Capítulo 02

1974 Words
O buraco que se abriu nas costas de Nikkolai caberia facilmente uma cuia, de tão grande e fundo. Não pude segurar suas asas partidas entre os dedos, porque elas se agitaram furiosamente quando eu as puxei de seu corpo, como se recusando estar longe do seu hospedeiro. Eu tive de ir até a cozinha, pegar um saco de lixo e enfiar as asas nele, porque elas simplesmente não paravam de tentar saltar da minha mão para voltar às costas ensanguentadas de Nikkolai. Quando fechei o saco, me abaixei novamente para Nikkolai, que agora estava assumindo um tom de pele esverdeado e nauseante, e depois de passar o antisséptico, comecei o trabalho de sutura com uma linha comum de costura. Aquilo doeu. Tanto nele, quanto em mim, porque apenas quando eu comecei a enfiar a agulha no meio de toda pele solta e retorcida das suas costas, foi que a nossa ligação tornou a se fazer presente. Cada vez que a agulha descia e se unia contra a outra parte da sua pele, eu podia sentir as minhas costas se abrindo e se unindo da mesma forma com que eu fazia na dele. Os seus gritos estavam sendo abafados pela almofada que ele mordeu, só que não demorou muito — basicamente quando terminei um lado e comecei no outro — a Nikkolai perder totalmente o controle da sua dor e começar a expor o seu sofrimento. Nikkolai chorou. Ele chorou de um modo tão alto e doloroso que eu tive de cobrir os ouvidos por um momento, apenas para recomeçar o processo de sutura e sentir a cabeça latejando depois. As lamúrias de um anjo realmente não eram um som agradável. O meu corpo inteiro ficou esquisito, dormente, como se o meu instinto me ordenasse para acabar com o sofrimento dele, enquanto a parte racional dissesse que ele não havia sido o único a passar por algo daquele tipo e que deveria ser forte para suportar. No entanto, meus dedos continuaram se movendo contra a agulha, puxando, unindo, e colando a pele que estava destruída. Quando terminei, o choro dele ainda ecoava em minha cabeça, e eu nem mesmo percebi que minhas próprias lágrimas estavam manchando o meu rosto, até ter de limpar os olhos para enxergá-lo melhor. Nikkolai ofegava, apertando o estofamento do sofá em suas grandes mãos. Ele sempre teve um tom de pele muito branco, mas agora que o sangue se esvaíra do seu corpo, ele parecia ainda mais pálido, quase feito de alabastro. Os cabelos dele também pareciam um pouco mais opacos. Ele estava de olhos fechados, eu improvisei uma gaze com uma boa quantidade de algodão e tampei com os esparadrapos. Em todo momento, continuei escutando a chuva do lado de fora, muito atenta a qualquer sinal de que os arcanjos no geral pudessem estar cientes da minha localização. Aparentemente, apenas Nikkolai ainda sabia cada um dos meus passos, porque os minutos continuaram passando e ninguém mais surgia em minha porta. Os meus dedos estavam manchados de sangue, e quando guardei todos os suprimentos médicos usados, dei uma olhada em minhas pernas e no chão da sala. Aquilo parecia pior do que uma cena de assassinato ou um frigorífico. O sangue de Nikkolai ainda se mantinha perfeitamente brilhante e vermelho com um rastro largo desde a porta até o sofá onde ele ainda se deitava. Gotas ainda pingavam das poças que se formaram ao redor de sua camisa rasgada, fazendo subir um cheiro acre e pungente de sangue fresco. Dobrei as pontas do meu cabelo e fiz com que a água acumulada ali se unisse ao sangue do chão, fazendo com que o cheiro r**m se tornasse menos forte. Apenas quando o momento passou e eu realmente parei para entender o que estava acontecendo, quando a frieza deu lugar àquela empatia extrema, eu comecei a ter ânsias fortíssimas de vômito. Tive que deixar Nikkolai sozinho por dez minutos inteiros, enquanto eu vomitava e tentava recuperar minha dignidade. O vaso sanitário se manchou com as minhas mãos sujas, e o cheiro do sangue subiu tão rápido ao meu nariz que continuei vomitando até lavar as mãos. Os meus cabelos se grudaram em mechas úmidas ao redor do meu rosto, e a camisola estava começando a ficar transparente em pontos indiscretos, por isso peguei um roupão e prendi os cabelos num coque. Retornei para a sala só quando meu estômago já estava vazio e a minha mente não me perturbava com a imagem de Nikkolai totalmente destruído e machucado. Imaginar aquilo quando Valtrax e Faye me contaram foi uma coisa bem diferente de ver. Eu tinha uma leve suspeita de que jamais me esqueceria daquilo. Enquanto Nikkolai ainda jazia desmaiado em meu sofá, comecei a limpar a sujeira no chão e superficialmente no corpo dele. Aquilo teria levado horas a fio para fazer com que todo o sangue que se escondia nos cantos das paredes sumisse totalmente, por isso liberei a magia mais uma vez, jorrando sombras magenta por todo o local onde o sangue se encontrava, fazendo-o sumir de uma só vez. Eu não me preocupei com o lado de fora. Sabia que a chuva faria com que o sangue escoasse pelos bueiros e sumisse das vistas humanas até o amanhecer, já que a tempestade torrencial ainda se mantinha no seu auge. Dei uma olhada para Nikkolai quando o tempo continuou passando e ele continuou desacordado. Os olhos dele estavam imóveis abaixo da pálpebra, os cabelos tão loiros que eram quase brancos e curtos caindo frouxamente contra a testa, e a boca apertada numa linha de quem ainda sentisse muita dor. Eu levei uma mão ao peito diante daquela imagem, porque meu coração estava se rendendo àquele sentimento de pena e empatia. Embora eu não quisesse admitir que sentiria qualquer coisa em ver Nikkolai daquela forma, meu corpo me traía. A minha real vontade era subir até os céus e provocar uma verdadeira retaliação por aquela brutalidade ridícula. E isso não tinha nada a ver com o fato de achar que os métodos de expulsão dos céus eram arcaicos e medievais. Era simplesmente porque ver Nikkolai daquela forma, mexeu comigo de uma forma que eu não pensei que ainda fosse possível. Depois de Valtrax, nada mais foi o mesmo em meu coração. Ninguém mais conseguiria alcançar os meus lugares que ele foi capaz. Nem mesmo Nikkolai, cuja ligação em nossas almas era absoluta e maior do que qualquer vontade do meu corpo. Eu não quis ouvi-lo da última vez em que ele me visitou. Eu praticamente o expulsei e continuei seguindo a minha vida sem dar a menor importância para a profecia que ele tanto falava. Agora ele aparecera em minha porta com a notícia de que o Criador estava cansado dos humanos que tanto defendeu da maldade dos demônios, e agora eu deveria provar que eles mereciam viver. A ideia parecia tão maluca que quase dei risada enquanto fervia uma água para fazer chá com camomila e trançagem. Mas eu não me assustava com mais nada. Se o Criador quisesse entrar numa briga para decidir o destino da raça humana, então eu entraria. Não havia mais nada para que eu perdesse naquela vida. E as únicas pessoas que ainda realmente me preocupavam quanto as suas seguranças, eram minhas duas amigas humanas; Anne e Zylah. Nenhuma das duas tinha a menor ideia de quem eu realmente era. Nenhuma delas sabia que a sua melhor amiga era a rainha do inferno e que estava tirando umas férias para tentar reencontrar sua parte humana. Nenhuma delas achava estranho que a tatuagem em meu peito se movesse de vez em quando — porque a cobra que era o meu espírito protetor nunca se mantinha imóvel nos momentos de perigo —, e, ignoravam totalmente o fato de que as vezes algumas sombras magentas despontavam dos meus dedos nos momentos em que uma delas estava abatida ou doente; curando-se imediatamente de qualquer enfermidade. Eu ainda estava pensando em minhas amigas quando voltei para sala com as duas xícaras fumegando abaixo do meu nariz. O cheiro de chá se misturou ao odor de magia que a sala inteira ficou depois da limpeza do sangue de Nikkolai. Eu me sentei no chão abaixo do sofá e coloquei as xícaras de lado, inclinando-me para tocar nos cabelos de Nikkolai afim de acordá-lo. Eu não esperava que tocar em seus cabelos fizesse com que as pontas dos meus dedos formigassem, como se uma corrente elétrica perpasse nossos corpos pelo toque. Por isso eu afastei depressa a minha mão, mas, quando a deixei cair frouxamente para fora do sofá, acabei batendo no braço dele, que se direcionava molemente para o chão. O anel no dedo dele lampejou por um momento em um tom violeta, e isso me fez olhar para baixo. Por coincidência, ou não, minha mão se encostou bem sobre o anel em formato de círculo vazado sobre o seu dedo indicador. O anel era feito de um tom dourado, feito ouro, e o seu centro era coberto por nuvens de um ciano muito belo, que eu sabia ser proveniente dos poderes de Nikkolai. O fato de eu ter encostado na sua mão, fez com que o seu poder se unisse ao meu por uma fração de segundo, e o tom magenta dos meus dedos se tornaram repentinamente violetas. Eu repeti o gesto só para ver a magia acontecer novamente, porque além do espectro de cores, a sensação que o gesto me trazia era de uma paz e alegria tão diferentes que eu não reparei que pudesse ter acontecido da primeira vez em que ele tocou com o seu dedo no meu colar. A serpente tatuada entre os meus s***s se moveu suavemente, incomodada, então eu parei de tocar nele daquela forma, e comecei a cutucá-lo para ver se ele acordava. Nikkolai abriu um olho quando atingi sua costela, e sua expressão saiu daquele relaxamento forçado do desmaio para uma agonia diante de algo extremamente doloroso. Ele franziu o cenho ao reparar em mim, então girou os olhos para estudar o entorno, ficando absurdamente lívido ao entender onde estava. Nikkolai se ergueu de imediato, curvando-se logo em seguida pela dor dos movimentos bruscos. Gemendo, ele levou uma das mãos até o alto das costas, procurando com os dedos pelas asas imperiais e lindas. Decepção, tristeza, e arrependimento varreram seu rosto quando ele não encontrou nada além dos curativos em suas costas e nas palmas das mãos. Ele levou as mãos até o seu colo, estudando o algodão que eu coloquei ali para evitar que a carne viva tivesse contato direto com qualquer outra coisa. Eu não sabia se arcanjos poderiam contrair infecções, por isso quis tratá-lo como um humano. — Você está pronto para me contar o que realmente está acontecendo? — perguntei, erguendo uma xícara em sua direção. Com dedos trêmulos, Nikkolai pegou a xícara e levou o líquido quente até os seus lábios. Ele nem pareceu reparar na fumaça, porque engoliu tudo de uma só vez, como se fosse um remédio mais poderoso do que qualquer outra coisa, e me devolveu a xícara. Durante algum tempo, ele evitou olhar em meus olhos, então, sem que eu esperasse, ergueu a mão até o meu rosto e segurou em minha bochecha. — Não quero falar — disse ele em voz rouca e quebradiça. — Quero mostrar. — Então mostre — incentivei, assentindo com firmeza. — Eu permito que você entre no meu corpo. Só porque aquilo não era a primeira vez, só porque ele já sabia tudo sobre mim e entendia muito bem como funcionava aquela ligação entre nossas almas, ele não teve dificuldades em liberar sua magia e misturá-la com a minha, enquanto nossos corpos se tornavam um só e sua mente me levava para o momento em que a descoberta da profecia sobre a raça humana ocorrera.
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