Na manhã seguinte, eu acordei sem ter a menor ideia do que acontecera poucas horas antes, atordoada pelo som alto do meu despertador. Eu tomei um banho, me arrumei com as roupas do trabalho e enviei uma mensagem para minhas amigas através do celular. Eu tinha me rendido ao consumismo humano nas primeiras visitas que fiz ao shopping, e além da televisão em minha sala, agora podia acompanhar as notícias do mundo em meu celular.
É claro que boa parte daquela tentativa de me inteirar com a tecnologia do mundo era apenas para ter certeza de que nenhum ocorrido misterioso seria fruto dos meus amigos deixados no inferno. Eu não tinha uma forma de me comunicar com eles. Infelizmente, os celulares não funcionavam no inferno, e Faye — receptora do pecado da gula, minha melhor amiga, e rainha regente do inferno — não poderia entrar em contato ao menor sinal de problemas para lidar com os demônios. Pelo menos eu sabia que nenhum humano havia sido possuído recentemente, e os maiores males que os demônios poderiam proporcionar era o fato de que a magia vinda de muitos anos abaixo da profundidade da terra podia subir e converter os humanos a cometer pecados.
Eu estava tão absorta com a minha tela do celular que nem reparei que quando entrei na cozinha, o cheiro de panquecas era forte demais para vir das janelas vizinhas, e que quando me aproximei da pia, a figura altura e musculosa diante do fogão não era apenas uma miragem. Com uma jarra de suco em mãos e o celular na outra, levantei a cabeça e berrei de horror ao perceber que Nikkolai, com as roupas ainda sujas de sangue e uma cara tão alarmada quanto a minha, se mantinha prostado diante do fogão, com uma frigideira em mãos.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei arregalando os olhos.
— Você disse que eu poderia ficar — disse ele, gesticulando com os ombros. Os curativos que fiz em suas mãos ainda estavam limpos, mas se ele sentia qualquer dor enquanto segurava a panela, não demonstrou. — Preparei as panquecas que você gosta.
Eu fiquei em choque, relembrando o ocorrido da noite anterior como se fosse um filme desagradável. O sangue de Nikkolai já não tinha um cheiro forte, mas vê-lo ainda coberto de vermelho em roupas que deveriam ser brancas me deixou enojada o suficiente para subir até o meu quarto outra vez e pegar as roupas que no passado eu havia comprado para que Tennebris se vestisse como um humano comum. Eu não me atrevi a pegar as roupas usadas por Valtrax, porque queria manter sua memória intacta.
— Use isso — empurrei um conjunto de vestes nas mãos enfaixadas de Nikkolai. — Se quiser, tome um banho, só para tirar essa impressão de que você ainda está sangrando.
Nikkolai deixou a frigideira de lado e pegou as roupas, parecendo desapontado que eu tivesse reparado em tudo, menos na sua dedicação em preparar o café da manhã.
— Você vai comer as panquecas que eu fiz? — perguntou ele, detendo seus olhos na calça jeans e camisa escura que lhe dei.
— Vou esperar você voltar — falei com um sorriso, mas a reação soou forçada.
Ainda evitando meus olhos, Nikkolai se apressou para sair da cozinha. Ao contrário dele, eu era um verdadeiro desastre culinário. Cozinhava bem, mas sujava coisas demais. Nikkolai, por outro lado, além de ter tido tempo para colocar muitos ingredientes na massa da panqueca, ainda tinha enfeitado a comida com algumas folhas de salsa e lavado todos os recipientes usados para o preparo. Enquanto eu escutava o barulho de chuveiro no banheiro próximo da escada, eu coloquei num prato a segunda panqueca que ele preparava e lavei a frigideira. Quando ele retornou, eu já tinha colocado dois copos de suco e levado para a sala.
— Você está brava? — ele perguntou, sentando-se ao meu lado e puxando um dos pratos para o colo. Por conta do banho, ele se desfez dos curativos nas mãos, mas a vermelhidão em sua pele ainda dava aquele aspecto de carne viva e dolorida. — Eu fiz alguma coisa errada?
— Não, Nikki. Não se preocupe. Eu só tinha me esquecido completamente da sua existência — falei rápido, e a frase soou mais ríspida do que eu esperava. Nikkolai abaixou a cabeça, então acrescentei: — Não, quero dizer, não é que eu me esqueci da sua existência... Eu não me lembrava de tudo o que tinha acontecido antes. Foi como se a situação toda se apagasse da minha cabeça. Eu só não me lembrava de que você ainda estava aqui em casa.
— Eu não vou me demorar muito, já estou indo embora — disse ele, bebendo um gole de suco.
— Indo embora? Como assim indo embora? Para sempre? — perguntei alarmada.
— Eu não disse que precisava encontrar com aquela pessoa que trabalha na polícia? — ele devolveu a pergunta, cortando um pedaço da sua panqueca. — Eu vou deixar você sozinha por um bom tempo durante o dia de hoje, porque preciso tentar fazer com que ele acredite que só me conhece porque já trabalhamos juntos, e dessa forma posso plantar a ideia na cabeça dele de que os humanos correm perigo.
— Ah, certo... Por um momento pensei que você estaria indo embora da minha casa, definitivamente, sabe — expliquei.
Nikkolai mastigou antes de responder, aparentemente tentando considerar se eu tinha esperanças de que ele fosse embora logo.
— Se for muito incômodo, eu posso encontrar outro lugar, só preciso que você use o feitiço para...
— Não, Nikki. Você pode ficar. Eu nem reparei que você estava aqui. Não é incômodo algum.
Sem falar que se ele continuasse cozinhando para mim, eu nunca reclamaria. A panqueca tinha todos os toques fortes dos temperos usados, mas era tão agradável ao estômago que eu diria que havia uma pitada de magia. Comemos em silêncio. Eu não tinha tido tempo na noite passada para contar a ele sobre a minha rotina desgastante no trabalho, e não tive coragem de inventar uma desculpa para faltar naquele dia e poder acompanhá-lo onde quer que fosse. Eu ainda tinha de viver a minha vida humana, independentemente se o mundo estaria acabando em dois meses, e não queria deixar os meus chefes na mão, sendo que eles foram sempre tão generosos comigo. Além do mais, as minhas amigas sempre passavam em meu local de trabalho, era quase um ritual, e eu tinha de estar lá por elas.
— Você se importaria de me dar uma carona? — ele perguntou, terminado o silêncio da refeição. — Sempre foi mais fácil me locomover com as asas. Eu acho que agora vou ter que me adaptar às longas caminhadas ou ser carregado pelos veículos mundanos.
Apesar de ter rido baixinho, Nikkolai não parecia nem um pouco feliz daquela situação. Eu também não estaria. Suas asas foram arrancadas, e eu tinha percebido que isso era c***l e traumático demais, mais do que uma v******o. Nunca me ocorreu que ele poderia ser expulso em todas as suas tentativas de me ajudar. Mesmo que ele batesse na tecla de que só tinha saído do paraíso por escolha própria, eu não conseguia imaginar como é que ele continuaria vivendo naquele lugar tendo sentido na pele o tipo de punição que o seu mestre era adepto. Se eu contasse aquilo para qualquer humano religioso, ninguém acreditaria.
— É claro que não, Nikki. O meu trabalho fica à duas quadras da delegacia, você pode me encontrar lá para voltar para casa depois — avisei, unindo nossos pratos e copos, com a intenção de levá-los para a cozinha.
— Não se preocupe comigo — disse ele, pigarreando levemente. Parecia muito incomodado em depender de mim. — Pode deixar os pratos, eu levo.
— Tudo bem — falei sem muita hesitação, empilhando os utensílios.
No exato instante em que nossas mãos se encontraram, aquele tom violeta tão parecido dos olhos dele subiram das pontas de nossos dedos em nuvens de poder, num tipo de corrente muito forte e rápida. O odor produzido pela magia unida era tão adocicado e enjoativo quanto qualquer magia infernal, mas a sensação que aquele poder me deu — como se preenchendo um buraco em meu peito —, fez com que eu me afastasse com um pulo para trás. Nikkolai, igualmente atordoado, tratou de se encaminhar para longe o mais rápido possível, sumindo pela cozinha.
Nenhum de nós mencionou o ocorrido enquanto eu trancava a casa e nós nos dirigíamos até o meu carro. A minha locatária e fofoqueira vizinha, esticou o pescoço para ver melhor quem é que estava saindo da minha casa. Ela estava fingindo que regava os canteiros de flores no pátio das casas com sobrado, enquanto fuxicava a vida de cada um que passava. O olhar de repreensão que ela me lançou, me fez perceber que ela tão pouco se esquecera de Valtrax e da visita que meus amigos fizeram no passado, quando ela foi tão inconveniente que acabou recebendo uma das patadas de Tennebris.
— As suas amigas sabem? — Nikkolai perguntou de repente, assustando-me quando o motor do carro ligou. — Desculpe, Keigh. Você parece ainda estar sentindo que eu sou apenas uma sombra.
— Sim, é exatamente isso. Eu me acostumei com você dessa forma — girei o volante e nos conduzi até a avenida. — E, sim, em algum momento eu vou contar para as minhas amigas sobre o que está acontecendo. Primeiro, eu e você devemos ter um plano.
— Nós já temos um plano, Keigh. Temos de alertar o máximo possível de humanos. Não podemos evacuá-los, como em qualquer guerra. Apenas temos que deixá-los cientes e preparados.
— Eu não acho que minhas amigas possam ajudar.
— Qualquer pessoa que o seu espírito reconheça como família, pode ajudar, Keigh — disse ele, lançando um olhar distraído pela janela.
Eu o observei quando tive de parar no semáforo. Nikkolai estava observando um mendigo, que erguia uma placa com dizeres sobre o fim dos tempos. O morador de rua não tinha um arcanjo, obviamente, abandonado à própria sorte. Nikkolai o observou com tanta intensidade, que, mesmo com o vidro fechado de sua janela, o morador de rua retribuiu o olhar. Nikkolai suspirou ao olhar para suas mãos ainda feridas, parecendo descontente com a demora em sua cura.
— Eu não acho que posso incluir minhas amigas em meu mundo. Elas não foram feitas para fazer parte dele — expliquei com certo receio. — Eu tenho medo de envolvê-las numa trama que não diz respeito a nenhuma delas.
— Humanos sem arcanjos são condenados ao inferno, Keigh — disse Nikkolai em tom cansado. — Elas vão para o inferno, não importa o que você diga. E é melhor que elas saibam a verdade. Eu sinto o quanto você gosta delas, e eu acho que é bastante recíproco, mas uma amizade sempre pode se abalar diante de mentiras. Você mesma ficou irritada comigo quando eu não pude dizer a verdade.
— A situação era completamente diferente — protestei, trincando o maxilar. — E eu não quero falar sobre meus relacionamentos com você, Nikkolai. Concordei em trabalharmos juntos, apenas isso.
— Como quiser — disse ele, gesticulando com os ombros. — Aliás, Keigh, não precisa me buscar depois que eu terminar o que preciso fazer. Eu vou encontrar uma forma de voltar para a sua casa. Não quero continuar causando problemas para você.
Revirei os olhos, mantendo minha atenção nas ruas para não ceder ao desejo de atirar Nikkolai para fora do carro. Eu não queria reconhecer que ele estava certo. Se tinha uma coisa que Anne detestava no mundo, era a mentira. Religiosa como era, ela dizia que a mentira era o primeiro passo para um humano cometer atrocidades e se aproximar das trevas. m*l sabia ela de que ela própria fora uma das vítimas de atrocidades muito piores do que a mentira. Eu apenas queria protegê-la, mas, paralelamente a isso, Nikkolai fizera o mesmo e agora eu não me sentia capaz de perdoá-lo.
Continuei dirigindo em silêncio, reparando que, ao contrário dos meus amigos do inferno que consideraram todos os comportamentos humanos como um espetáculo, Nikkolai agia como se nada fosse novidade e tudo o comovesse profundamente. Ele parecia estar observando cada calçada numa forma de registrar a beleza e a normalidade, antes que tudo se tornasse um caos. Refleti se eu também não deveria ter feito o mesmo. Apreciado mais do mundo antes que ele se acabasse.
— Eu vou conversar com elas assim que eu puder assimilar a situação — garanti para Nikkolai, no momento em que eu estacionava o carro diante da delegacia. — Até lá, por favor, Nikki, apenas me dê algum tempo para aceitar o meu destino.
— Não há tempo, Keigh — disse ele, abrindo a porta do carro. Já parado na calçada, ele me observou e falou: — Dessa vez, não contamos com o benefício dado pelo Tempo, minha luz. Somos apenas nós contra todos. É isso que você precisa aceitar.