— Mas e em relação às suas asas? — perguntei baixinho. — Falamos sobre tudo, menos em como você está se sentindo fisicamente.
Nikkolai franziu o cenho. Provavelmente ele esperava que eu ainda continuasse batendo na tecla do assunto daquela profecia. Eu ainda não sabia o que se dizia exatamente naquela previsão do destino para que ficássemos juntos. Eu temia que a profecia dissesse claramente que não poderia haver uma escolha. Que eu não poderia escolher Valtrax em vez dele. Mas eu não queria ceder à vontade de descobrir tudo o que fora dito, ainda que pudesse sentir a expectativa de Nikkolai em revelar toda a verdade para que não restasse qualquer dúvida. Porque saber disso com antecipação, em vez de simplesmente deixar acontecer, me dava uma terrível sensação de estar traindo o meu próprio coração.
— Eu não sinto falta delas — disse Nikkolai, embora seus dedos tenham tateado o alto das costas, bem no ponto em que realizei uma suturação. A falta de suas asas quase deixava a sua forma física como a de um homem comum e atlético, nada sobrenatural e estranho. Eu tinha me acostumado a ver a penugem branca e cheia ao redor dele, e mesmo que olhasse de relance para os ferimentos ainda em carne viva de suas mãos e uma grossa marca ao redor do seu pescoço, tinha a impressão de que as asas simplesmente estavam guardadas, que a qualquer momento ele poderia abri-las e nos esconder do frio. — É mais fácil me locomover sem ter de voar o tempo todo.
Apesar da voz tranquila, minha mente não se convenceu da forma com que suas palavras soaram. O rosto dele se tornou impassível, sem revelar um único sentimento que sua boca não ousasse contar. Percebi que estava segurando todas as suas emoções como as rédeas de um cavalo selvagem. Ele não queria que eu sentisse o modo como a falta de suas asas eram quase como uma amputação de pernas. Que ele se sentia fraco, impotente, quebrado. E, por se sentir daquela maneira, eu jamais acharia de má índole caso ele estivesse enraivecido, magoado. Mas Nikkolai ainda exalava gratidão.
Naquela noite antes que minhas amigas e eu nos deitamos, eu pude escutá-lo rezar mais uma vez, pedindo pela p******o de seus humanos, pedindo pela misericórdia do seu Senhor. Ele rezou e tentou dormir, e não conseguiu. E agora estava observando os céus, como um pássaro preso numa gaiola, que sente falta de voar e estar em sua verdadeira casa. E isso de um modo bem curioso me deixou pronta para chorar da mesma forma com que me sentia ao ponto de transbordar em lágrimas por Valtrax. O meu coração estava dividido, mas sofria igualmente pelos dois.
Pigarreei para chamar sua atenção, porque ele estava novamente encarando o céu escuro em divagações mentais que não quis compartilhar. Ele me observou na mesma hora.
— Quando Valtrax me contou sobre as asas dele...
— Você quis subir aos céus e travar uma batalha com o Criador para recuperá-las — disse Nikkolai, dando uma risadinha baixa. — Eu sei, Keigh. Eu vi.
Mordisquei o lábio, pensando.
— Mas eu ainda podia enxergar como as asas dele poderiam ser... Eu conseguia descrever como é que ele ficaria bonito com asas negras, e...
— Você estava vendo as lembranças que eu tinha nos tempos em que ele ainda era aceito no paraíso — contou Nikkolai, abrindo um sorriso enviesado.
— Ele tinha mesmo asas negras? — perguntei num assovio. — Caramba... Sempre pensei que o preto era algo ligado ao m*l.
— Pare de ignorar o fato de que você sempre compartilhou meus pensamentos sem perceber, por favor — ele pediu em tom cansado, esfregando as têmporas. Os olhos se fecharam por um momento, e ele suspirou. — Eu não me sinto bem quando você finge que não percebe o quanto nossos caminhos estão ligados. Me dá a sensação de que sou um intruso.
Eu quase retruquei, mas mordi a língua quando notei que a linguagem corporal dele mudou para aquele abatimento novamente. Nikkolai tornou a abrir os olhos, cativando os meus com aquele brilho de azul-violeta fascinante. Sempre me ocorreu que seus olhos eram como galáxias, e, se considerasse que cada reino do inferno era feito com base em alguma característica de seu príncipe...
— O paraíso é como um novo planeta? — perguntei com um leve semicerrar de olhos. — É que a cor da sua íris é parecida com as galáxias que os humanos passam décadas tentando estudar para descobrir se há uma vida nos planetas que ali existem. Sempre me perguntei por que é que seus olhos são dessa cor.
— O meu mestre não coloca limite em suas criações, Keigh — disse ele com um sorriso muito bonito. Falar de Deus era um assunto que lhe trazia uma felicidade genuína, mesmo depois de tudo, ele ainda era grato por existir. Isso era lindo e triste. — Ele pode misturar as cores e as formas que quiser, e ainda dar vida para algo jamais visto antes. Mas, sim, eu acho que para explicar o paraíso a você eu teria que me basear no que os humanos aprendem quando crianças. O paraíso não é acima das nuvens, ele se localiza há muitos anos-luz desta terra e de qualquer outra. É por isso que você acha que meus olhos se parecem com uma galáxia, elas podem ser vistas abaixo de nós.
— Uau — exclamei com admiração. O sorriso de Nikkolai aumentou, formando ruguinhas nas laterais dos seus olhos. — E você podia voar todos os planetas do paraíso... Quero dizer, todos os locais lá de cima?
— Sim, eu era livre para ir e vir onde eu quisesse. Tanto lá, quanto aqui, na terra. — Falou ele, ainda sorrindo como se tivesse acabado de ganhar o seu presente favorito de natal. — O Criador dividiu nosso paraíso entre nove céus; o que vocês poderiam chamar de planetas. Mas nós não temos príncipes e governantes como o inferno. O Criador é absoluto, mas ele delega funções para alguns poucos soldados de seu exército mais poderoso. Aqueles anjos-caídos que se tornaram receptores de algum pecado já foram soldados letais e necessários para manter a ordem em nosso mundo. E eles caíram na terra depois de se rebelar ao lado de Lúcifer, e adquiriram o castigo de acordo com suas ações pecaminosas no paraíso.
Assenti em silêncio, porque não queria correr o risco de falar e deixar de ver todas as imagens que Nikkolai plantou em minha cabeça ao se lembrar do seu lar. Era exatamente como a astronomia humana imaginava. As galáxias realmente escondiam vidas. Os arcanjos não eram criaturas, eram seres como humanos, só que muito mais belos e altos, tal como Nikkolai. Não existiam monstros e bestas, até mesmo os chamados de cães eram belos como pessoas comuns, embora fossem todos possuidores daquele brilho branco-pérola que na última visita de Nikkolai eu pude notar que ele também possuía.
Pelo canto dos olhos eu reparei que ele não brilhava mais e, inconscientemente, a sua mão foi até a sua garganta, onde deveria estar a sua auréola. Ele não brilhava porque já não fazia parte do exército do criador, mesmo com toda a magia em seu sangue e alma, ele já não era mais um arcanjo como todos os outros.
— Você ainda sente alguma dor? — perguntei, reparando que um músculo tremeu em seu maxilar enquanto os dedos avaliavam o espaço vazio e avermelhado como queimado à ferro em sua garganta. — A cor dos machucados ainda não mudou. Eu pensei que você estaria melhor quando descansasse.
— Não vai mudar por um bom tempo — devolveu ele, sem soar com rispidez, mas ainda sendo firme. — As armas usadas no paraíso são letais para qualquer criatura sobrenatural. Assim como a espada que você criou para o pecado da luxúria... Todas as nossas armas podem mandar demônios para o Purgatório.
— Eu criei aquela arma por me inspirar naquelas que existem no paraíso? — questionei, franzindo o cenho.
— Sim, Keigh. A sua magia não pode criar nada que não haja uma referência legítima — disse ele, afastando a mão da garganta e cobrindo a boca antes de bocejar. — O presente que você deu ao pecado da luxúria foi uma das imagens que compartilhamos nos raros momentos em que você se deixou entrar em meu corpo.
— Mas... Se eu consegui ver a espada em algum momento... se você soube da profecia depois que fiz a minha escolha... Então isso significa que nossa história nunca se repetiu — falei em tom contemplativo. Nikkolai apenas me observou. — Você nunca me abraçou antes de dormir na minha primeira noite no pandemônio, nós nunca dançamos juntos além daquela noite no território do orgulho, você nunca me salvou do território da inveja ao me jogar naquelas águas curativas... Nada que vivemos, mesmo numa história fadada a se repetir, foi algo previsto pelo destino. Estou certa ou errada?
— Certa — disse ele com um sorriso secreto. — Eu sempre deixei muito claro de que todas as nossas conversas jamais foram vistas pelo Criador ou pelo Destino.
— Mas...
— O elo mais absoluto no mundo, Keigh... Lembre-se do nosso elo.
— Então você poderia mesmo ter me contado tudo antes que Valtrax morresse — falei em tom rude, cruzando os braços. Nikkolai soltou outro suspiro. — Diga o que quiser, mas você contribuiu para isto, Nikki.
Nikkolai gesticulou com as mãos, como quem não sabe mais o que dizer e espera por um milagre Divino para encontrar uma solução.
— Sim, Keigh. E eu pedi desculpas... Eu disse que poderia ter evitado, mas... Eu precisava que você escolhesse um novo caminho para que o ciclo se quebrasse e a profecia se concretizasse. Eu não posso mudar o Destino, apenas posso interromper aquilo que eu acho que seja prejudicial para você. Mesmo se eu contasse, você ainda seguiria o mesmo caminho.
— Então, resumidamente, você precisava que Valtrax morresse para que ficássemos juntos — falei em tom irônico. — Para um arcanjo, até que você é bem egoísta, não é?
Claramente ofendido, mas sem ter alguma maldade em seu coração para retribuir as palavras raivosas, Nikkolai se ergueu num movimento fluído e rápido, balançando a cabeça negativamente.
— Keigh, você pode ver meus sentimentos, pode sentir minhas dores e minhas emoções. Eu não preciso dizer uma palavra sequer. Se você se permitir enxergar a verdade, vai saber que eu nunca quis que você sentisse a mesma dor que a minha ao vê-la morrer por vários séculos. Eu nunca quis eliminar uma pessoa que poderia estar em seu coração. Eu tentei salvar você. Eu vim até aqui para avisar que você tinha de escolher a si mesma. E eu fiz isso com todos os riscos de que o Criador soubesse que a sua história mudou a direção por minha causa. Depois disso, retornei para saber se você estava bem, para contar sobre o destino dos humanos que você ama. E, se você ainda me considera egoísta por pensar em você antes de mim, então que assim seja. Eu não consigo provar o contrário, se você não se permite enxergar.
— Que assim seja — repeti em voz alta, erguendo-me e me afastando da beira do telhado. Eu me aproximei até estar perto o bastante para que a altura de Nikkolai cobrisse toda a minha visão além dele. — Porque talvez eu realmente não queira que você prove o contrário. Talvez eu só esteja pensando mesmo em salvar os humanos e esquecer que você existe.
Nikkolai abriu a boca para falar, tive a nítida impressão que mencionaria a profecia, e me empertiguei, preparando para encontrar palavras que pudessem machucá-lo o bastante para evitar o assunto. Porém, certamente entendendo o rumo que meus pensamentos e emoções estavam me levando, ele negou com a cabeça novamente e se afastou. Nikkolai me observou por mais um momento, até que um vento sussurrou contra os seus cabelos. Ele abaixou os olhos e apurou os ouvidos, mantendo uma expressão concentrada, como se tivesse escutando as palavras cantadas pela brisa fria.
— Tenho um trabalho para fazer — disse ele em voz rouca. Os seus olhos não me encontraram quando ele acrescentou: — Conte a verdade para suas amigas antes que seja tarde. Pelo menos uma vez em todas as suas cinco vidas, escute meus conselhos.
Naquele momento, meu coração se apertou de modo tão triste e afetado pelas palavras dele — ou talvez pela maneira como aquela barreira entre nós parecia cada vez mais sólida e presente — que fiquei com ainda mais raiva.
— Escutar você só para ver quem vai morrer dessa vez? — disparei com dentes cerrados. — Não, eu prefiro fazer do meu jeito.
Nikkolai me ignorou, sem fazer cara f**a, sem xingar, ele simplesmente passou por mim, desceu as escadas e saiu da minha casa para fazer o que quer que o seu Criador estivesse ordenando. E eu fiquei ali parada no escuro, no meio do vento, me sentindo ridícula por ainda culpá-lo pelas minhas próprias escolhas erradas.