Nikkolai não retornou para a minha casa nos dias que se seguiram. Ele simplesmente sumiu.
Eu deveria ter ficado preocupada. Deveria ter me perguntado o que seria tão importante para o Criador que ele tivesse de se ausentar por tanto tampo. Ou, sendo um pouco mais empática, deveria ter no mínimo tentado descobrir se a sua ausência se devia a alguma armadilha e que ele poderia estar sendo torturado enquanto eu simplesmente vivia minha vida humana sem muitos empecilhos.
De qualquer modo, eu não me preocupei com Nikkolai. Meus pensamentos estavam totalmente concentrados em Anne e Zylah, e no fato de que elas poderiam estar me escondendo alguma coisa sobre seus passados sombrios. Eu tentava perguntar, de modo discreto, como é que suas famílias teriam deixado de se preocupar com o rumo que elas estavam dando para suas vidas. As respostas sempre me pareceram muito convincentes. Anne voltava a falar sobre o seu péssimo relacionamento com os pais... Zylah dizia que preferia muito mais os seus gatos do que qualquer parente... e eu tinha de encerrar o assunto para que elas não notassem a minha suspeita.
Uma semana inteira se passou até que eu realmente me preocupasse com a existência de Nikkolai, porque Anne começou a questionar muito sobre onde é que teríamos nos conhecidos, se ele seria solteiro, se ele voltaria em algum momento, onde é que ela poderia encontrá-lo, e aquilo foi me incomodando ao ponto de, uma noite na hora de dormir, eu tentar me comunicar com ele através daquele elo. O contato deu certo. Eu pude sentir quando ele recebeu a minha preocupação como uma onda de ansiedade, e sua voz sussurrou em meus ouvidos — embora ele estivesse muito longe da minha casa —, naquele tom calmo e grave:
“Não estou em perigo. O seu feitiço funciona muito bem para que o Criador não saiba exatamente onde estou”, ele disse. E eu já estava bem satisfeita de pelo menos não ter de lidar com mais uma morte importante na vida, mas ele acrescentou: “Se estiver curiosa para saber o que estou fazendo, posso deixar que entre.”
Eu entendia o que ele queria dizer, mas não queria aumentar aquela coisa entre nós. Não queria ceder. Então dei alguns socos no travesseiro, imaginando que aquilo era o melhor que eu poderia fazer para extravasar a raiva, e me obriguei a fechar os olhos. Eu ainda sentia o elo com Nikkolai fluindo pelo meu corpo como uma corrente elétrica, mas não dei qualquer sinal de que gostaria de saber das suas tarefas para o Criador que o puniu tão severamente, então ele fechou o acesso àquele vínculo.
Eu estava tentando avisar minhas amigas de que eu não era uma humana totalmente normal de modos sutis. De vez em quando, quando Zylah relatava que se sentia cada vez mais cansada e doente, eu deixava minha magia correndo livremente pelos dedos que eu tocava em sua pele para sentir sua temperatura. Ela nunca sabia dizer por que é que sempre se sentia melhor quando eu a tocava. Anne teve que me aguentar falando sobre seus antepassados em vários momentos daqueles dias, ao ponto de ela ficar brava com as minhas tentativas em descobrir se os seus tataravôs poderiam fazer parte de alguma sociedade secreta para capturar criaturas sobrenaturais.
— Não, Kei, pela última vez, meus antepassados não poderiam ser caçadores como o Van Helsing — disse Anne com um suspiro alto, enquanto deixávamos o cinema do shopping ainda com pipocas em mãos. — Toda a minha família sempre foi muito religiosa.
— Então... todos acreditavam no cara-lá-de-cima cegamente? — perguntei com olhos estreitos sobre ela, tentando ver aquele brilho dourado, mas Anne estava evitando encostar em mim com frequência agora.
— Está falando de Deus? — devolveu ela, e eu relaxei minha expressão. O fato de ela conseguir mencionar o nome dele sempre me dava alívio. Valtrax dizia que eu não conseguia dizer o nome porque ele me proibia de invocá-lo, isso deveria servir para qualquer rainha. — Sim, todo mundo na minha família sempre acreditou em Deus. Eu acredito, eu sigo as palavras dele, e eu não acho que você deveria continuar tentando descobrir algo estranho sobre o passado da minha família sem me contar os motivos.
— Mas eu já contei os motivos — dei de ombros.
— Não, você disse que era apenas uma pesquisa, mas nós sabemos que você é só meio maluca e não sabe como explicar suas cismas — apontou Zylah, inclinando-se na escada rolante para colocar a cabeça entre Anne e eu. — E, se você estiver curiosa, eu posso dar informações da minha família. Você ficaria de cabelo em pé se soubesse de tudo...
Eu lancei um olhar da cabeça aos pés para Zylah. Ela achou que eu poderia estar averiguando seu estilo de roupas, porque deu uma voltinha no degrau que a levava para baixo e agitou seus curtos cabelos loiros para que eu avaliasse totalmente sua beleza. Ela abriu um sorriso largo, Anne me observou com uma expressão ainda astuta e desconfiada.
— Não, Zy, você não precisa me falar — falei com um sorriso breve. Ela não brilhava, não poderia haver preocupações. Anne, no entanto, apenas apertou seus olhos em minha direção, cada vez mais desconfiada. — E você deveria visitar seus avós, deveria perguntar se eles não possuem laços com caçadores de criaturas sobrenaturais.
— Ah, Kei, pare com isso! — ela pediu, cobrindo o rosto com uma das mãos. — Eu juro que nunca mais venho assistir filmes de terror com vocês. É uma maluquice toda a vez em que vocês me arrastam para coisas assim. Vocês sabem que não me sinto bem vendo sangue e coisas cruéis...
— É, mas talvez seus antepassados...
— Ah, Kei, dá um tempo! — disse Zylah com uma risada, pegando-me pelos ombros enquanto caminhávamos para o andar subterrâneo do shopping, nos livrando de nossas pipocas no caminho. — Você está cismada com isso igual daquela época em que não parava de assistir filmes sobre demônios.
— Não me lembre disso. Tenho pesadelos até hoje — disse Anne, contendo um arrepio.
— Pesadelos? — perguntei, muito atenta a qualquer uma de suas reações. — Pesadelos com demônios? Como são esses pesadelos?
— É sempre a mesma besteira de sempre... — murmurou Anne, desviando os olhos enquanto tentava relembrar as cenas. — Eu sempre estou naquela floresta estranha onde nos conhecemos... Quero dizer, onde eu acho que conheci você. Mas não é nada claro. Eu nunca entendo o que está acontecendo. É tudo um borrão.
— Que bizarro — comentei baixinho, sentindo uma leve vertigem pela noção de saber muito bem o que havia ocorrido naquela floresta. O olhar de Anne continuou perdido, como se ela ainda estivesse decifrando aquelas cenas e estivesse muito perto de encontrar uma resposta. Eu me virei para ela. — Anne, eu acho que está na hora de...
— O que é que você quer, idiot@? — gritou Zylah, parando de súbito no meio do estacionamento quase vazio do shopping. Anne e eu nos batemos contra ela pela distração da conversa. Zylah encarou o outro lado do recinto, onde um homem caminhava calmamente em nossa direção. — Eu juro que vou chamar a polícia!
— Com quem você está falando? — perguntou Anne, franzindo o rosto. — Não há ninguém aqui além de nós. Pare de me assustar.
— Ela está falando daquele homem — apontei, dando um passo cauteloso para trás. Anne e Zylah também se afastaram, mas enquanto Zylah parecia estar tremendo da cabeça aos pés, Anne ainda nos observava com o rosto franzido e os olhos sem saber exatamente para onde veriam olhar. — Anne, ele está bem diante de nós.
— Não há ninguém aqui! — ela insistiu, gesticulando com as mãos.
— Como assim? — perguntou Zylah, lívida e com olhos arregalados. — Como assim você não está vendo? Kei, você pode ver, não pode?
Estava parcialmente escuro no estacionamento, mas ele era fechado e subterrâneo, então as poucas sombras eram apenas das pilastras que sustentavam o shopping acima de nós. Não haveria forma alguma para o homem se camuflar nas sombras largas das pilastras, e eu podia ver muito bem suas feições comuns de homem velho. Quase dava a impressão de ser um morador de rua, principalmente por suas roupas rasgadas e imundas, e os pés descalços e tão sujos que quase pareciam sapatos pretos.
— Sim, eu posso ver — falei enquanto dava mais alguns passos para trás e puxava os braços das minhas amigas. O homem olhou diretamente nos meus olhos. Mas eu não enxergava se ele poderia estar com branco dos olhos totalmente tomado pelo preto, como eu sabia que os possuídos pelos demônios ficavam. Ele apenas me observou com curiosidade, ainda caminhando lentamente. — E eu acho que ele esteve andando por muito tempo para nos encontrar.
Anne ficou em choque, olhando para qualquer lado, menos para onde eu apontava. Zylah pareceu prestes a vomitar, ela até mesmo curvou o corpo e prendeu a respiração.
— Por que ele não para de nos seguir? — indagou Zylah em voz trêmula, então, ela tossiu, engasgou e cambaleou. Eu a segurei. — p**a merda... Não acredito que estou com aquela coisa de novo. Sinto... eu me sinto estranha. Sinto que meu corpo está pesado e cansado. É como se... Eu não me sinto nada bem.
Zylah observou o carro ao nosso lado, certamente curiosa para saber como o seu rosto deveria estar completamente tomado pelo choque, então ela voltou a encarar o estranho. Ele ainda tinha bons metros para percorrer se queria nos alcançar. Anne tropeçou enquanto tentava descobrir para onde é que tentaríamos virar afim de evitar o homem que ela não enxergava.
— Você não pode ver mesmo? — questionei em choque, olhando de Anne para o homem. Ela balançou a cabeça em pânico, eu tirei a minha bolsa dos ombros e entreguei para ela. — Leve a Zy e pegue o carro, Anne.
— O quê? Deixar você sozinha e enxergando coisas? Nunca! — disse Anne com teimosia. Embora eu não estivesse muito segura de dizer que se duas pessoas enxergavam algo e ela não, algo estava de errado com ela. — Eu não vou me mover até que vocês parem de tentar me assustar assim.
— Sinto muito por isso — falei em voz baixa, virando-me para ela e para Zylah. — Eu juro que vou contar tudo em outro momento.
Zylah e Anne se entreolharam, franzindo o rosto, quando elas tornaram a me observar, eu agitei meus dedos com as mãos abaixadas. Elas sequer notaram a magia infernal e de tons magenta subindo até os seus rostos. Nem mesmo tiveram tempo de falar quando o poder magenta entrou por suas bocas e narizes, envolvendo seus cérebros humanos e frágeis com uma nuvem de magia, deixando-as totalmente à mercê das minhas vontades. Os olhares de minhas amigas se tornaram opacos e desatentos, então eu ordenei com uma voz que apenas elas poderiam ouvir, ainda hipnotizadas por aquele feitiço que pareceu tão simples que qualquer um poderia dizer que eu já havia praticado por muito tempo, mas a magia fez todo o trabalho sozinha:
“Se protejam e se escondam. Não tentem me ajudar. Aconteça o que acontecer. Fiquem juntas.”
Anne e Zylah se moveram como bonecos ventríloquos. Elas se afastaram como se puxadas por cordas e se colocaram em passos rápidos para alcançar o meu carro. O homem continuou caminhando lentamente em minha direção. Eu levantei a cabeça e procurei pelas câmeras do local, todas elas foram atingidas pela minha magia, assim como qualquer entrada e saída para evitar que qualquer um se aproximasse, porque tudo o que eu não precisava era ser presa novamente, ainda mais por m***r um humano. Eu me encaminhei para o homem, enxergando seus olhos quando ele estava há três carros de distância, e eu notei que não eram negros; eram brancos, pastosos, feito olhos de cegos em avançada idade.
O homem me lançou um sorriso de dentes afiados, e, quando meu sangue gelou nas veias, eu notei que não era apenas um morador de rua possuído por um demônio. Era um homem sem arcanjo, cujo corpo um cão celestial havia se apoderado. O meu poder ferveu nas pontas dos meus dedos, e eu o manipulei dando algumas voltas em meu pulso, enquanto esperava pela aproximação do homem, enquanto esperava por qualquer reação de ataque para atingi-lo com a força de uma legião de demônios no peito.
— Você comete um grande erro ao pisar nestas terras, meretriz do inferno — disse o homem numa voz grave e amplificada, que ecoou pelas paredes do estacionamento, e fez um arrepio deslizar pela minha coluna. — Meu Criador tem uma mensagem para você.
Eu não quis responder, apenas agitei minhas mãos e liberei o poder, empurrando-o na direção do homem. Ele nem mesmo se esquivou, apenas parou um passo quando foi atingido pela magia que o atravessou e sumiu feito poeira ao vento. Para o meu choque, nada aconteceu. O seu sorriso aumentou, e eu podia ver que seus dentes brilhavam, tal como a saliva que escorria do canto da sua boca. O desespero me fez tropeçar um passo para trás. Eu sempre achei que minha magia fosse inigualável, principalmente depois de descobrir feitiços para me manter escondida do próprio Criador do mundo. Só que eu estava enganada.
“Nikki...”, chamei em minha cabeça. Eu não sabia mais onde é que recorreria para ter ajuda. Em outras ocasiões, eu teria gritado para liberar todo o meu poder, mas isto implicaria em destruir carros e chamar muita atenção das pessoas nos andares acima. Sem falar que se uma criatura sobrenatural pode ter seu crânio rachado pelo grito de uma Banshee, nada me garantiria que Anne e Zylah não sofressem com algo ainda pior. Não pude sentir o elo entre Nikkolai e eu. Eu sequer sabia se ele estava sentindo o meu medo pela falha da magia e pelos passos do homem que continuava me encarando. “Nikki, como se derrota um cão celestial?”
— Quer dizer que agora você precisa de mim? — disse Nikkolai em voz alta, surgindo ao meu lado como uma presença soprada pelo vento. Ele riu quando soltei um gritinho e pulei no lugar. Então sua atenção se voltou para o homem que ainda sorria, agora ainda mais maliciosamente ao notar Nikkolai. Tomado por uma calma surpreendente, Nikkolai puxou contra o ar, materializando uma arma fina e afiada, feito uma adaga longa. O aço brilhou no mesmo tom azulado do seu poder, demonstrando a sua letalidade e magia extrema. — Não há como derrotar um cão celestial. Você pode apenas cansá-lo. E, infelizmente para nós dois, Keigh, isso costuma levar horas.