Capítulo 08

1962 Words
— O que vocês estão fazendo? — perguntei, embora fosse óbvio. — Jogando Uno — respondeu Nikkolai, achando graça no nome do jogo. — Eu ainda estou tentando entender as regras. É mais difícil do que eu pensava. Quando você está do alto e vendo quais são as cartas da pessoa, tudo muda. — É exatamente o que eu penso — disse Anne, sem realmente se tocar de que Nikkolai se referia a estar sempre nas costas de um humano que deveria proteger, e não como um oponente que aguardava a sua vez para jogar. — Só que fica mais fácil quando você entende que precisa recolher duas cartas do baralho quando eu jogar essa carta... — Ah, de novo não! — gemeu Nikkolai de frustração. Rindo, Anne observou enquanto ele lançava um olhar f**o para a carta com um pequeno 2+ em sua lateral, e corria seus dedos pelas cartas do barulho virado para baixo. Eu deixei minha bolsa no sofá, ainda observando a interação entre os dois. Zylah se afastou alguns passos afim de empurrar as cortinas da sala e espiar o lado de fora da casa. Desviei a minha atenção para ela assim que Nikkolai e Anne deram novas risadas. — O que há de errado, Zy? — perguntei baixinho. Zylah suspirou de modo trêmulo, como se arrepios incontroláveis perpassem o seu corpo. Eu me estiquei para ver o que ela tanto olhava. Não havia nada lá fora. O mundo estava coberto do negror da noite, e não havia sequer um sinal de chuva ou alteração nos céus. Zylah, no entanto, continuou um pouco assustada e receosa. — Eu estou me sentindo m*l. — Disse ela, abraçando-se. — Sinto como se... Não sei. Não consigo explicar. Anne se agitou para se colocar de pé, e rapidamente se aproximou de nós. Ela tocou levemente na testa de Zylah, medindo sua temperatura. — Você está com febre. Será que está ficando gripada? — ponderou Anne, ainda medindo a temperatura de Zylah pela garganta e bochechas. — Eu tenho um analgésico na bolsa, se você precisar. — Não me sinto m*l como se estivesse doente — disse Zylah, engolindo em seco. Ela tornou a olhar pela janela. — Eu me sinto m*l fisicamente... É como se a minha energia estivesse sendo sugada. Isso faz sentido? Eu lancei um olhar para Nikkolai, que estreitou seus olhos sobre Zylah. Por um segundo muito rápido, os olhos de azul-violeta de Nikkolai faiscaram num brilho azulado muito parecido com o seu poder, e o odor da magia angelical encheu a sala. Embora minhas amigas não pudessem notar qualquer mudança no ar, Zylah se encolheu ainda mais no momento em que a magia de Nikkolai alcançava o seu corpo. De modo súbito, o poder de Nikkolai retornou para o seu próprio corpo, como se tivesse sido repelido de uma maneira brusca, quase como num empurrão, e agora ele estava olhando para Anne de modo muito curioso. — Eu vou preparar um chá para você — avisei, tentando colocar Zylah sentada. — Eu acho que você teve fortes emoções com o desastroso encontro pela internet. — Ah, ela fez isso de novo? — zombou Anne, dando risadinhas. Ela me surpreendeu quando, exatamente sem motivo algum, pegou em minha mão e disse: — Você também não parece muito bem, Kei, quer ajuda para fazer o chá? Dessa vez, Nikkolai ofegou tão alto, feito levar um susto terrível, que nós três nos viramos para observá-lo. Eu só pude entender a sua reação quando notei, pelo canto dos olhos, que enquanto tocava em minha mão, Anne emitia um suave brilho dourado ao redor do seu corpo, feito uma segunda pele, agora muito mais forte do que em qualquer outra ocasião. Abrindo um sorriso falso e breve, dispensei a ajuda de Anne e puxei Nikkolai comigo, na esperança de que ele pudesse manter a boca fechada pelo menos até estarmos sozinhos. — Você... ela... Você notou? — ele perguntou, completamente pasmo. Os olhos bonitos estavam arregalados e se recusavam a deixar a direção da sala, mesmo que já houvesse uma parede de distância entre nós e minhas amigas. — Eu não notei nada enquanto estávamos sozinhos. Achei estranho que ela simplesmente entrasse em sua casa com uma chave reserva... Mas ela foi educada comigo e aceitou muito fácil a história de que sou apenas um amigo das antigas, e eu achei ainda mais suspeito que ela não quisesse ligar para você e confirmar a história. Você pode me dizer o quê, pela graça do Criador, é essa humana? — Como assim o que é? — indaguei, aborrecida. — É apenas uma humana normal e minha amiga. — Não, Keigh, você sabe muito bem que humanos comuns não brilham — disparou Nikkolai, detendo seus olhos nos meus. Havia um brilho de espanto e leve fascínio em suas íris. — Como é que você pode ter se aproximado de uma criatura sobrenatural sem perceber? Você sabe que o Criador pode ter colocado essas mulheres em seu caminho como uma forma de descobrir suas fraquezas, não sabe? — Ele já sabe minhas fraquezas — retruquei, rangendo os dentes. A imagem de Valtrax morrendo com a própria espada cravada no peito retornou para a minha mente, e eu tive de olhar para o teto afim de reprimir a ardência nos olhos. Quando voltei a encarar Nikkolai, ele também estava com os olhos repentinamente úmidos. — E eu não acho que ela tenha brilhado de verdade. Isso nunca aconteceu antes. Não minta para quem a conhece tão bem, eu podia escutar a voz que ele usava para falar naquela ligação entre nossas almas me acusando de estar tentando esconder algo que cada dia se tornava mais claro. Eu sempre notei, desde o meu reencontro com Anne na igreja, que ela não era como Zylah ou qualquer humano comum. Sempre que nos tocávamos, por menor que fosse o contato, sua pele emanava aquele mesmo tom de ouro que a minha — quando eu não sabia esconder minha alma através dos feitiços de sigilo — emitia por ser a rainha do inferno. Eu nunca considerei que ela corresse algum perigo por emitir aquela luz dourada, já que raramente nos tocávamos, e quando eu notava o brilho, recuava imediatamente. — Keigh... Você tem ideia de que um humano comum não pode brilhar? Ou tem ideia de que uma criatura que brilha não é apenas uma criatura qualquer? — questionou Nikkolai, parecendo completamente assustado. — Você é a rainha do inferno, mesmo depois da sua morte, a pessoa que assumirá o trono deve seguir a hierarquia imposta por Lúcifer... Se a sua melhor amiga na terra tem o mesmo tipo de destino que o seu, isso não pode significar uma coisa boa. Tem algo de errado com as suas amigas. E eu não vou nem mencionar a outra... Ela não brilha, mas se eu contar para você o que pude sentir nela agora há pouco... — Eu não quero saber, certo? — falei com rispidez, então me afastei e peguei uma panela, enchendo-a com água. Estávamos tanto tempo ali cochichando e resmungando que me impressionava de que minhas amigas não houvessem surgido do nada para saber o que acontecia. — Eu não quero duvidar das únicas pessoas sensatas que me restaram nessa vida. Você precisa parar com essa ideia de achar que todos ao meu redor querem me m***r, Nikkolai. Você não pode ficar colocando defeitos em todas as pessoas que se dispõem a estar do meu lado. — Keigh, eu pude sentir magia infernal e angelical dentro daquela sala, e não estavam vindo de você ou de mim — disparou ele, seguindo-me enquanto eu colocava a chaleira no fogo. — Será que a rainha do inferno é tão ingênua de não entender que nada, ninguém, que surja no caminho uma das outras é mera coincidência? Essas duas mulheres fazem parte da sua história, Keigh. E, sejamos sensatos, a sua história não é nenhum conto de fadas. Por que a dificuldade em acreditar que elas não possam ser o que parecem ser? Ambas estão condenadas ao inferno, eu sei que você também vê isso, e sei que você tem suspeitas quanto aos motivos. Nós compartilhamos estes sentimentos. — Tudo bem, Nikkolai, e você espera que eu faça o quê com essa informação? — disparei com dentes apertados. — Você quer que eu termine duas amizades que apenas me fizeram bem, só porque há uma remota possibilidade de que essas mulheres não sejam apenas... — É uma possibilidade muito grande, na realidade — disse ele, cruzando os braços. — Eu não posso desconfiar das pessoas que se aproximam de mim sem uma razão aparente. Elas não possuem arcanjos, brilham de vez em quando, mas ainda assim, são como irmãs para mim. Neste momento, alguma coisa perpassou a cabeça de Nikkolai, e eu perdi o pensamento naquela ligação entre nossas almas. Os olhos dele se arregalaram momentaneamente, então se voltaram para a sala, onde escutávamos minhas amigas rirem baixinho de alguma piada de Zylah. Quando Nikkolai voltou a me encarar, ele engoliu em seco, agindo daquela mesma forma que fazia ao me esconder alguma informação. Eu abri a boca para exigir a verdade, mas ele me calou. — Conte tudo para elas, Keigh — ele pediu em tom de ordem, e eu fechei a cara. — Estou falando sério, Keigh. Conte tudo. Conte quem você é. Pergunte se elas... Se há algum parentesco sombrio entre os descendentes delas. Eu posso sentir que essas mulheres foram abandonadas há anos pelos seus arcanjos. Talvez nunca tenham tido um. Você precisa saber mais sobre elas. — Nikki, nada do que você me disser vai me colocar contra as minhas amigas — garanti em voz baixa. — Não se esforce demais em tentar me fazer acreditar de que apenas você é a parte boa na minha vida. Eu não me iludo tão facilmente assim. Enquanto eu colocava os sachés de chá nas minhas recém-compradas xícaras de porcelana, Nikkolai ficou me observando. Enquanto eu colocava açúcar e remexia o líquido com uma colher, ele lançou um olhar demorado para a parede que nos separava da sala, ainda em silêncio. E quando eu já estava colocando as xícaras numa bandeja, ele chegou perto o bastante para que nossos braços se tocassem, e conseguiu atrair a minha atenção. O seu rosto já exibia uma expressão neutra e relaxada, embora eu sentisse a tensão entre nós como uma corda esticada. — Pense sobre isso, Keigh — ele sussurrou, provocando cócegas em minha nuca. — Você está destinada a governar mais do que apenas o inferno... Eu tenho certeza de que o Oráculo contou para você o que você se tornaria quando fizesse a escolha certa... Se você sair do inferno, se você nunca mais voltar, alguém tem de assumi-lo. E, ironicamente, suas amigas humanas são destinadas ao inferno. Por que você não enxerga as conexões? — Porque é para isso que Faye está lá — respondi com pouca convicção. — Ela está governando para mim, já que Valtrax morreu e eu estou aqui em cima. Ela é a próxima na linha de sucessão ao trono, caso alguma coisa me aconteça. E eu não quero que você fique tentando colocar coisas em minha cabeça. Eu sei como o meu mundo funciona em sua hierarquia, há pelo menos quatro anjos-caídos para ocupar o trono, e eu sei que minhas amigas estão bem longe de descobrir que pertencem àquele lugar também. Eu peguei a bandeja com as xícaras e comecei a me afastar de Nikkolai, só que, mesmo distante o bastante para não o ouvir dar uma risadinha sarcástica — pois pude senti-la soando apenas em minha cabeça —, eu pressenti que estava terrivelmente enganada em minhas convicções.
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