— E você acredita que ele aquele i****a do Kirk disse que o fato de eu ainda estar solteira é porque eu crio expectativas altas demais nos livros que leio ou vendo em meu trabalho? — resmungou Zylah, gesticulando com as mãos e quase acertando a xícara de café que eu servia. — Ele teve a audácia de culpar os meus gostos literários para justificar aquela bosta de encontro. Eu estou falando sério, Kei, eu nunca mais vou me encontrar com homem algum. Eu desisto. É sério. Eu desisto de tentar arranjar namorados. Isso não funciona para mim. Meu destino não é ficar com nenhum desses homens.
— Tente investir em mulheres — sugeri, com uma nota de humor em minha voz.
— É, eu deveria fazer isso — disse Zylah, empertigando os ombros e afastando os cabelos louros que estavam voando em seu rosto pela brisa fria que entrava pela janela aberta da lanchonete. — Eu vou me inscrever em sites de namoros para tentar encontrar garotas. Só assim vou conseguir desencalhar.
Dando risada, limpei a sujeira que ela fez em sua mesa ao provar a nova receita de pastel assado que estávamos vendendo no estabelecimento, e me aproximei da porta para virar a placa de fechado. Nos fundos do salão, onde uma pequena porta dava para a cozinha, eu podia ouvir o resto da equipe de funcionários conversando baixinho e jantando as sobras dos alimentos não vendidos.
Eu só não estava junto deles porque Zylah apareceu poucos minutos antes do fechamento e permaneceu ali até que o meu turno acabasse. Eu ainda precisava limpar o chão e o restante das mesas, mas ela se prontificou a me esperar, munida de um dos seus livros de fantasia e*****a do momento e uma xícara de café.
A capa do livro posicionado ao lado da mão dela, que era feita em tons dourados e com uma máscara desenhada em caligrafia escura, reluziu por um instante pelo canto dos meus olhos, e eu olhei depressa, quase me enganando ao pensar que Zylah estaria brilhando naquele mesmo tom de ouro. Por vezes os meus olhos me enganavam quando eu olhava depressa para Anne, vendo seus cabelos castanhos reluzindo com o tom dourado feito uma segunda pele, só para que eu piscasse e a miragem sumisse.
— Para início de conversa... — comecei a dizer, molhando o esfregão e colocando no chão. — Por que é que você está fissurada nessa ideia de arranjar um namorado?
— Amiga, eu preciso ter bebês! — exclamou ela, arregalando os olhos diante da minha expressão de incredulidade. — Eu tenho quase trinta anos. Sou formada em uma área totalmente diferente da qual trabalho. Apesar de amar os livros, eu sempre pensei em seguir a carreira de arqueóloga, mas sabemos que isso não foi possível devido as circunstâncias. E, durante a minha juventude inteira, eu andei dispensando os caras. Agora eu preciso que eles venham desesperadamente até mim, ou então vou acabar com a minha linhagem. Os meus gatos não podem suprimir esse tipo de coisa.
— E você acha que tendo um namorado vai conseguir os seus sonhados bebês? — questionei, rindo baixinho enquanto empurrava e puxava o cabo do rodo. — Você sabe que nem todos homens sonham em ter filhos, não sabe?
— É, Kei, eu sei, por isso a procura está demandando tanto tempo — suspirou ela, tocando levemente na lombada do livro de capa bonita em seu alcance. — Ah, se pelo menos os guerreiros da Sarah J Maas fossem reais... Quem me dera.
— E o que aconteceu com esse cara que criticou os seus gostos peculiares para livros e homens? — perguntei, dando a volta no piso úmido da lanchonete para pegar os cantos que não alcancei na primeira passada do esfregão. — Não vai me dizer que você confessou logo de cara que preferia um guerreiro colossal que ajudasse você a treinar enquanto lida com seus problemas emocionais?
— Foi exatamente o que eu fiz — disse Zylah, gesticulando com os ombros. — Se ele não pode superar o Cassian, ele não serve para mim. É assim que funcionam as coisas no meu mundo. E, confesse, Kei, até você não se envolve com ninguém porque é apaixonadinha pelos guerreiros literários que só existem na nossa imaginação.
Eu não tive coragem de relembrá-la de que ela havia visto uma foto de Valtrax em minha casa, e que ela sabia muito bem de que ele tinha mais do que apenas o biotipo de um guerreiro real e muito mais do que apenas uma parte da minha imaginação. Só que eu nem precisei falar para que ela percebesse que havia tocado num assunto limite para mim, e que a minha expressão beirou ao desalento e a tristeza pura. O meu coração se encheu novamente daquela escuridão, do tipo que sempre me fazia querer chorar até as minhas lágrimas secarem ou o luto passar. Eu tive esperanças de que aquilo melhorasse com o tempo. Só que, mencionar Valtrax, mesmo que indiretamente, ainda me causava efeitos terríveis.
Em algum outro lugar da cidade, uma onda foi enviada ao meu coração, como um sopro de luz entre as trevas. E não precisei de muito tempo para entender que Nikkolai havia sentido aquela fraqueza momentânea, agora que nossas almas estavam novamente conectadas. Continuei esfregando energeticamente o chão, querendo que o calor do esforço físico me afastasse daquele arrepio que subiu pela minha coluna ao sentir a presença de Nikkolai em meu corpo, querendo se certificar de que eu estava segura.
— De qualquer forma... Eu acho que você fez bem em dispensar o Kirk — falei ao colocar o esfregão no canto mais próximo da porta do banheiro. Retirei meu avental, dobrei, e coloquei sobre o balcão com estufas de salgados e cupcakes. — Você merece coisa melhor.
— É, amiga, eu concordo. Mas eu preciso dos meus bebês — insistiu Zylah, erguendo-se e me ajudando ao trazer a xícara já vazia até o balcão. — E quanto mais tempo os idiotas surgirem na minha vida, mais difícil vai ser para encontrar o pai ideal. Você acha que eu deveria publicar no f*******:?
— Ah, Zylah, pelo amor de D... Merda... — resmunguei, massageando o incômodo em minha garganta. — Você deveria focar em coisas mais importantes do que fazer bebês.
— O que é que pode ser mais importante do que fazer bebês?
A possível guerra que o Criador está planejando, talvez, pensei em dizer. Reprimi as palavras na ponta da língua e tentei ganhar algum tempo antes de responder, acenando para a proprietária da lanchonete e dando meu turno por encerrado. Zylah me seguiu ao guardar o livro na mochila que trazia nas costas, envolvendo o corpo com os braços para evitar a lufada de ar frio que nos atingiu. Uma chuva parecia estar se formando novamente no horizonte, mas pelo menos eu sabia que já não era mais pela fúria nos céus.
— Qualquer coisa é mais importante do que bebês... Eu tenho certeza de que Anne concordaria comigo — falei com um sorriso, destrancando o carro. As chaves me atrapalharam inteira, emperrando na porta. Eu xinguei, mas a realidade é que aquele carro já fazia demais por mim, depois que sofri um acidente e o deixei submerso na água por semanas enquanto me aventurava no inferno. Era um milagre que a minha magia ainda o fizesse funcionar. A chave emitiu um clique estranho, quase como se estivesse ao ponto de se partir, e eu a puxei de volta afim de averiguar o problema. — Falando em Anne, onde ela está agora?
— Na sua casa, é claro — disse Zylah.
O vento que passou ao meu redor fez os meus cabelos agarrarem nos cílios, por isso Zylah nem percebeu a minha expressão de pânico mudo.
— Na minha casa? Por que na minha casa? — questionei.
Zylah virou a cabeça para me olhar, ela estava distraída com um homem que caminhava vagorosamente em nossa direção.
— O final de semana é na sua casa, esqueceu? — retrucou ela.
Nós tínhamos um ritual para manter aquela amizade sendo pessoas que trabalhavam o dia inteiro. Aos finais de semana, íamos para a casa uma da outra e maratonavamos os filmes e séries preferidos uma das outras. Eu tinha me esquecido completamente que aquela era uma sexta-feira, e que a casa escolhida para a sessão era a minha. No entanto, eu não estava sozinha em casa desde a noite passada, e me lembrava de que Nikkolai disse que encontraria uma forma de voltar sem que eu o buscasse. Se Anne estava a caminho, ela se encontraria com ele.
Nikkolai não era burro de querer contar qualquer coisa antes que eu chegasse. Ele sabia muito bem que eu poderia acabar com toda aquela aliança que adquirimos tão repentinamente. Porém, conhecendo Anne da maneira que eu conhecia, eu sabia que ela não sossegaria até descobrir as origens de Nikkolai. Pior ainda, sua inclinação para o lado da fé poderia muito bem fazer com que ela se sentisse familiarizada com Nikkolai. A ideia me perturbou. Pensar que Anne poderia se sentir da mesma maneira com que eu me sentia na presença de Nikkolai.
— Vamos logo para casa — falei com um tremor na voz, socando a chave na porta e girando sem cuidado. Por sorte, ela não quebrou. Zylah entrou no carro, observando o espelho retrovisor. — Eu realmente esqueci que hoje era sexta-feira.
— Podemos ir o mais rápido possível? — perguntou Zylah, recostando-se no banco e parecendo tensa. — Não me sinto bem, Keigh.
Eu dei partida no carro, não antes de notar pelo retrovisor que o homem que seguia em nossa direção estava agora se posicionando na vaga em que meu carro esteve, e ainda observava enquanto partíamos. Zylah, no banco do passageiro, se manteve calada e assustada. Eu deveria ter aproveitado o momento em que estávamos sozinhas. Talvez ela aceitasse melhor a ideia de que o Criador do mundo estava disposto a acabar com ele, já que ela não tinha muita fé em nada. Só que a maneira com que ela parecia em choque, e a visão daquele homem desconhecido no meu espelho retrovisor, afastou qualquer noção que eu tinha sobre informá-la da guerra próxima.
Quando estacionei diante da minha casa, nem esperei para que Zylah me acompanhasse. Ela estava mais lenta do que o normal, olhando por cima dos ombros e parecendo receosa quanto aos próprios passos. Me aproximei da porta e escutei risadas, então entrei de uma só vez, para encontrar Nikkolai e Anne sentados no chão da sala, brincando com um jogo de cartas. Os dois ergueram as cabeças quando me viram, Nikkolai usando uma bermuda e camisa escura, deixando seus cabelos louro-brancos ainda mais chamativos, e Anne com seus grandes olhos castanhos a me fitar.
— Opa... — disse Zylah, esbarrando em mim ao passar e fechar a porta. Ela também notou a presença de Nikkolai. Apesar de ele ter se mantido relaxado e receptivo, eu podia sentir o resquício de assombro na ligação das nossas almas. Zylah deu alguns passos além dos meus, jogando a mochila no chão. — Quem é você?
— Nikki — respondeu Anne, abrindo um sorriso amável. Ela virou o rosto para olhá-lo, recebendo um sorriso igualmente largo dele. — Ele é amigo da Kei.
— Amigo? — perguntou Zylah, me cutucando com o ombro. Ela chegou mais perto para sussurrar no meu ouvido: — Agora eu entendo porque a pressa em voltar para casa.