Depois de praticamente salvar a vida de Ahura na floresta, Laya se tornou sua amiga. E como ele era o portador da marca, nenhuma das outras guardiãs se importava que ela vivesse para cima e para baixo com ele, já que tinham praticamente a mesma idade e uma afinidade evidente. Quando recebeu a notícia, Ahura não deu importância. Foi levado de volta à estalagem ainda meio zonzo, ainda meio assustado, e dormiu pesado. Não contou ao pai sobre o encontro com as guardiãs, porque teria que contar que se perdeu na floresta e temeu que ele não o deixasse mais sair de Shakya.
Além disso, Ahura não acreditou muito na história de que seria rei de Hybria. Sabia que herdaria o trono de Shakya, o que não era grande coisa, e mesmo aquele trono ele não queria.
Aos dezesseis anos, ele era imaturo. Por isso, as guardiãs não entraram em detalhes sobre o seu destino. Mas Laya vivia lendo suas marcas, principalmente quando eles estavam na cachoeira e ficavam quase sem roupa. Ele não se importava. Até gostava de ter os olhos dela sobre seu corpo.
Ahura não fazia ideia do que estava por vir.
Além disso, muitos costumes de Shakya eram os mesmo de Hybria e a maioridade deles se dava aos dezoito anos. Antes disso, ninguém podia se casar. Essa tinha sido uma regra estabelecida nos tempos do rei Arimæ e que felizmente havia perdurado. Sua existência impedia que homens se casassem com as meninas ainda crianças, como acontecia antes dele, quando muitos reis se casavam com garotas de doze ou treze anos. Não só reis, mas homens do povo. Então, a nova lei protegia as meninas. E por isso, as guardiãs decidiram esperar para contar os detalhes a Ahura depois de sua maioridade, mas ele já estava com vinte anos e ainda não havia sido informado, nem o seu pai, sobre as particularidades de sua marca.
As guardiãs ainda tinham alguns entraves. Nihil, o irmão do rei Rudra e tio de Ahura, ainda estava vivo e ainda era rei de Hybria, e não era com ele que o garoto se casaria. Desse modo, Nihil precisava morrer.
E enquanto isso não acontecia, a vida seguia normalmente. Com Ahura e Laya sendo amigos. Ela era um pouco mais velha, tinha vinte e dois, ele vinte. Ela era também um pouco maior e mais forte. E Ahura não fazia ideia, em quatro anos de amizade, de onde a amiga morava. Laya era misteriosa, assim como as companheiras, embora um pouco mais falante e sorridente que as demais. O que fazia dela a guardiã mais conhecida era o mesmo que fazia dela amiga de Ahura. A mesma razão pela qual ele vivia na floresta. Os dois eram afeitos ao canto e à dança. Isso os aproximou desde o primeiro dia em que se viram na taberna, quando Ahura se apaixonou pela voz de Laya.
Ele também gostava de cantar. Não cantava como ela, mas era conhecido no palácio pela voz melodiosa e todos sabiam quando ele acordava de mau humor, porque eram nesses dias que ele andava pelo palácio cantando as músicas que aprendia com os bardos da floresta e as que tinha aprendido com a mãe, em Hybria. Ninguém sabia dizer o porquê, mas Ahura só cantava quando estava triste, quando estava feliz cantarolava apenas quando tomava banho, sozinho, em seus aposentos. Ahura parecia um jovem feliz, mas era estranhamente sombrio. Passava horas em silêncio, observando as árvores e os animais e ninguém sabia o quanto ele pensava na mãe e na irmã. Ninguém sabia o quanto ele desejava ver o mar novamente. Porque muito ao sul de Hybria, bem ao sul do castelo, havia o mar e era lá que ele lembrava de cantar com a mãe e a irmã quando era pequeno, sentado na areia fina, olhando a água azul da cor do sol, tomando um sol que quase esquentava o corpo. Ele fechava os olhos quando tomava banho e ainda podia ouvir a mãe cantar uma canção sobre duendes e fadas escondidos na floresta. Ele fechava os olhos se imaginava perto do mar, perto da mãe.
E foi o amor pela música que o aproximou de Laya. Pela música e pela dança. E foi também a marca. Aquela marca que ele nem lembrava mais que tinha, pois depois daquele dia no salão escondido no meio da floresta, ninguém mais tocou no assunto.
Laya o ensinara a usar arco e flecha e ele tinha uma habilidade natural para manusear a arma. Tinha até mesmo a sua própria, que ganhou da amiga, feita pelos habitantes da floresta especialmente para ele, a pedido dela. Mas era irritante ensiná-lo e praticar com ele. Assim como ele tinha irritado Idrya, ele irritou Laya. Que praticava todos os dias em um descampado na floresta, porque fazia vigília no alto das árvores todos os dias durante quatro horas. Depois praticava e só então podia descansar. As guardiãs revezavam no trabalho de vigiar a entrada da floresta. E o que chamavam de entrada era a parte em que ficava mais próxima de Hybria. Pois seria impossível vigiar a floresta toda.
Mas os moradores viviam espalhados, não muito distantes entre si, mas não residiam próximos à entrada da mata, pois seriam facilmente pegos, caso fosse atacados. E para fazer a vigília, as guardiãs caminhavam longos espaços. As que moravam distante da borda da floresta, pois algumas preferiam morar por ali, já que há muitos anos não eram capturadas. Mas as coisas haviam mudado e todos estavam em alerta.
As guardiãs não tinham descanso. Todas elas eram arqueiras. Eram uma espécie de soldados de elite da floresta. Ficavam escondidas, eram ágeis, camuflavam-se entre as folhas e por isso só se vestiam de verde. E, naquela época, infelizmente, eram poucas, apenas treze. Kalpa já não tinha idade para subir nas árvores e há muito não nascia uma menina com a marca de guardiã. E mesmo se nascesse, as meninas só eram treinadas a partir dos quatorze anos e só deixavam a família aos dezesseis, se quisessem. Mas todas queriam, pois era uma honra ser uma guardiã da floresta.
E Laya tentava treinar com Ahura quando ele estava por lá.
— Vai, Ahura, mira. Para de dançar! Mas que porcaria! Se concentra, garoto! — ela se irritava,
— Vai! — ela dizia. Ele geralmente acertava o alvo. Mesmo dançando antes.
— Sua pontaria é ótima... mas você é lento! Veja só! — ela falava e soltava uma flecha atrás da outra.
— Exibida. — ele sorria.
Gostava de passar tempo com ela. Mas quando estavam juntos, Idrya não podia estar, porque Ahura era o único habitante de fora da floresta que tinha contato com uma guardiã. Idrya não se importava. Não gostava muito das guardiãs, tinha um pouco de medo delas. Acreditava nas bobagens que o povo de Shakya contava, que elas podiam ler pensamentos, ou que se tocasse nelas talvez não conseguisse mais ter uma ereção. Idrya se apavorava com a ideia. Preferia, por isso, manter distância.
Mas essa era uma invenção das próprias guardiãs para, quem sabe, elas não serem mais sequestradas pelos homens dos reis, o que além de surtir pouco efeito prático, criava um certo medo nos homens da floresta e apenas alguns corajosos se relacionavam com elas. Elas tampouco se importavam. Tinham preocupações maiores. E Ahura sabia que aquilo não passava de uma lenda, pois vivia tocando na amiga e tinha ereções normalmente. Mas Idrya preferia não arriscar e se mantinha longe delas.
Quando as via, pois as guardiãs não eram fáceis de serem vistas, com exceção de algumas, como Laya, que gostava de cantar na taberna, mantinha-se distante. Idrya gostava mesmo de beber e de ir para a cama com belas garotas. E como era grande, alto, forte e bonito, não tinha dificuldade em conseguir isso.
Mas corria o boato de que ele e o príncipe poderiam não ser só amigos. Que era estranha aquela proximidade dos dois. Alguns juravam já ter visto Idrya carregar Ahura no colo até o cavalo, outros diziam que eles dormiam juntos na estalagem. Os dois não faziam ideia dos boatos e a amizade deles era uma amizade como outra qualquer. Talvez houvesse mais proximidade que na maioria. Nada além disso.
Tanto na floresta, quanto em Shakya a relação entre dois homens não era vista com tanto estranhamento. Havia homens que viviam juntos e alguns frequentavam a taberna de Becca. Havia mulheres que preferiam se deitar com mulheres também. Mas na floresta era mais comum que em Shakya, pois no reino havia ainda o resquício do antigo pensamento de Hybria, que vigorou depois da grande guerra, a que matou os reis casados, havia muito tempo.
Como a existência de dois reis ameaçava a linhagem real e a própria coroa, uma vez que dois homens não poderiam ter filhos de sangue, o rei seguinte proibiu que homens pudessem se casar. Homens podiam ter relações sexuais livremente e existiam, inclusive, casas de prostituição masculinas em Hybria. Mas homem algum poderia contrair matrimônio, fosse da realeza ou do povo. Nenhum poderia. Para que fosse evitado de forma definitiva que houvesse mais uma vez a existência de dois reis e o risco de a monarquia se perder.
Os nobres não queriam perder suas regalias e temeram a mudança nas regras de sucessão e por isso, antes que os reis Arimæ e Luth, que tinham um amor sincero e verdadeiro um pelo outro, assim como pelo povo, redigissem novos documentos definindo as regras de sucessão, um golpe foi instaurado, uma traição foi perpetrada de dentro dos muros do palácio e os dois reis foram mortos. Foram decapitados e suas cabeças ficaram uma semana expostas em estacas sobre o muro do castelo para que todos os que passassem pudessem ver. Para que todos soubessem o que aconteceriam com quem reclamasse, com quem se rebelasse.
E o povo chorou em silêncio a morte do dos reis, que foram tão bons, que não cobravam impostos abusivos, que não abusavam das mulheres, que não torturavam os aldeões ou os prendiam nas masmorras por denúncias infundadas de traição. Os reis instauraram leis que pretendiam proteger e promover julgamentos realmente justos. Tudo isso acabou em um dia. E Hybria voltava a ser um reino como outro qualquer. Opressor, injusto. Mas seu povo não aceitava passivamente as imposições e rebeliões contra a coroa eram comuns.
Depois que os reis foram mortos, a paz se tornou apenas uma lembrança.
Os bardos cantaram a morte dos reis. E os anos passaram, as pessoas morreram, mas canções não morrem quando vivas na memória. E os reis se tornaram lenda, tornaram-se a esperança do povo. E as guardiãs, que tinham voltado a ser perseguidas e, a depender do rei chegaram a ser praticamente dizimadas, ajudaram a espalhar no imaginário popular, que carecia de fé, que um dia nasceria alguém marcado. Que um dia Hybria voltaria a ser uma só, voltaria a ter dois reis. E o povo poderia ser feliz de novo.
E a floresta seria livre.
Porque como era, os moradores de Hybria não podiam ir à floresta sob o risco de se condenado à forca. Uma lei proibia o cidadão comum de ir à floresta. Apenas os soldados iam. Principalmente com o intuito de sequestrar mulheres. Muitos não voltavam. Mas muitas vezes, o senhor da face sombria corrompia o destino, o deus a quem eles serviam, ou a quem eles acreditavam servir, e mulheres eram pegas. Isso durou anos, séculos. Com exceção dos reis casados e do rei Rudra, deposto há quatorze anos.
E nesses quatorze anos, oito mulheres foram capturadas. Nenhuma guardiã. Mas o medo era constante, diário. E achar a marca era motivo de festa.
Fazia quatro anos que Laya encontrou Ahura quase morto na floresta e descobriu sua marca, no dia que seguinte ao evento, houve talvez o segundo maior acontecimento em tempos. Todas as guardiãs se encontraram. Todas! Ao mesmo tempo, no mesmo lugar. À noite, num esconderijo subterrâneo com oito saídas. Todas festejaram e se abraçaram e cantaram e dançaram e beberam em homenagem às suas antepassadas mortas. Duas ficaram de guarda. As outras tomaram uma mistura de plantas e raízes que só elas conheciam e que as permitia viajar para o mundo azul. E lá elas agradeceram pessoalmente, com seus corpos luminosos, as salamandras e os silfos da floresta e adentraram o azul da noite, o éter. Lá, e só lá, elas vestiam azul. Porque lá tudo tinha tons diferentes de azul. Até o ar era azul e era visível, palpável.. E encontraram as Antigas. E tiveram certeza. Foi confirmado. Ele tinha voltado. Ele tinha a marca. Era ele.
Era Ahura!