No frio do inverno, Ahura e Idrya deixaram Shakya para passar dois dias na floresta. Conhecedores dos atalhos e desvios, conseguiam fazer o percurso em menos de um dia a cavalo. Chegaram no início da noite do primeiro dia do fim de semana. Os autelanos tinham aprendido com os moradores da floresta a descansar por dois dias e não por um, como estavam acostumados a fazer em Hybria, costume que foi estendido a Shakya. E os dois chegaram no primeiro dia de descanso, quando as pessoas se reuniam na taberna para beber e cantar.
Os dois tinham levado consigo artefatos de ferro e bronze que eles mesmos tinham feito para trocar por bebida, pois conheciam o artifício de ferreiro. E como rei era dono da única oficina de ferro do pequeno reino de Shakya, ambos faziam os objetos durante a semana para trocar e se divertir no s dias de descanso. Ahura ia mais pela diversão e pelas músicas, do que pela bebida e pelas mulheres. Não gostava tanto assim de vinho. Gostava de passear a cavalo, das músicas, das danças e das cachoeiras. Também gostava dos pássaros. Ele preferia a floresta durante o dia que durante a noite. Achava as noites sinistras ali. Excessivamente escuras e assustadoras.
Tinha um pouco de medo, mas como ia com o amigo que era grande, forte e corajoso, Ahura ficava despreocupado.
Mas algo o levou para o passado. Na ocasião daquela noite, estava ele um pouco mais assustado que de costume, pois no caminho ouvira sons de animais estranhos e desconhecidos, que o fizeram arrepiar e temer silenciosamente sobre o cavalo.
Já na taberna, dois bardos, um homem e uma mulher, cantando uma linda canção, que soube ser antiga. Com um refrão fascinante, envolvente e uma história curiosa.
Idrya beijava uma garota de cachos e pele dourada, estranho para um lugar que fazia tanto frio, logo que o bardo começou a dedilhar suas cordas. E Ahura estava sentado em uma grande mesa coletiva de madeira com uma caneca na mão tomando alguma bebida forte que ele não conseguia identificar e vendo aquela mulher linda cantar com uma voz realmente deleitável, dando aqueles agudos perfeitos. Como ele amava os agudos! Também os graves, mas havia nele uma predileção por mulheres que estendiam os sons agudos por longos períodos. Adorou o contraste das vozes dos dois cantores. Eram perfeitos juntos. Mas a mulher cantava melhor, para o seu gosto, além de ser belíssima, com aqueles longos cabelos negros caindo sobre o vestido verde. Verde... um vestido verde... ela cantava sobre um rei, que se apaixonou perdidamente por um príncipe vindo de uma terra distante e, rompendo com as regras, casou-se com ele, tornando-o seu marido.
A canção era maravilhosa, como o agudo dela, e o verde do vestido. E o preto de seu cabelo, e a seriedade de seu olhar. Ahura sorria, e repetia o refrão de amor, que já tinha aprendido, entre o rei e o príncipe que se tornou seu marido. Estava embriagado. E os bardos saíram. E as pessoas continuaram a entoar a canção de amor. Quando ele lembrou do vestido verde.
"Uma guardiã!", ele pensou. Nunca tinha visto uma de perto. Ele tinha dezesseis anos na época.
Correu atrás dela para fora da taberna. Saiu procurando pela noite, a cantora de vestido verde, numa floresta. Saiu sem rumo e sem casaco. Perdeu-se. Não conseguia mais voltar. Desesperado, vagou pela floresta sem rumo e atordoado pela bebida. Perambulou incerto por aquela noite assombrosa, sozinho, sem direção. Quase chorou, mas era um homem feito já, um príncipe! Então, sentou-se próximo a uma árvore, encolhidinho e se enfiou na pouca roupa que vestia, torcendo para sobreviver até o dia seguinte sem morrer de frio ou sem ser comido por algum animal. Ou para que Idrya parasse de beijar a garota e o encontrasse.
Não fazia ideia nem sequer da distância que estava da taberna. Poderia ser encontrado por alguém de Hybria. "Meu pai vai me matar", pensou ingenuamente. Como se aquele fosse o pior destino possível.
Quando já estava quase desfalecendo de frio, ouviu as patas de um cavalo e uma voz feminina firme e assustadora.
— Quem é você? — ele m*l conseguia se desembrulhar para responder de tão rígido do frio que estava o seu corpo pequeno. Então a pessoa que vestia uma capa pesada, montada em um cavalo n***o, desceu e o pegou no colo, colocando-o no cavalo. Ao colocá-lo ela soltou uma exclamação realmente estranha.
— Minha nossa! Quem é você?! — ela perguntou, estupefata, enquanto o colocava com cuidado sobre o enorme cavalo.
— Ahura... eu sou Ahura... — ele murmurou para aquela voz arrepiante, equilibrando-se.
— Você vai precisar se segurar em mim, senão vai cair! — disse como uma ordem.
— Tudo bem. — ele respondeu, chiando quase inaudível. E ela tirou a capa e o cobriu com ela. Então Ahura pôde ver a cantora, de vestido verde, que subiu no cavalo e foi com ele para longe dali. Ele gemeu ao se aquecer com a capa e com o corpo dela, que cavalgava vorazmente.
Subitamente, sem que ele pudesse compreender, ela parou. Desceu do cavalo, vendou-o e disse ríspida:
— Não tire até eu mandar! — ele acenou com a cabeça, assustado. E ela voltou a subir e a cavalgar. Ahura teve medo. Pensou em pular do cavalo, mas ainda estava alterado pela bebida, poderia morrer, ela poderia capturá-lo de volta. Achou arriscado. Preferiu deixar o destino seguir o seu curso e permitiu que ela o levasse pra onde o estava levando. E sentiu que ela segurou sua mão para descer, depois eles andaram por um tempo e só bem depois ela tirou seu capuz e disse que ele poderia retirar a venda.
E lá ele viu mais oito mulheres. A cantora e mais oito. Todas usando verde. E descobriu onde estava. Ou melhor, com quem estava.
Estava no mesmo lugar que anos atrás seu pai fez o acordo com Kalpa, que por acaso estava ali presente. Mas quem o levara havia sido Laya, a guardiã cantora. Foi ela quem descobriu a marca em Ahura.
— Vocês vão me matar? — ele perguntou. Todas riram. Era raro alguém conseguir tal façanha, mas Ahura conseguia coisas inimagináveis.
Corou depois das gargalhadas espontâneas e involuntárias das mulheres.
— Te peço desculpas, pelas risadas, mas... as pessoas não costumam nos perguntar isso. — disse Kalpa, com calma.
— Tudo bem... — ele falou, ainda com os olhos confusos e vestindo a pesada capa de Laya.
— Você está com frio? — perguntou Laya.
— Não. Estou bem. Obrigado. — ele respondeu, ainda sem saber por que estava lá.
— É no pescoço! — informou Laya para Kalpa, a mais velha.
— Posso ver seu pescoço? — ela pediu a Ahura, que arregalou os olhos assustado, sentindo um leve tremor, pensando que seria sacrificado vivo.
— Pode... — deu um passo para trás.
— Você precisa tirar a capa. — informou uma das guardiãs. E ele tirou.
Kalpa se aproximou, olhou do lado direito e nada viu. E foi do lado esquerdo que encontrou.
— Não acredito!! — exclamou alto, levando em seguida as duas mãos à boca e fazendo ecoar o som por todo o salão.
— Venham ver! — ela chamou as outras que se puseram em torno dele a observá-lo.
— É ele!! — uma disse.
— Até que enfim! — exclamou outra, emocionada. Elas sorriam. Abraçavam-se. E Ahura não entendia.
— Você tem uma marca muito especial, meu jovem. No tempo certo, você ficará sabendo, mas seu futuro será muito importante no reino, um dia, você será rei! Rei de Hybria! E nós seremos livres! — Kalpa informou, sorrindo. Ele sorriu também. Achando uma loucura.
— Prometo que se eu for rei, vocês serão mesmo livres. Agora, alguma de vocês pode me levar de volta pra taberna? — ele pediu. Elas se entreolharam, sorriram, balançaram a cabeça em negação e Laya o levou de volta.
— Bem que poderia ser um garoto melhor, não é mesmo? — brincou uma delas.
— Poderia ser pior. — considerou Kalpa. — Ele ainda é uma criança. Vamos torcer pra que melhore. — Kalpa riu.
— É... porque não estamos diante de algo muito promissor. — observou Tyra.
— Meninas, mas claro que é! — Não tínhamos ninguém! Nunca apareceu alguém com a marca. E agora temos dois! Ao mesmo tempo! Estamos no melhor momento que poderíamos estar. Talvez essa oportunidade nunca mais apareça. Temos que estar felizes. — dizia a mais velha.
Algumas comemoravam, enquanto outras estavam preocupadas. Aquela tinha sido a noite em que Laya e Ahura haviam se conhecido. Ahura não sabia, mas aquela noite, aquele encontro, seria responsável por mudar sua vida para sempre.
Depois daquele encontro, a vida de todos mudaria para sempre.