Depois de um jantar muito estranho, em que Zylah ainda aparentava estar um pouco doente e cismada em olhar pela janela, e Nikkolai não parava de puxar assuntos pessoais com Anne — que respondia a tudo com tanta familiaridade que quase me incomodou — nós decidimos que não havia o menor clima para assistir filmes.
Então eu e minhas amigas dormimos em meu quarto, colocando um dos colchões infláveis próximo da janela para Anne, enquanto o outro ainda estava sendo ocupado por Nikkolai no andar abaixo. Zylah, ainda atordoada por qualquer que fosse o m*l-estar do seu corpo e sem conseguir explicar porquê é que não estava conseguindo ignorar as janelas, não fez objeção em dormir na cama comigo. Anne até tentou brincar um pouco dizendo que Nikkolai era bonito demais para ser apenas meu amigo, só que ninguém estava com muito humor naquela noite, e ela foi a primeira a dormir.
Eu tive grandes dificuldades para tentar dormir. Sentia como se houvesse comido algo indigesto, mas o jantar com massa à bolonhesa não era o responsável por aquela sensação r**m na boca do estômago. Eu fiquei olhando para Anne enquanto ela dormia, pensando se realmente deveria desconfiar da maneira com que fomos levadas uma para a vida da outra. Não fazia sentido as suspeitas de Nikkolai. Anne era religiosa demais, podia mencionar o nome de Deus sem se engasgar, ao contrário do que acontecia comigo... Zylah muito provavelmente aceitaria de bom grado o trono no inferno, porque ela nem sequer acreditava que ele existisse, mas, mesmo deitada em minha cama, ela não emitia brilho algum em sua alma humana.
Eu estava me sentindo péssima por considerar a possibilidade de que não fazia ideia de que aquelas mulheres poderiam ter feito — ou vir a fazer — para perder seus arcanjos. Sempre considerei que a perda fosse simplesmente por terem sido tocadas pelo m*l, pelos períodos conturbados em que conheceram o pior lado dos humanos. Agora eu apenas observava cada uma delas, sem saber se poderia dormir tranquilamente com ambas tão próximas da minha garganta. Morrer nunca foi uma perspectiva tão assustadora, mas, morrer pelas mãos de pessoas que eu confiava... Eu acho que isso teria me mudado de uma maneira ainda pior do que assistir a morte de quem eu amava.
Quando as horas continuaram passando no relógio ao lado da cama, eu me levantei, espiei por cima de minhas amigas para ver se continuavam dormindo e me esgueirei para fora do quarto. Quando eu estava colocando um pé no primeiro degrau da escada que me lavaria para a sala e para o encontro com Nikkolai, pude sentir aquela estranha e tão conhecida sensação de uma pancada s***a no peito. Revirei os olhos, sabendo muito bem que era um sinal dele para me chamar, e mudei de rota, direcionando-me para a área de serviços na casa, cuja escada de ferro erguia-se para o telhado.
— É por sua culpa que não consigo dormir? — ele perguntou, sentado no beiral do telhado, observando o céu escuro e sem estrelas.
Me aproximei devagar, pisando descalça nas pequenas pedrinhas da laje de concreto. Passei uma das pernas pela borda do telhado e me sentei de lado, totalmente virada para Nikkolai. Os cabelos dele estavam esvoaçando suavemente para o alto, conforme uma brisa gelada e fantasmagórica perpassava pelos nossos corpos, os fios louro-brancos agitando-se contra sua testa. Ele continuou olhando para o céu, mesmo ao perceber que eu já estava perto o bastante para sentir a tensão em seu corpo. O modo como ele olhava para os céus, querendo sentir raiva, ainda que não pudesse, me deixou comovida.
Há muito tempo, eu havia pensado que se as minhas asas fossem arrancadas, eu teria subido aos céus para derrubar todos eles até o inferno. Nada no mundo me pararia. Agora, além dos amigos que eu tinha no inferno e que foram subjugados àquele tipo de punição, até mesmo o meu próprio guardião perdeu a sua melhor maneira de se locomover. Aquele tipo de coisa era terrível demais; quase comparado ao arrancar as pernas de uma pessoa. Nikkolai exibia um tipo de impotência que eu me senti péssima de perceber.
— É por sua causa que eu não pude dormir — resmunguei, espalmando as duas mãos contra a elevação de concreto que me segurava no telhado. — Você falou coisas idiotas demais.
— E, mesmo sendo idiotas, você ainda pensa sobre elas — disse ele com um riso na voz, embora seus lábios não se curvassem. — Eu acho que merecia receber algum crédito por ser o seu guardião.
— Você só me jogou para a morte durante todo esse tempo — apontei, gesticulando com os ombros. — E como é que espera que eu acredite cegamente em suas suspeitas?
— Você me conhece, Keigh.
— Você também me conhece, Nikki. Você sabe que eu daria tudo pelos meus amigos. E que jamais desconfiaria de qualquer um deles.
Nikkolai suspirou, percebendo que o assunto não levaria a nada de qualquer maneira. Ele finalmente desceu os olhos para mim, revelando uma expressão pesarosa e muito cansada. Desde o momento da minha chegada até servir os chás e o jantar, não tivemos tempo para ficarmos sozinhos.
Eu sequer havia notado que ele estava com os ombros mais curvados, e cabisbaixo, como se pudesse estar tomado por um abatimento extremo. Eu sabia que ele havia estado até tarde da noite na delegacia, tentando convencer seu antigo protegido a ajudá-lo a se inserir no mundo humano, e alertar quantas pessoas pudesse sobre os planos do Criador. No entanto, pela maneira com que ele parecia muito triste e cansado, eu tive uma leve suspeita de que as coisas não saíram conforme planejado. Naquele momento em que estávamos no telhado, abaixo do céu escuro e sem estrelas espiando nossa conversa, meus dedos foram automaticamente para os deles.
— Por que você não voltou? — ele perguntou de repente, analisando nossas mãos unidas. O brilho em seu anel mudou para o tom violeta, mesclando-se com nossos poderes, ainda que o meu permanecesse escondido. — Por que abandonou o inferno e voltou para o lugar onde estava jurada de morte?
— Porque eu não tenho mais nada a perder — confessei em voz baixa e firme. Nikkolai desviou a atenção dos nossos dedos unidos e me observou longamente. — Porque estar naquele lugar me fazia lembrar dele. Me fazia querer morrer. E eu acho que não seria justo com todas as reencarnações e pessoas que surgiram em meu caminho para tentar quebrar o ciclo, de que eu simplesmente tirasse a minha vida. Então eu preferi sair.
— Sim, mas, por que não voltou quando se sentiu melhor? — ele quis saber.
— Porque eu ainda não me sinto melhor. Eu ainda o vejo em todos os cantos que eu olho. Eu ainda sinto que o meu coração está totalmente cheio de um líquido venenoso. E eu não acho que conseguiria sentar naquele trono, ver todos dançando e bebendo, sendo que nada para mim é como uma festa. Eles não me entenderiam. Não existe algo como uma depressão no inferno, embora Tennebris realmente fosse uma imagem muito nítida desse problema... Eles não entenderiam. Ninguém entenderia.
— Eu entendo.
— Não, você não pode entender. Apenas eu senti aquela dor.
— Mas eu pude sentir a forma como você o amou durante os séculos — disse Nikkolai, tão baixinho que parecia não ter coragem de admitir estar observando a tudo e a todo momento. — Tudo o que você sentiu por ele, Keigh, eu pude ver. Tudo o que você reprimiu e nunca disse a ele, eu pude ver também. Não há segredos entre os nossos sentimentos.
Desviei o olhar para baixo, observando o meu robe que se espalhava sobre o parapeito do telhado. Eu não conseguia manter os olhos em Nikkolai. Não conseguia suportar pensar em que ele esteve realmente assistindo a tudo, feito um espectador curioso. Eu não sabia se me sentia violada ou indiferente. Teria sido um método de tortura que ele assistisse durante séculos a mulher por quem se apaixonou, estar se apaixonando por outro? Será que ele se sentia agradecido pelo fim de Valtrax e a chance de concretizar a nossa profecia? Eu só podia ter certeza de que ele captou cada uma das indagações que eu não pude fazer em voz alta.
— Como funciona a nossa ligação? — perguntei, ainda encarando o mais baixo que meus olhos conseguissem focar. — Por que eu pude quebrá-la no momento em que neguei qualquer aproximação sua?
— Porque eu não posso estar com você, sem que você queira ser protegida — disse ele, e notei pelo canto dos olhos que ele estava gesticulando com os ombros. — Você sempre se sentiu sozinha demais, Keigh. Em todas as encarnações. Em todos os mundos. Você me atraiu para você, antes mesmo que o Criador me ordenasse para vigiá-la. E, por passarmos tanto tempo compartilhando os pensamentos e sentimentos um do outro, eu acabei me apaixonando por você. Mas eu jamais pude me aproximar fora dos momentos em que você precisava se sentir protegida. O meu trabalho era estar lá, pelo tempo em que você precisasse.
E, realmente, se eu me lembrasse de todas as vezes em que Valtrax e eu fizemos s**o, saberia que Nikkolai não tinha estado ali, embora imaginar que ele pudesse ter sentido… Todas as vezes que me olhei no espelho ou em qualquer reflexo sem notar a presença de Nikkolai porque estava ocupada demais com outro homem, teria notado que, apesar de tudo, ele nunca invadiu minha privacidade.
— Há alguma chance de não ficarmos juntos? — perguntei, mordendo o lábio.
Nikkolai ergueu a mão que segurava a minha, soltando meus dedos para pegar em meu queixo e erguê-lo. Os nossos olhos se encontraram, e pude me ver refletida no azul-violeta de suas íris. Por um momento delirante, vislumbrei recortes de um futuro ainda desconhecido, onde eu podia me ver plenamente deitada num gramado muito verde e baixo, enquanto Nikkolai sorria para mim do outro lado. Então, voltando para o presente, ele abriu um sorriso muito breve.
— Eu já disse, Keigh, uma profecia não pode ser mudada.
— Mesmo se um de nós morrer?
— Eu esperei que você retornasse da morte durante quinhentos anos — disse ele, franzindo de leve o cenho. — Eu ainda esperaria um pouco mais até que você compreendesse que o nosso elo é o mais absoluto em qualquer mundo.
— Realmente existe algo como almas gêmeas no mundo, então? — questionei.
— Existe — disse ele, sem hesitar. — O significado mais absoluto do amor é encontrar aquele está destinado para nós. Eu encontrei você, e, mesmo que não admita, você me encontrou, Keigh.