Capítulo 12

2405 Words
Nikkolai se virou para mim no momento em que o cão celestial naquele frágil corpo humano deteve seus passos há poucos metros de distância. Meu arcanjo fez o sinal da santa Cruz em minha testa e meu corpo inteiro tremeu, como se recusando o gesto, embora fosse magia pura que estivesse entrando mim. O poder de Nikkolai me envolveu, como uma segunda pele de tom azulado. Quando Nikkolai afastou a mão, o anel em seu dedo reluzia com o brilho violeta de nossas magias unidas. — Leve suas amigas — pediu ele, dando um passo para trás. — Eu cuido disso. Ele não esperou por uma resposta. Nikkolai se virou para o cão celestial, recebendo um sorriso desdenhoso e muito c***l. Nas histórias que eu me lembrava daquela vida dentro de um convento, todos os anjos eram bons e misericordiosos. Deus não punia e não deixava de perdoar quem se arrependesse de coração. Mas, na vida real, na minha vida real, a história era bem diferente. O cão celestial tinha uma aura tão maldosa quanto as piores criaturas do inferno, e batia seus dedos afiados enquanto olhava para Nikkolai como se ele fosse a sua melhor refeição. Nikkolai avançou, e o cão celestial se manteve imóvel. A espada de Nikkolai atingiu o adversário bem em cheio no peito, atravessando-o, mas saindo limpa pelo alto de suas costas. O cão apenas observou a lâmina entrar e sair, mantendo o sorriso selvagem nos lábios largos. Ele moveu uma única mão, fechando-a em garras invisíveis, e Nikkolai recuou com um chiado de dor. — Você está fraco, arcanjo — disse o cão, abrindo um sorriso que mostrava todos os seus dentes. Nikkolai o circundou, procurando o melhor ângulo para atacá-lo outra vez. Nenhum dos dois reparou que eu ainda estava encostada na parede, ao lado de um cilindro de extintor. Eles se atacaram outra vez, e, apesar de Nikkolai ter cortado a barriga do cão, ele apenas estalou dois dedos e fez o braço de Nikkolai girar ao ponto de quase quebrar. — Você não tem metade da sua magia depois que desertou. Você só é necessário porque tem dons demais para ser desperdiçado no inferno. Caso contrário, você estaria queimando junto com a meretriz. — Eu aceitaria de bom grado queimar por ela — disse Nikkolai, mordendo seu orgulho a medida que tentava recolocar seu braço de volta no lugar. — Na verdade, aceitei queimar há muito tempo, como todos vocês já perceberam. Um trovão cortou o céu, soando tão alto que o chão do estacionamento tremeu. Claramente a cena estava sendo observada, e ninguém pareceu muito contente em constatar o óbvio perante as escolhas de Nikkolai. O meu e******o coração se encheu de gratidão, mas eu sorrateiramente me movi para o extintor, tentando arrancá-lo da parede. Com um pouquinho de força sobrenatural, consegui puxar o extintor, e segurei com firmeza. Talvez algum dia eu aprendesse com Nikkolai a conjurar armas mais úteis do que qualquer coisa mundana. Num súbito humor n***o, relembrei da vez em que entrei numa floresta para caçar demônios armada com nada mais do que um pé-de-c***a. — Não precisa aceitar, vai acontecer de qualquer forma — disse o cão, ainda soando com ironia e rispidez. Nikkolai não parou um segundo de se mover, monopolizando a atenção da criatura, querendo prolongar a iminência da luta para que eu pudesse estar longe dali. Eu queria mesmo ter a coragem de deixá-lo sozinho, mas não conseguia. Eu não podia me mover. O meu corpo se recusava a obedecer a minha mente. Parecia inadmissível a ideia de deixar Nikkolai sozinho, era como se eu soubesse que ele precisaria de ajuda. — Ela tenta proteger aquelas duas almas perdidas como se pudesse fazer mais do que o Destino já escreveu para todos. Ela está tentando ser mais do que o Criador, quando não é mais do que uma criatura das profundezas do inferno. Ele quer que ela saiba que suas tentativas não surtirão efeito. Aquelas duas almas perdidas já são do inferno. Ela não pode mudar isso. Ela não pode salvá-las. — Por que você está aqui? — perguntou Nikkolai. — Porque ele quer você de volta — disse o cão celestial. — Ele precisa que você esteja nos céus, não correndo atrás da meretriz do inferno. Você não pode pecar, arcanjo. Ele precisa de você. — Eu já pequei — disse Nikkolai, e mais um trovão soou, meu peito se encheu com um arrepio estranho. — No momento em que desertei, eu pequei. Eu fiz minha escolha. Não sou leal ao Criador, sou leal à minha protegida. — Sua protegida tem questões próprias para resolver — disse o cão com um sorriso m*****o. — Ela está apenas tentando encontrar um jeito de trazer o pecado da luxúria de volta, arcanjo. Você é apenas uma peça. Volte para o seu mestre. Volte para quem o ama. — Não voltarei — disse Nikkolai com determinação. — Eu não voltarei para os céus. — Então eu devo levá-lo a força — disse o homem com um dar de ombros. — Embora não seja tão necessária uma força verdadeira, já que você está tão debilitado e carente de magia. Nikkolai não moveu a cabeça em minha direção, mas eu sabia que ele estava tentando decifrar as minhas emoções diante daquela afirmação. Eu procurei pelo meu carro, encontrando-o numa vaga bem longe da saída, onde Anne e Zylah ainda se sentavam obedientes no banco de trás. Minhas amigas, enfeitiçadas pela magia infernal, não tinham a mínima ideia de que faziam mais parte de toda aquela história do que imaginavam. Não era atoa que Zylah havia visto o homem assim como eu... Não era atoa que Nikkolai tenha sentido magia infernal além da minha... Ambas estavam destinadas... E eu deveria ter deixado tudo claro antes que a situação se tornasse caótica. Tive tempo suficiente para fazer alguma coisa e não fiz. Somente naquele momento eu pude entender Nikkolai. O mesmo receio que ele teve em me contar sobre os planos do Destino para o meu futuro, eu estava tendo com minhas melhores amigas. Eu demorei tempo demais. Deveria ter contado tudo quando passei a confiar nelas. Porque em algum momento eu teria de voltar para o inferno. Em algum momento elas perceberiam que aquele corpo humano que escondia uma alma sobrenatural não adoecia e nem envelhecia. Em algum momento elas perceberiam o odor enjoativo da minha magia sempre agindo para curá-las de alguma enfermidade. E eu deveria ter contado tudo. O meu coração se apertou, mas tive a sensação de uma mão amigável afrouxar aquele aperto, como se Nikkolai estivesse sentindo e tentando me acalmar. Só por isso, só porque eu entendia exatamente o que ele tinha feito, eu me coloquei em movimento. O cão celestial me olhou, e ele não reparou quando Nikkolai se aproximou para golpeá-lo contra a garganta. A arma de Nikkolai atravessou o homem e ele gritou, mas eu agitei as mãos para fazer com que o som se mantivesse apenas ao redor de nós, para que nenhum humano curioso descesse até o estacionamento para entender o que acontecia. Não teríamos horas. Não teríamos meios para cansar um cão celestial. Nikkolai não tinha a sua magia por completo, e eu nunca estive num confronto direto com uma criatura feita para m***r e protegida por Deus... Então estávamos em desvantagem. O cão celestial se afastou quando Nikkolai tornou a puxar a adaga, mas ele apenas teve de morder o ar para que Nikkolai soltasse outro chiado de dor, e cobrisse com a mão livre um sangramento repentino que surgiu em seu pulso. À distância, aquele monstro em forma angelical mordeu o pulso de Nikkolai, tão fundo que o sangue submergiu feito um gêiser. Nikkolai tentou empunhar a adaga novamente, mas foi como se todas as forças do seu braço sumissem pela mordida. O cão ergueu uma mão no ar e a fechou levemente, antes de descer de uma só vez, desferindo um golpe como se garras enormes atingissem o peito de Nikkolai. O arcanjo arquejou, mas se manteve de pé, cambaleando minimamente. O poder no anel de Nikkolai estava naquele tom violeta, mas parecia não fazer diferença alguma. Ficou muito claro para mim que ele não conseguia lutar. Fosse por não ter a capacidade de ir contra àquelas criaturas que ele aprendeu a amar e aceitar como seus, ou por uma questão Divina, ele simplesmente estava tentando ganhar tempo para mim, enquanto apanhava. Eu me coloquei diante dele, com o extintor na mão e uma coragem que nenhum humano teria naquela situação. O cão celestial abriu um sorriso largo, embora não estivesse dando a risada debochada que eu achei que estaria dando ao me ver sem armas, sem saber como derrotá-lo, e com um arcanjo ferido que não podia lutar para me salvar. O poder de Nikkolai tremeluziu pelo canto dos meus olhos, dando-me um pouco mais de coragem para o momento. — Ele tem medo de mim, o seu Criador — falei em voz alta, ecoando a entonação ríspida e soberba por todas as paredes. O céu trovejou mais uma vez. Dei um sorriso. O cão celestial meneou a cabeça. — O seu Criador tem medo de que a humanidade se curve para a rainha do inferno. É por isso que ele tenta me desacreditar. Mas eu sei ao que estou destinada, cão. E aqui vai um aviso... Se ele quiser levar Nikkolai de volta, precisa me levar também. — Sim, a cabeça da meretriz também possuí uma oferta valiosa — disse o cão, abrindo os dentes como se novamente fosse abocanhar o ar. Ele fez, mas o escudo que Nikkolai colocou ao meu redor resistiu. O cão me observou com ainda mais determinação destrutiva. — Eu me contento em levar dois por um. O cão tornou a fechar seus dentes no ar, e eu ergui o extintor ao atirá-lo com a força de uma bala na direção dele. Pela distância em que estávamos, seria impossível que o extintor alcançasse o alvo, mas, graças à minha magia, eu segurei o objeto no ar com um impulso de poder e o atirei em várias pancadas contra a cabeça do cão, produzindo sons estalados e tilintantes em cada momento que o alvo era atingido. A segunda mordida que ele dedicou em minha direção não me acertou, porque Nikkolai se colocou em meu caminho para recebê-la, e apenas neste momento ele caiu, porque a mordida abriu um r***o em sua calça jeans e o sangue jorrou. O meu ódio foi tanto que o cão foi esmagado pelas rodas do carro que arrastei sobre ele com magia, e eu peguei a adaga que caiu das mãos de Nikkolai antes de me aproximar. O cão estava se divertindo com as pancadas, rindo com prazer pela magia sendo desperdiçada para manusear um carro a atropelá-lo, claramente me achando fraca e inútil. Com um movimento do pulso, o extintor erguido sobre sua cabeça girou sua mangueira para a boca do cão, enchendo-a com o ** químico para o combate de incêndios, enchendo o seu corpo e os arredores com o material, antes que eu lançasse minha magia sobre o **, queimando-o com chamas de tom magenta. Apesar do fogaréu que se ergueu da boca da criatura caída, ele permaneceu vivo. Depois, tornei a erguer o extintor e o lancei novamente contra a cabeça do bicho. Ele não podia morrer, mas isso não queria dizer que não podia sentir dor, e isso ficou óbvio quando ele estremeceu e cuspiu as chamas que ainda ardiam dentro de sua boca. Com as mãos levemente fechadas, disparei o meu poder sobre o cão, envolvendo-o como se ele fosse uma bola de papel, e amassei, fechando os dedos com violência. O seu corpo estalou por completo, virando em ângulos estranhos, enquanto eu descia e subia as mãos, batendo-o no teto e no chão. Quando parei, o cão celestial não estava rindo, mas o seu rosto ainda era uma máscara de ironia. Quando segurei na adaga de Nikkolai, a lâmina se preencheu do tom de rosa-escuro do meu poder, e eu a cravei com força no queixo do cão celestial. Ele ainda sorria, porque nada podia matá-lo, mas eu cortei o seu rosto de baixo para cima, partindo-o em dois. Ele ainda estava vivo e a imagem daquele rosto arruinado entre minhas mãos foi terrível, me causaria pesadelos por dias, mas o ódio em meu rosto relampejou contra o branco das pupilas dele e eu pude me ver refletida em suas íris pastosas. O meu poder tinha mudado a cor dos meus olhos, e os meus cabelos se agitavam num vento fantasma, enquanto a magia de Nikkolai impedia que qualquer gesto do cão me atingisse com ferimentos. — Peça para ele vir pessoalmente — murmurei com dentes cerrados. — Peça para que ele tente me parar. Não para enviar cães, porque eu também tenho os meus, e ele não vai gostar de recebê-los. O cão celestial abriu um sorriso que dividiu seu rosto ainda mais, e eu me coloquei de pé. O rosto do morador de rua tornou a se fechar, curando-se instantaneamente, embora a arma de Nikkolai e a minha magia dentro do homem permanecessem cravadas. Ele não conseguiu arrancá-las e não se deu ao trabalho de se erguer. — Eu trouxe uma mensagem, meretriz — disparou ele, cuspindo aos meus pés. — Esteja preparada para o seu fim e para sustentar a culpa pela morte de todos estes humanos. Esteja preparada para ver a todos queimar! Com um brilho de chamas azuladas, o cão celestial sumiu, como se jamais tivesse estado ali. Nikkolai, sangrando, se colocou de pé com dificuldade. Ele se apoiou em um carro, observando meu rosto. Eu acho que alguma coisa mudou naquele momento, enquanto nos observávamos depois de perceber que não tínhamos qualquer chance sozinhos contra as criaturas Divinas. Algum limite foi ultrapassado naquela barreira entre nós, porque tivemos a consciência de que mesmo com qualquer tentativa, os humanos jamais receberiam perdão. Eu me aproximei de Nikkolai, deixei que ele se apoiasse em meus ombros e o levei comigo para o meu carro. Naquela noite, quando me coloquei diante do meu guardião e tentei protegê-lo, alguma coisa ainda mais forte firmou aquele nosso elo. Não éramos apenas destinados. Éramos prometidos que sabiam que jamais poderiam mudar seus destinos, e que agora carregavam o peso do mundo nos ombros, justamente pelas pessoas que amavam.
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