1- Segredos do passado e do futuro

2074 Words
Tinha sido há muito tempo que os dois reis que eram maridos governaram Hybria. Nenhuma guardiã viva tinha estado naquele período. Elas os conheciam pelos registros, porque todas sabiam ler os registros. E pelas histórias dos bardos. Porque na floresta, os bardos eram também mulheres e cantavam não só sobre o passado, mas sobre os feitos das guerreiras, das guardiãs. E elas liam o futuro na pele das pessoas. Eram oráculos vivos, que caminham sobre a floresta e sobre as árvores, protegendo o seu povo e aguardavam o próximo rei. O correto. O marcado, o escolhido. Mas houve também um outro governante além daquele que teve um marido, que proporcionou um período de paz à floresta. O que fugiu e agora governava as terras do norte, Shakya.  Ele foi o segundo rei que proibiu que se caçassem as guardiãs e qualquer pessoa da floresta. Rudra era o seu nome e o seu reinado durou quinze anos. E então ele foi traído. Seu irmão, Nihil, há muito queria destroná-lo. E, numa manhã sangrenta e inesquecível, matou sua esposa e filha, a rainha Vaya e a princesa Zohe, e depôs o rei, que só conseguiu fugir porque um garotinho do castelo, que conhecia todas as passagens secretas, ajudou o rei Rudra e o filho Ahura a escaparem. E eles encontraram alguns soldados e outras pessoas que os ajudaram e fugiram com eles. Uma comitiva de cerca de sessenta pessoas. Todos leais a Rudra, que ainda estava vivo, e que precisou fugir às pressas para a floresta. Lá, o rei foi interceptado pelos soldados, homens e mulheres, que os levaram até duas das guardiãs. As que estavam no salão no memento de sua chegada. Elas nunca ficavam todas no mesmo lugar, por segurança. Não podiam saber a residência de todas as companheiras e nunca ficavam juntas no mesmo ambiente. Cada uma sabia onde duas ou três moravam, aproximadamente. Algumas moravam juntas. Mas nenhuma delas sabia a residência de todas as outras, pois caso fossem capturadas, nem sob tortura, revelariam o paradeiro das demais, pois não há como revelar o que não se sabe. Porque se tinha algo que Nihil queria mais do que tornar as guardiãs prostitutas, era exterminá-las. Ele sabia bem por que. Os mesmos registros que elas tinham em cascos de árvores e em folhas revestidas de âmbar na floresta, eles tinham em livros em Hybria. Ele sabia que elas podiam ler as marcas. Ele sabia muita coisa. Assim como muitos outros reis.  Como já tinham quase sido eliminadas para sempre uma vez, tinham regras rígidas de segurança. E naquele dia havia duas guardiãs apenas no salão público, que não ficava dentro da terra: Kalpa, a mais velha, e Vena. O rei Rudra, junto com o seu soldado e homem de confiança, foi levado até elas. Ele nunca tinha visto uma guardiã e mesmo com o nervosismo da fuga, estava emocionado. Não tanto quanto Ahim, que sentia seu coração bater acelerado, dentro de seu peito enorme e bruto. — Pode se sentar, Majestade. — apontou Kalpa, para um banco feito de troco de árvore, mas com um trabalho de entalhamento manual sofisticado, detalhado. — O senhor também. — disse Vena, para o outro homem, que olhava para aquela mulher de pele escura fascinado, quase sem conseguir se mover. Os dois sentaram em silêncio, enquanto as duas se encontravam ainda em pé, sobre uma espécie de palco à frente. Desceram, foram até eles e se sentaram em bancos iguais, que estavam dispostos em círculos. — Vocês estão fugindo. — afirmou Kalpa. — Sim... — disse o rei, surpreso por ela já saber. — Pretendemos ir para o norte. Só peço nos deixem atravessar a floresta. — ele pediu, olhando nos olhos dela, e ela sabia que ele dizia a verdade. — Posso ver os seus braços, Majestade? — pediu Kalpa. O homem estranhou, mas conhecendo a fama de leitora de marcas que elas tinham, ele tirou a pesada vestimenta ornamentada que cobria os braços e os estendeu. — Sinta-se à vontade.  Ela então segurou suas mãos, virou seus braços para um lado, para o outro e se deteve em uma pinta. O rei não tinha muitas marcas. Mostrou-a para Vena, que assentiu com a cabeça. — Majestade, o senhor passou quinze anos nos deixando em paz. Não pense que vou agradecer. Porque ninguém deve caçar pessoas. Mas eu não esquecerei esse período. Principalmente porque eu sei o que está por vir. Então, eu os deixarei passar. Meu povo o guiará até a melhor ponte para o norte e indicará o melhor caminho. Mas eu quero algo em troca. — O que quiser! Mas saiba que eu não tenho muito a oferecer. — Eu quero sua ajuda contra Hybria, quando eu precisar. — ela indicou sua contrapartida. — Você tem a minha palavra. — o rei estendeu a mão. — Nosso encontro ficará nos registros da floresta, Majestade. Espero que o senhor honre a sua palavra. — ela o olhava séria, altiva, sentada com a postura ereta, toda vestida de verde, pois todas elas só vestiam verde, como as folhas das árvores. — Honrarei, minha senhora... — Kalpa. — Senhora Kalpa. Muito obrigado! — O senhor sabe que o procurarão por aqui, não é? Então deve ir já. Meus soldados os levarão. — ela se levantou, deu a mão ao rei e ao seu soldado, que tremia mais de emoção ao estar em frente a elas do que pela fuga, e os dois saíram. Os soldados já sabiam o que fazer. Tudo já estava decidido. Os habitantes da floresta já tinham visto as movimentações em Hybria e já sabiam o que tinha acontecido. Observavam-nos dia e noite, para evitar serem capturados e mesmo assim, às vezes, eram pegos, porque o exército de Hybria era bem equipado, seus homens tinham armaduras e cotas de malha, elmos e viseiras, além de escudos. Ao longo do tempo, o reino de Hybria aprendeu a produzir instrumentos de metal e havia por lá muitos ferreiros. Já na floresta, a vestimenta que mais protegia era a pele, o couro, facilmente penetráveis pelas armas do reino. O armamento dos protetores e habitantes da floresta eram mais rudimentares: machado, lança, arco e flecha. Eles contavam mais com a habilidade de se escamotear entre as árvores e surpreender o inimigo do que com  poderio bélico.  Por isso, mesmo durante aqueles quinze anos de tranquilidade, não houve um só dia em que baixaram a guarda. Sabiam que palácios eram antros de traição e perversidade. Reinados são movidos por ganância e por causa dela são sempre instáveis, incertos, efêmeros. Reis sempre podem cair. Assim como um acabava de cair. Traições não eram comuns na floresta, porque eles não tinham dinheiro e joias, mas a cobiça fez com que um homem vendesse o esconderijo das guardiãs a um palaciano, certa vez. E todas foram capturadas. Todas. Foram levadas para o rei que se divertia com uma delas a cada dia. Isso durou dois anos, até que uma delas o matou. Mas só duas conseguiram fugir e só uma retornou à floresta. Desde então a segurança das guardiãs é primordial. Porque elas quase desapareceram e com elas uma parte da sabedoria feminina. É assim que se matam as mulheres. Que se anula o seu poder. E elas não estavam dispostas a deixar isso acontecer novamente. Acompanhada pelos soldados da floresta, a comitiva do rei partiu rumo ao norte. Levando seus cavalos com baús carregados com os tecidos, joias e pertences que conseguiram pegar às pressas. Principalmente roupas e peles. Sabiam que precisariam ir para o norte, então encheram as carroças que os cavalos puxavam com os mantos mais pesados e a roupas que puderam levar. Seria uma viagem longa, dependendo de onde eles se instalariam. Se quisessem se instalar em uma antiga aldeia desabitada, que era onde os soldados os levariam, a viagem duraria algo entre um dia e meio a dois dias. As guardiãs indicaram aquela aldeia porque já havia casas montadas, precárias e velhas, mas ninguém ficaria ao relento nas gélidas terras do norte nas primeiras noites. Toda aquela região era fria. Mas no verão, o sul, que era mais baixo, entregava um clima mais ameno e agradável. Já o norte, alto, era frio quase sempre. Hostil, difícil. Por isso, o rei resolveu ficar naquele antigo vilarejo. E lá ele erigiu o reino de Shakya. Não queria que fosse um reino. Não queria ser rei daquelas pessoas, pois eles o tinham salvo. Eram seus amigos e companheiros, mas eles não conheciam outra forma de viver em sociedade e não sabiam viver como os povos da floresta, então, a pedido do próprio povo, o rei Rudra, antigo rei de Hybria, tornou-se o rei de Shakya.  E a floresta ficou entre dois reinos. Nem todos seguiram viagem com ele. Alguns tinham pavor do frio do norte e imploraram ao povo da floresta para que pudessem ficar lá. E um pequeno grupo de dez pessoas permaneceu. Mas eles não conseguiram viver nas árvores ou em casas escondidas em buracos no chão, como o povo da floresta vivia. Eles criaram uma pequena vila e, quatorze anos depois, eles não eram mais dez, mas quase quarenta, e o povo da floresta os chamava de autelanos.  E na vila dos autelanos havia casas onde se podia trocar objetos e alimentos como pães e vinho. Até a chegada deles os moradores daquele lugares não comiam pão, pois não se plantava trigo na floresta. Foi depois do estabelecimento do reino de Shakya e das relações entre eles que se passou a ter pão ali. Pois mesmo na terra fria do norte, dava para plantar trigo. Assim, no pequeno vilarejo da floresta, protegido pelas guardiãs e seu povo, havia também uma espécie de taberna, onde se bebia por escambo e onde as pessoas se encontravam, cantavam e dançavam. Aceitava-se caça, frutas, tecido, qualquer tipo de alimento e até armas em troca de bebida e dos caldos preparados pela dona da casa, Becca, e por seu marido, Uzyr. Prostituição não era aceito. E quem quisesse se prostituir era livre, mas que fosse para Hybria para fazê-lo. E era lá, na floresta, que o príncipe Ahura de Shakya gostava de passar o seu tempo, com seu amigo Idrya. Porque lá era mais animado e quente. Havia cachoeiras e ele podia ver sua amiga, Laya. Podia cantar e dançar, mesmo que fossem dois dias a cavalo para voltar para casa. E como a taberna era também uma pequena estalagem, era comum o príncipe dormir por lá, mesmo contra a vontade de seu pai Rudra, que sabia que era muito mais fácil que ele fosse capturado por seu tio, o rei usurpador, ali do que em Shakya, que era mais distante, mais no alto, mais frio. E agora já tinha fortificações. Rudra temia pelo filho, mas era difícil controlar Ahura. O jeito foi tentar fazer com que ele tentasse aprender se defender. Pediu para que Tyr, o chefe de seus soldados e seu homem de confiança, o treinasse para ser um grande guerreiro desde pequeno. Aos oito anos, quando chegaram ao norte, eles precisaram erguer a cidade e arrumar as coisas. Levou mais de um ano inteiro, mesmo com as bases prontas e algumas edificações ainda eram erigidas. Mas no ano seguinte, quando Ahura estava já com nove anos, Tyr começou a treiná-lo, mas aos treze o garoto foi ficando difícil e o soldado perdeu paciência.  Ahura tinha habilidade, mas não tinha foco nem disciplina, fazia gracejos e dançava durante o treino. Distraía-se com quem passava e Tyr achou mais proveitoso treinar algum jovem mais interessado. O rei concordou. Brigou com o filho e escalou Idrya para ajudá-lo. Eles se tornaram amigos e mais fingiam lutar que lutavam de fato. Mas Idrya já era um guerreiro treinado aos quinze anos e se Ahura não se importava, não seria ele quem imporia isso ao amigo. Então, eles passavam a maior parte do tempo se divertindo e passeando a cavalo. Indo e voltando da floresta.  Conheciam todos os caminhos, atalhos, pontes, esconderijos e cachoeiras da floresta. Ahura amava a floresta. Assim como amava Laya. Sua amiga guardiã. Não era comum guardiãs serem próximas de autelanos, muito menos de alguém de Shakya. Eles tinham um acordo, não eram necessariamente amigos. Os dois povos eram, mas as guardiãs, não. Elas eram cautelosas. Mas a relação de Laya e Ahura tinha algo singular,  algo especial, assim como o modo e momento em que eles se conheceram.
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