com a cabeça levemente inclinada.
— Aquele maluco nos seguiu novamente? — ela questionou.
— Qual maluco? — perguntou Anne.
— Sim, ele nos seguiu para o shopping na noite passada. Nikkolai e eu lutamos com ele. Eu tive de deixar vocês inconsciente, mas agora penso que teria sido melhor apenas deixar que vissem, pelo menos tornaria essa explicação mais fácil.
Zylah ficou lívida. Anne deu uma risadinha baixa. Só por uma leve curiosidade, aproveitei que ambas estavam de frente para mim e estiquei as duas mãos, tocando em seus pulsos nus. Anne piscou levemente naquele tom dourado, mas Zylah permaneceu em sua cor bronzeada e bonita. Embora não tenha emitido qualquer vislumbre de uma alma sobrenatural por baixo, os olhos de Zylah se moveram para a tatuagem no meu peito, exposta por minha blusa decotada. Ela observou com muita atenção e choque, como se a serpente entre os meus s***s pudesse dar qualquer significado para o assunto totalmente esquisito que eu trazia para a mesa ou para as minhas origens.
— Mas... por que Deus estaria furioso? — perguntou ela, em voz murmurada.
Anne a observou em choque, como se não pudesse acreditar no súbito convencimento.
— Zy, não leve em conta as coisas que a Kei diz quando está bêbada.
— Eu nunca mais ficarei bêbada, doente, cansada... Meu corpo nunca mais envelhecerá — contei, observando o choque de Anne passar para o rosto de Zylah, por qualquer que fosse o seu motivo, ela parecia estar acreditando agora com a menção do perseguidor. Aquela sua primeira lembrança dele ainda não tinha sido apagada pela minha magia. — Eu não posso sofrer de qualquer dano humano, porque o meu corpo é frágil, mas a minha alma tem séculos de existência. Vocês não podem ficar doentes porque eu sempre estou curando vocês com minha magia. Essa é parte da verdade que eu jamais contei para vocês.
— Kei, isso é loucura — disse Anne, balançando a cabeça. Ela observou Zylah, pálida, com os lábios entreabertos e os olhos perdidos. — Não é possível que alguma coisa desse tipo exista... É sério. Eu tenho certeza que vocês combinaram de dizer isso. E eu só acho que brincadeiras possuem limites, e que vocês duas deveriam parar de dizer coisas estranhas do nada. É igual daquela vez em que Zylah mencionou as bruxas queimadas na fogueira depois do filme que assistimos, jurando de pés juntos que as primeiras mulheres de sua família foram queimadas injustamente, e seus corpos sumiram da pira de fogo porque as bruxas legítimas tomaram aquilo como um sacrifício e usaram toda a sua magia para abençoar as próximas gerações daquelas mulheres. Eu não pude dormir por dias com essa história ridícula, e agora vocês me contam mais uma?
Pisquei, movendo minha atenção totalmente para Zylah. Eu nem me lembrava direito daquela informação. Nunca considerei que Zylah pudesse ser qualquer peça importante naquele meio sobrenatural, porque ela não acreditava em imagens, em bíblias, e nem em deuses. Ela não acreditava na doutrina de uma igreja e muito menos na devoção de seus seguidores. Mas, agora, parando para pensar melhor...
Talvez ela se negasse a acreditar pelo sofrimento de seus antepassados. Talvez as mulheres inocentes de sua família que morreram pudessem ter causado alguma dívida de honra com as bruxas legítimas. Talvez Zylah não fosse uma criatura sobrenatural, mas o sangue mágico e sombrio deveria correr em suas veias. Por isso Nikkolai se impressionou tanto com o que sentiu no corpo dela, por isso a magia angelical dele foi repelida com agressividade quando ele tentou descobrir porque ela se sentia m*l na noite em que eles se conheceram. Ela não se permitia ser tocada por qualquer Divindade. Por seu sangue mágico e por aquelas que morreram injustamente numa fogueira.
— O que você sente quando vai a igreja? — perguntei em voz baixa.
— Eu nunca pisei numa igreja — disse Zylah, rouca. — Nunca consegui entrar. Sempre tive sensações estranhas. Por isso nunca acompanhei vocês duas.
Fazia sentido até um certo ponto. Porque eu era a rainha do inferno e mesmo assim podia entrar livremente na igreja. Mas então isso confrontava a parte em que o Oráculo dizia que meu coração nesta vida era a única diferença em todas as outras. A bondade em meu coração era maior do que a maldade da minha alma. Talvez o ódio das mulheres na família de Zylah ainda a tornassem pecadora diante do Criador. Talvez por isso ela jamais teve um guardião.
— Espera aí... O que é que a igreja tem a ver com isso? — perguntou Anne. — Eu frequento a igreja. Eu carrego uma bíblia na bolsa. — Só para enfatizar, ela pegou uma miniatura do livro sagrado e folheou diante de nós. — E vocês são minhas amigas. São minhas irmãs. Como é que podem ficar falando dessas coisas e achar que são reais se convivem tanto comigo?
— Eu acho que vou vomitar — disse Zylah, abaixando os olhos e averiguando as próprias mãos. Ela tremia. — Eu não me sinto bem.
Eu dei uma olhada no entorno, só para ter certeza de que não encontraria outro cão celestial por perto. Anne continuou resmungando, falando que deveríamos ter bebido além da conta para tentar manchar a imagem de Deus, e que ela não podia acreditar que tínhamos perdido todo o rumo da conversa graças à minha mania de fugir dos assuntos sérios. Eu me virei para retrucar, pronta para entrar num debate muito sério sobre religião, quando senti algo em meu rosto.
Eu me virei quando o toque desceu para os meus s***s, mas não havia nada. Por mais que as pessoas se esbarrassem para transitar pelo bar, ninguém se tocava daquele modo como me senti tocada. Mesmo assim, no segundo seguinte, tornei a sentir alguma coisa deslizando em meu rosto, como um gesto de carinho indesejado. O desconforto me fez encolher, e tornei a sentir uma mão fantasma em contato com meu corpo, agora em minha perna, subindo cada vez mais. Eu estava usando uma saia jeans e curta, então cruzei as pernas, mas o toque permaneceu. Eu me levantei depressa, achando seriamente que alguma entidade que eu não poderia ver estaria me assediando de alguma forma. O toque se espalhou para os meus braços, pescoço, barriga.
Mas, quando meus olhos traçaram uma linha reta em direção à mesa de sinuca mais longe, pude entender exatamente as sensações e o desconforto pelo toque invasivo. Nikkolai estava encostado na mesa de sinuca, com um taco em mãos e uma expressão nada amistosa no rosto, e diante dele estava uma humana com roupas indecentes e mãos que passeavam pelo seu corpo, exatamente nos mesmos pontos em que me incomodavam.