Capítulo 15

1912 Words
O meu sangue ferveu. Não só por ciúmes, mas porque a maneira com que aquela mulher tocava em Nikkolai me fazia pensar em todas as vezes em que ele teve de sentir o toque de Valtrax em meu corpo. Eu me senti envergonhada, porque apenas naquele instante, tive noção da forma com que aquele elo entre nós funcionava. Ele sempre fez mais do que enxergar e ouvir o que se passava dentro de mim, ele podia sentir tudo. E eu não sabia qual tipo de força de vontade seria necessária para ignorar os atos pecaminosos que a sua alma gêmea estaria cometendo, mas Nikkolai deveria ser muito devoto para não ter tido um ataque de raiva por viver séculos sabendo o que Valtrax fazia e a forma com que fazia, ou por nunca ter desistido do seu lado santificado e ter se rendido ao pecado que também sentia acontecer. De qualquer maneira, mesmo me sentindo com raiva e com embaraço, eu ainda continuei observando enquanto ele era assediado pela mulher com roupas indecentes. Ela tinha cabelos cacheados e loiros, e estava de costas para mim, totalmente envolvida na sua missão de levar Nikkolai para qualquer lugar além daquele bar. Ela o pegou pelo cinto da calça, e por muito pouco não tocou na mesma região do zíper de sua calça, Nikkolai conseguiu empurrar a mão dela, mas não conseguia fugir dos toques que ela fazia em todo o resto do seu corpo. Ao lado deles, o policial que eu reconhecia da noite em que dormi na prisão estava rindo e abraçado com duas mulheres, incentivando Nikkolai a fazer o mesmo. Parado e encurralado contra a mesa de sinuca, Nikkolai continuou observando o rosto da mulher, sem desviar o olhar, embora seu rosto demonstrasse todo o seu desagrado e suas mãos tentassem segurar as mãos dela. Se eu não fosse tão acostumada com o corpo dele, o corte de seus cabelos, e os olhos que brilhavam mesmo de longe... Eu teria facilmente confundido as roupas sociais e os óculos de grau que ele usava. Possivelmente só usava aqueles óculos para se encaixar no meio entre os humanos que ele tentava convencer sobre o fim do mundo, mas ele não deveria saber que ficava ainda mais bonito naquele estilo despojado e formal. Fiz menção de me mover na direção dele, e seus olhos imediatamente se ergueram para os meus. Ele não pensou em nada para me convencer de que não estava interessado na humana que tentava de todas as formas ter a sua atenção, se manteve acuado e parado, observando meu rosto. Talvez ele já soubesse que eu estava ali há muito tempo... Provavelmente teria escutado a minha péssima maneira de contar para minhas amigas que nossas histórias estariam interligadas pelo inferno. — Nem pense em fugir de nós — disse Anne, agarrando-me pela mão. Eu desviei a minha atenção para ela, fazendo careta. — Você soltou uma bomba desse tipo e está fugindo enquanto nós ficamos aqui com cara de idiotas. Sente-se, Kei, e nos conte exatamente o que é que você tanto esconde. Eu voltei a minha atenção para Nikkolai, e agora ele tentava aconselhar a mulher a não beber tanto, porque ela estava passando dos limites. Ele continuou sério, mesmo que seu colega de trabalho estivesse gargalhando pela sua falta de jeito para evitar uma pessoa, e novamente fiz menção de ir até lá, mas Anne me segurou com mais força, de modo que até mesmo cambaleei contra a mesa próxima. — Ela já contou, Anne — disse Zylah, engolindo várias vezes, como se estivesse se engasgando com a própria saliva. — Eu acredito nela. — Você não acredita nem em Deus, como pode acreditar nas besteiras que a Kei diz quando está bêbada? — retrucou Anne, ainda segurando em meu braço. — Se ela pelo menos dissesse algo que fizesse sentido, eu também acreditaria em alguma coisa. Mas eu não posso acreditar em pessoas destinadas, um Deus com raiva, e uma humanidade para ser salva, se ela não me dá argumentos suficientes para isso. — Não precisa de argumentos, ela é nossa amiga. Temos que acreditar nela! — insistiu Zylah, tomando um gole profundo de cerveja e se erguendo também. — E eu acho que acreditar na minha melhor amiga não é tão difícil quanto acreditar numa entidade que você nem pode ver, Anne. Anne se ergueu, ainda me segurando, ainda me impedindo de alcançar Nikkolai. Os seus dedos tremiam contra o meu pulso, porque mencionar Deus de forma pejorativa ou ofensiva sempre despertava o pior lado de Anne. Ela era muito devota. Muito respeitosa. Por isso ainda alguma parte de sua história não se encaixava. Ela não podia pertencer ao inferno. Ela era a pessoa que eu mais acreditaria que algum dia se tornaria um arcanjo. A fé e a esperança que ela depositava em Deus era demais para que fosse condenada ao inferno. Se Nikkolai estava novamente certo, ela poderia ter nascido sem um arcanjo por já estar destinada ao inferno, mas o que teria feito com que isso acontecesse? Como é que uma criança nascida quinhentos anos depois da alma em meu corpo poderia estar prestes a usurpar o meu trono? — Muito bem! Estraguem a noite, então — disparou Anne, soltando meu braço. Ela guardou a pequena bíblia esquecida em cima da mesa de volta na bolsa e se preparou para ir embora. — Vocês sempre se unem para me deixar com medo dessas histórias idiotas. Eu nunca mais vou sair com nenhuma de vocês. — Ah, não! Você não vai embora só porque estamos falando do seu todo-poderoso! — disse Zylah com dentes cerrados. Ela cambaleou um pouco, e engoliu forte, como se reprimindo qualquer enjoo. — Ele nem existe, Anne. Por que você acredita em tudo, até numa coisa que jamais viu, e não acredita na nossa amiga? Eu vi aquele homem nos seguindo! Keigh sempre fez coisas estranhas. Ela só está explicando os motivos para isso. Eu acho que deveríamos escutar. — Você mesmo não diz que só acredita naquilo que vê? — indagou Anne, enfurecida. — Então onde está a prova de que ela tem que salvar a humanidade? — Eu acho que descobriríamos se você parasse de ser tão insuportável com as suas crenças, Anne. Pelo amor! — gritou Zylah. A barulheira no bar era tanta que ninguém estava dando atenção para a discussão delas, mas eu até mesmo desisti da ideia de ajudar Nikkolai do modo convencional. Eu agitei meus dedos, fazendo a minha saltar como um raio na direção da humana sem escrúpulos e, com um gritinho esganiçado, ela desabou no chão ao sentir a pontada do golpe nas costas. Enquanto as pessoas ao redor dela se perguntavam o que teria acontecido, e Nikkolai teve tempo para se afastar, eu me coloquei entre Zylah e Anne. — É assim que uma guerra sempre começa a dar errado — resmunguei, tentando impedi-las de falar. — Não podemos brigar entre nós! Temos que nos manter unidas para poder encontrar uma forma de salvar a todos. — Chega. Eu vou para casa — disse Anne, tentando passar por mim, eu a empurrei de volta. — Keigh, eu não quero mais escutar essas besteiras. Não quero brigar com vocês. Me deixem ir embora. — Não, você não vai — falei em voz alta, virando-me para Anne. — O que você precisa para acreditar em mim? — Não preciso de nada. Eu preciso da minha cama e de uma boa noite de sono. — Ela insistiu em tentar passar por mim, mas Nikkolai se aproximou e ela parou, mesmo que ele não dissesse nada, mesmo que não a tocasse. — O que você faz aqui? Está também fazendo parte do joguinho apocalíptico? — Não é um jogo, Annelise — disse ele em voz grave. De perto, notei que seu rosto estava afogueado, provavelmente pelo constrangimento em ser atacado por uma mulher. Ele não tinha ficado envergonhado quando eu encostei nossos corpos com mais i********e do que deveria na noite passada. — Você precisa confiar em Keigh. Precisa entender que o Criador está mesmo furioso com a humanidade. Apenas nós dois, Keigh e eu, podemos fazer alguma coisa. Mas vocês precisam entender que são importantes para o mundo dela. — Qual mundo? — perguntou Zylah, prendendo a respiração. — Por favor, não fale o que eu estou pensando. Por favor... Ah... Eu não me sinto nada bem. Eu acho que vou mesmo vomitar. Vocês estão sentindo isso também? — Deveríamos ter esse tipo de conversa em um lugar menos... caótico — disse Nikkolai, me lançando um olhar de repreensão. — Por que decidiu falar com elas no meio de todos os humanos? — Porque eu achei que estar num lugar mais cheio pudesse evitar que elas quisessem arrancar minha cabeça! — retruquei com exasperação. Então lancei um olhar ao redor, gesticulando com as mãos. — Além do mais, eu conferi se existiam guardiões por perto. Estávamos seguras. Nenhum humano perceberia o que estávamos dizendo, assim como não percebem agora. — Sim, Keigh, mas você se perguntou por que é que todos estes humanos estão sem um guardião? — questionou Nikkolai. — Se perguntou como é possível que ninguém possa estar sendo escoltado e observado? Pisquei. Não pude encontrar uma resposta. Eu ainda me convencia cegamente de que as pessoas abandonadas por arcanjos eram apenas aquelas que já passaram por algo muito complicado na vida e que isso pudesse ter desagrado o Criador. E considerei que todas aquelas pessoas apenas costumavam frequentar aquele lugar há bastante tempo, e por isso não eram dignas de p******o, já que acabavam aos poucos com suas vidas em torno do álcool e da indecência. — Guardiões? — questionou Anne, olhando para Nikkolai com mais atenção do que antes. — Guardiões no sentido da bíblia? — Ah, eu me sinto estranha — disse Zylah. — Preciso de um banheiro. Zylah se afastou antes que pudéssemos evitar, ela sumiu pela porta que levava até os sanitários e Nikkolai ergueu a cabeça para o teto, virando levemente o rosto, como naquela expressão que sempre fazia ao tentar escutar alguma coisa vinda dos céus. Ele se virou para Anne. — Preciso que vá para o carro de Keigh e nos espere lá — disse ele em voz grave e séria. Para a minha surpresa, Anne assentiu e prontamente saiu do bar, como se estivesse hipnotizada outra vez, mas não antes de Nikkolai agitar uma das mãos com um gesto de cruz e fazer com que a magia recaísse sobre Anne como um manto azulado; naquele tipo de escudo protetor. Nikkolai se virou para mim, ele ignorou meu choque e minhas tentativas de falar sobre Anne. — O Criador mandou um soldado para cá. Ele acabou de pousar no telhado. — Na verdade, eu já estou sentado — disse uma voz máscula e muito grave. — Mas achei muito interessante que vocês nem notaram a minha presença por todo esse tempo. Nikkolai e eu nos viramos, apenas para encontrar Kleyphon com as pernas para cima da mesa ao nosso lado, preguiçosamente sentado na cadeira que era pequena demais para a sua estatura e imponência. As asas brancas e imensas do arcanjo estavam abertas, mas ele não se preocupava, apenas nós podíamos vê-lo, e os humanos que se esbarravam para sair ou entrar no bar desviavam do caminho dele como se realmente houvesse uma barreira mágica no local em que ele se encontrava. Meu sangue gelou.
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