Minhas amigas permaneceram naquele estado de hipnose até chegarmos em casa. Elas obedientemente saíram do carro atrás de um Nikkolai que mancava e tentava se equilibrar ao se segurar em meus ombros, e eu que m*l conseguia caminhar sem cambalear abaixo do arcanjo pesado. Eu coloquei todos dentro de casa e minhas amigas se sentaram no sofá, silenciosamente aguardando as próximas instruções. Era muito estranho vê-las daquela forma. Tive a impressão de que estava violando seus corpos por ter tomado aquela atitude, e esta seria mais uma das coisas pelas quais não saberia como me desculpar quando revelasse toda a verdade.
Os grandes olhos castanhos de Anne estavam paralisados, mas eu podia enxergar a luz neles, como se ela estivesse lutando para entender o que acontecia. Zylah, por outro lado, estava com uma expressão mais sonolenta e receptiva. As duas me observaram, como se fossem criaturas adestradas e que aguardavam novas ordens. Eu não conseguia tocar no assunto naquela noite, e não podia deixá-las verem Nikkolai naquele estado. O sangue dele gotejava no meu piso limpo, como fez em poucos dias antes.
— Durmam — falei em voz baixa, e as duas mulheres imediatamente caíram frouxamente no encosto do sofá. Nikkolai me observou com descrença. — Eu sei, tenho que contar, estou demorando demais. Eu sei. Mas também entendo como você se sentia. E espero que você não me julgue.
Nikkolai nem quis ouvir o que eu falava, ele se encaminhou para o lavabo e saiu levando a caixa de suprimentos médicos para a cozinha. Eu o segui, observando-o retirar a camisa, e rasgar mais alguns bons palmas da calça jeans. Eu não achei que houvesse ferimento pior do que aqueles que tinha visto ao recebê-lo em minha casa, mas eu estava enganada. O corte em seu peito era tão profundo que se eu não estivesse enganada, podia ver com clareza o vislumbre de suas costelas abaixo de pele e músculos, atingindo um ponto tão profundo que quase alcançava o seu coração. O corte sangrou pelo corpo de Nikkolai como se fosse um jato de chuveiro, derrubando tudo sobre ele. O seu rosto não relava nenhuma raiva pelo ocorrido.
Nikkolai não pediu minha ajuda para colocar a linha na agulha e começou a fechar a pele que se soltava entre as marcas de garras, endurecendo o maxilar para não se render à dor, pois, pelo tamanho de sua mão e a falta de agilidade com a agulha, mais tempo era exigido para a suturação; sem falar no sangue que pingava sobre sua mão e fazia seus dedos escorregadios. Ele fechou os olhos por um momento, claramente falhando em sua tentativa de parecer forte e inabalável, e eu me aproximei para tomar a agulha de suas mãos. Ele permaneceu de olhos fechados, encostado na pia da cozinha, e colocou as mãos no balcão para ter onde se apoiar e apertar enquanto eu fechava sua pele. O peito de Nikkolai subia e descia com a respiração pesada, e ele mordeu o lábio inferior com muita força quando cortei a linha com meus dentes e me abaixei para costurar o machucado em sua perna.
Quanto mais eu olhava, pior ficava. O sangue estava descendo com tanta força ali embaixo, que eu ainda me impressionava com a quantidade de fluídos que um corpo angelical poderia conter. O chão aos pés de Nikkolai formou uma poça, e meus joelhos se mancharam enquanto eu costurava e tentava unir sua pele. Ele estremeceu e bateu com a mão na borda da pia quando eu puxei de leve a linha para manter o nó. Eu me ergui para pegar o seu pulso com uma mordida larga e profunda — que era de longe o ferimento mais básico e bobo — e me coloquei a costurá-lo.
Nikkolai se manteve de olhos fechados, a cabeça levemente inclinada para trás e o rosto endurecido numa expressão amena. Ele estava ofegando baixinho, como se tivesse corrido uma maratona, ou... feito algo menos decente. A ideia surgiu muito rápido na minha mente, por conta do som que ele fez ao tentar se conter pela dor, e ele abriu os olhos quando eu parei de costurar e observei o seu rosto. Os lábios apertados para reprimir um som mais alto, a respiração presa em sua garganta que oscilava, o peito nu e coberto pelo sangue. Então tive de balançar a cabeça para afastar os pensamentos, embora soubesse que ele havia notado, pois no segundo seguinte, abriu seus olhos.
Eu cortei a linha, tomando esta como uma desculpa para baixar os olhos. Agitei as mãos, acertando Nikkolai com a minha magia e limpando os vestígios de sangue em seu corpo. A calça permaneceu escurecida pelo sangue, mas o abdômen forte estava novamente naquela cor pálida habitual, e nada mais escorria de sua pele. Nikkolai me observou, intrigado e um pouco incomodado. Ele massageou a costura em seu pulso, tentando aliviar a dor que ainda restava naquela região.
— Eu não vou julgar você — disse ele baixinho, no que eu nem lembrava do que estava falando antes de me perder reparando em seus detalhes mais íntimos. — Eu sei que é uma situação difícil com as suas amigas... Sei o que houve com Annelise. Ela pode ter sérios problemas para perdoar você, mas ela vai fazer, ela tem um coração muito bom. Ela confia nas palavras do Criador e sabe que sempre deve amar ao próximo, independentemente de suas ações.
— É, mas ela acredita nas palavras dele porque acha que vai para o céu — retorqui, abrindo um sorriso irônico. — Eu duvido que ela me perdoe ao saber que tudo isso só aconteceu por conta do livro que eu criei. Se eu nunca tivesse criado aquele livro, ela jamais teria cruzado seu caminho comigo. Nada disso estaria acontecendo.
Nikkolai pareceu conter as palavras que gostaria de dizer realmente, e demorou um tempo para escolher as próximas. Ele deixou de massagear o seu pulso e colocou ambas as mãos em meus ombros, escorregando levemente os dedos pela minha pele desprotegida pela blusa de alças finas.
O gesto era amistoso, amigável, nada demais. Só que a magia em meu corpo, meu sangue, minha alma, interpretou o ato como a carícia que eu tanto aguardei por muito tempo. Definitivamente, aquela barreira estava ruindo aos poucos, e isso ficou muito claro quando, em vez de me afastar e quebrar o contrato, eu me aproximei o suficiente para que não houvesse espaço na parte inferior de nossos corpos. A barriga nua de Nikkolai encostou na altura do meu tórax, e ele não pareceu reparar no modo como meu corpo pareceu aquecido e a respiração pulsando velozmente em meus pulmões. Ainda havia inocência em seus olhos e em seu gesto, de modo que quase me senti indecente.
— Eu quero que você entenda, Keigh, que, por mais que você nunca tivesse escrito aquele livro, o destino destas duas mulheres ainda seria o inferno — disse ele numa voz calma e suave, ainda deslizando os dedos em meus braços. — Se você nunca tivesse conhecido nenhuma delas, talvez mudasse um certo rumo da história, mas jamais alteraria o fato de que elas jamais subirão. Deixá-las próximas de você, e protegê-las, foi o maior ato de bondade que você poderia ter feito. Mesmo depois de tudo, você ainda é boa.
— E você, mesmo depois de tantos anos observando a rainha dos demônios, permanece inocente... — murmurei, sem conseguir me conter. As sobrancelhas de Nikkolai se franziram, mas ele não olhou para baixo, para o modo como estávamos juntos... Embora o poder em nossos corpos exalasse ao nosso redor como redemoinhos de galáxias brilhantes. Eu queria poder observar o modo como o nosso poder girava ao nosso redor, porque deveria ser surpreendente, algo tão bonito quanto uma obra-prima. Mas eu fiquei distraída com os cabelos louro-brancos de Nikkolai se agitando com aquela brisa do nosso poder, e levei meus dedos para tocá-los. — Eu não entendo como é que o Destino pode ser tão traiçoeiro, mas, obrigada por ter escolhido ser leal a mim, Nikki. Você não tem ideia do quanto isso me deixou feliz. Pelo fato de você jamais me deixar sozinha.
— Eu disse que nunca deixaria — disse ele, abrindo um sorriso largo. Eu não reparei que estava repetindo o gesto. — Você é a minha luz nos tempos de escuridão, Keigh. Eu jamais vou deixar de estar ao seu lado, enquanto você me iluminar. Não esqueça e não duvide disso.
— Não esqueço — prometi, desfazendo o sorriso e abaixando a mão para tocar o seu rosto. A pele de Nikkolai estava macia como um tecido caro, e suave como a mais bela das canções. — Eu juro, por tudo que há de mais certo em minha vida, que vou contar a verdade para as minhas amigas até amanhã à noite. Vou tomar este tempo para descobrir as palavras certas e vou contar tudo de uma vez, só tenho de arranjar um jeito de fazer isso sem que elas queiram me m***r.
— Estamos de acordo — disse ele, aproximando-se e dando um beijo em minha testa. Eu fechei os olhos, porque a carícia foi como um jato de energia que eletrizou tudo dentro do meu peito. Ele se afastou, mas o toque permaneceu. — Você precisa de ajuda para levá-las ao seu quarto?
Eu pisquei, sem saber ao certo como é que fazia para as palavras saírem da boca. Apesar de ser uma reação muito boba, eu não conseguia me sentir tão patética assim. Nikkolai era uma parte pequena e bonita de inocência que eu já não possuía. Um amigo que em algum momento se tornaria amante, mas que jamais deu a entender que tinha alguma intenção maior do que apenas me acompanhar e estar presente. Eu não me sentia menos do que grata, por tê-lo, por saber que ele também era a minha luz em noites escuras.
— Eu... é... sim, eu preciso de ajuda. Se você puder carregar uma delas — falei de modo tímido, dando um passo para trás. — Principalmente Anne, ela adoraria saber que algum dia um anjo a carregou nos braços. Zylah acordaria se você tentasse tocá-la, ela rejeita toda a ideia de que existam criaturas celestiais.
Nikkolai deu uma risada contida, embora o som tenha sido contagiante, grave e sincero. Eu não deveria me sentir daquela forma por cada som dele, mas não tinha jeito. O meu corpo não queria obedecer a minha mente. E meus lábios se esticaram em mais um sorriso que não reparei que estava dando.
Observei Nikkolai a um passo de distância; o corpo grande e bem definido. O rosto bonito e sincero. Os lábios que sorriam facilmente e os olhos que brilhavam feito um corpo celeste. Por um momento, por um mísero segundo, me esqueci completamente que meu coração já possuía um dono. Eu me esqueci completamente que havia outra coisa no mundo além de Nikkolai, e, por um momento, quando ele me ofereceu a mão e me levou para a sala, eu me esqueci que só tinha aceitado trabalhar com ele para trazer outro homem de volta.
Quando Nikkolai deitou Anne no colchão perto da janela, eu o acompanhei para fora do quarto, no alto das escadas ele me beijou novamente na testa, demorando-se um pouco mais. Fiquei pensando se ele sentia a mesma corrente elétrica que eu. Se sentia a magia rodopiando ao contato da sua boca em qualquer parte do meu corpo. Se ele conseguia sentir o cheiro delicado e suave, como o de um perfume caro, enquanto nossas magias se uniam de um modo muito mais íntimo do que normalmente. Porém, se pudesse notar, ele não demonstrou.
— Durma bem, minha luz — disse ele, virando-se e descendo as escadas.
Eu entrei no quarto e fechei a porta, encostando-me na soleira enquanto o escutava se colocar dentro do saco de dormir. Esperei Nikkolai fazer a sua costumeira oração para o seu mestre e então notei que ele também estaria apurando os ouvidos para saber se eu estava deitada e pronta para dormir.
— Boa noite, prometido — sussurrei, sentindo um leve arrepio na nuca, onde jurei que dedos fantasmas teriam acariciado o local.