Capítulo 01

1722 Words
O peso de Nikkolai quase me derrubou quando ele tentou se colocar de pé, mesmo assim, me esforcei para arrastá-lo e guiá-lo até a entrada da minha casa com sobrado. As janelas vizinhas apenas refletiam os clarões pelos relâmpagos nos céus, já que era muito tarde da noite para que alguém se desse ao trabalho de continuar acordado para tentar saber a origem daquela tempestade brutal. Ninguém além de mim poderia reconhecer que uma chuva daquela só significaria uma coisa; o céu estava em fúria por alguma atitude na terra. O homem ao alcance dos meus braços, tropeçando e tentando se refugiar da tempestade para dentro da minha casa, era o motivo daquela balbúrdia. O arcanjo mais valioso dos céus, pedindo abrigo para a rainha dos demônios que se mantinha cladestinamente na terra. É claro que o Criador estaria furioso com aquilo. Nikkolai quase tombou direto para o chão quando nos precipitamos para a porta de entrada, e os seus pés totalmente cobertos pelo próprio sangue fez com que ele escorregasse no piso limpo e sem tapetes da minha sala de estar. Eu tive de soltá-lo para fechar a porta, por isso ele realmente desabou contra o sofá, caindo de cara nas almofadas. Apenas ali, com a luz da sala acesa e expulsando a escuridão do mundo lá fora, pude notar a imensidão daqueles machucados em seu corpo. Aparentemente, não só os demônios poderiam ceder à algum tipo de ira. As costas de Nikkolai, cobertas por uma camisa fina de tecido branco, estavam totalmente vermelhas pelo sangue que ainda escorria pelas sombras de suas asas cortadas. A pelugem branca agora era vermelha, e as penas estavam se mexendo como o ferrão de um inseto, movendo-se a esmo e em contrações involuntárias. Pensar que todos os meus amigos do inferno haviam passado por aquilo há milênios fez com que meu estômago se embrulhasse. Porém, o pior era a marca no pescoço de Nikkolai. Se eu não estivesse enganada, ele parecia ter sido quase degolado, como se algo muito quente houvesse estado ali e tivesse se partido de uma hora para a outra, quase arrancando seu pescoço fora. Alguma coisa me disse que aquela era a marca de sua auréola, mesmo que eu não tivesse a menor noção do que isso pudesse significar. Nikkolai gemeu e tentou se virar, provocando mais uma cachoeira vermelha que deslizou pelos cotocos de asas. Eu me afastei para entrar no lavabo abaixo da escada, retornando com uma caixa de primeiros socorros em mãos. Eu não sei o que me fez tomar este tipo de atitude. Os demônios podiam se curar através da magia infernal, e certamente os arcanjos teriam força suficiente para não se deixar abalar por qualquer ferimento. Só que, o modo como Nikkolai parecia totalmente vulnerável diante daqueles machucados, me deixou bem ciente de que a arma usada para causá-los não permitiria que qualquer resquício de magia em seu sangue o ajudasse. Então eu me ajoelhei ao lado do sofá, abrindo a caixa no chão. Nikkolai já tinha conseguido se virar quando eu peguei alguns esparadrapos, agulha e linha, algodão e um antisséptico. Os olhos dele estavam vidrados, quase opacos, e a cor parecia estar sumindo do seu rosto. Eu não me surpreenderia de que qualquer humano comum já estivesse morto naquela altura. A quantidade de sangue que vazava das asas cortadas dele era insana. O modo como um homem da estatura dele, do biotipo musculoso e forte, totalmente desfalecido em meu sofá que parecia pequeno demais para ele, dava ainda mais a impressão de que ele estava à beira da morte. Sem nem perceber, eu comecei a tentar reativar aquele contato que sempre tivemos antes de toda a tragédia no inferno acontecer. Comecei a tatear em minha mente, buscando por aquela ligação entre nossas almas, e que me permitia sentir quando ele estava disponível para falar comigo ou que o permitia ver quando eu estava em perigo. Eu continuei olhando para baixo, tentando colocar a linha na agulha, embora tremesse tanto que só conseguia me exasperar e sibilar pelo fracasso. Os olhos de Nikkolai ainda estavam sobre mim, pude notar pelos cantos dos meus próprios olhos, embora nossa ligação permanecesse muda. Indiferente. Eu não sabia se ele estaria de fato morrendo, ou se ainda havia esperança se eu conseguisse estancar o ferimento de alguma forma não-mágica. Eu tinha uma pequena teoria de que a magia infernal não era feita para ajudar a magia angelical, por isso nem me ocorreu a ideia de usar minhas mãos para aquecer e curar a pele retalhada em suas costas. Os meus cabelos e a minha camisola estavam ensopados, de modo que as gotas molharam a linha da agulha em minhas mãos e isso facilitou um pouco mais o processo de unir ambos. Eu havia tomado muitas precauções ao longo dos meses para manter uma vida quase normal no mundo humano, sem querer chamar a atenção dos arcanjos. Minha própria casa era coberta com uma magia de sigilo, que me dava uma grande segurança para não ser surpreendida com qualquer arcanjo que eu não quisesse receber. Ninguém mais poderia encontrar aquele endereço se eu não quisesse ser encontrada. Eu usei aquele feitiço na última visita de Nikkolai, temendo que ele estivesse lá não para me avisar da eminência de nossa profecia, mas porque temia que ele fosse um peão que o Criador estivesse usando para me m***r ou roubar meus poderes. Eu não sabia com qual tipo de inimigo estava lidando. Por isso eu usei boa parte dos feitiços que criei e escrevi em dois livros diferentes, agora mantendo-os apenas em minha cabeça para não correr o risco de que as informações tornassem a cair em mãos erradas, com a esperança de que isso pudesse fazer com que todo o mundo esquecesse de que a rainha dos demônios não estava no inferno. Por conta dos meus feitiços, tornei minha casa numa fortaleza escondida bem embaixo do nariz do Criador, e escondi meus próprios poderes para conseguir andar livremente pelas ruas e não chamar a atenção dos arcanjos. Isso estava funcionando muito bem, pelo menos até a chegada de Nikkolai. Quando finalmente a minha linha entrou na agulha, eu a deixei de lado e peguei o antisséptico. O líquido alaranjado brilhou quando o embebi no algodão, manchando meus dedos com a coloração forte do medicamento. Nikkolai, imóvel, com os olhos abertos e marejados, não emitiu som algum enquanto eu peguei suas duas mãos e espalhei o remédio. A reação do seu corpo foi imediatamente direcionada para outro tipo de dor, e ele trincou a mandíbula para conter o grito que ameaçava escapar da sua boca, mas a dor foi tamanha que ele não conseguiu reprimir tudo e o som ecoou dolorosamente até os meus ouvidos. Eu o observei com total horror. Se o meu grito poderia causar agonia em outras pessoas, eu não saberia descrever como o grito de Nikkolai me deixou totalmente deprimida. O meu coração, pela primeira vez em meses, se apertou de tal forma que eu achei que poderia estar sofrendo de alguma parada súbita dos batimentos. Esfreguei o medicamento nas palmas das mãos dele, notando que nada acontecia. Eu estava tão acostumada em não me ferir com nada, e nunca ficar doente por qualquer enfermidade humana, que me parecia irreal que alguém ainda pudesse sentir dor e não melhorar imediatamente com alguma ação curativa. Os remédios humanos eram bons, para humanos... Para criaturas que não eram daquele mundo, a dificuldade se tornava ainda maior. — Você precisa se virar — falei em voz trêmula, deixando cair o algodão no chão e trocando por outro que não estivesse sujo do sangue da carne viva das mãos dele. — Eu tenho que costurar o lugar onde as suas asas deveriam estar. — Não — gemeu ele, reprimindo mais uma trovejada de dor que perpassou o seu corpo. — Não toque nas minhas asas. — Ah, me poupe, Nikkolai — falei com certa aspereza, puxando-o por um dos braços para obrigá-lo a se virar. Ele estava tão pesado que eu acabei sendo arrastada pelo chão enquanto tentava fazer com que ele assumisse a posição de bruços. Eu me ergui, coloquei bastante força nas pernas e consegui lutar contra os seus protestos e virá-lo novamente. A visão estava ainda pior. Agora que ele havia estado por um tempo deitado em cima dos cotocos, eles se amassaram, de modo que se moviam como pássaros esmagados por uma roda. Meu estômago se apertou. — Eu vou ter que arrancar isso, Nikki. — Não — grunhiu ele, fazendo força nos cotovelos para se levantar. — Não toque, Keigh. Não toque nas minhas asas. Eu imploro. Não toque. Só que eu não estava achando que teríamos tempo para debates ou piedade. Simplesmente me curvei para ele, rasguei sua camisa em duas bandas e segurei naquela plumagem avermelhada, cujo as penas se debateram contra os meus dedos feito pássaros que se recusavam a morrer. Graças aos meus feitiços de p******o, eu podia as vezes usar um pouco de magia para não me esquecer totalmente de quem eu era. Por isso, com Nikkolai rosnando feito um cão ferido, eu concentrei um pouco do poder em minhas mãos e apliquei força suficiente para tentar puxar o resto das asas. Abaixo das nuvens magentas que se ergueram das pontas dos meus dedos com a magia infernal sendo liberada, uma quantidade ainda maior de sangue jorrou das costas de Nikkolai, enquanto o grito dele superava o meu em todos os sentidos; ecoando pelas paredes da casa e ameaçando subir aos céus pelo ódio com que soou. Foi pior do que eu imaginava. Mesmo com a magia infernal envolvendo as penas, elas não queriam sair. Me correu de que o objeto usado para as arrancar deveria ter sido mais forte e poderoso do que o fogo do inferno, já que nem a dona do inferno conseguia fazer com que o resto se soltasse. Com muito esforço, gritos de Nikkolai, sentimentos estranhos passando pelo meu coração, e puxões que fizeram a magia do meu sangue correr em alta velocidade, finalmente as asas se soltaram de suas costas, trazendo uma cartilagem dura e inflexível como osso. O sofrimento de Nikkolai se misturou ao meu pânico. E eu passei a pensar se realmente a maldade demoníaca era tão diferente dos métodos punitivos dos céus.
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