4- Os planos de sucessão

1567 Words
Há quatorze anos, depois de matar a rainha e a princesa e expulsar o rei, Nihil vinha tentando incansavelmente atravessar a floresta para matar o irmão e impedir que ele e sua família voltassem a governar Hybria. Mas todas as suas tentativas eram frustradas pelo povo e pelas guardiãs das florestas, que os impediam de entrar, ou de chegar até as pontes.  Nihil tinha um pequeno exército, mas os melhores homens tinham ido embora com Rudra, assim como seu melhor estrategista, Tyr. Não que Tyr fosse brilhante na arte da guerra. Ele era melhor em liderar e treinar pessoas do que na estratégia em si, mas era o melhor que havia em Hybria. Isso porque o reini nunca tinha sido atacada, então não se precisava de estratégia de guerra. Hybria não invadia territórios. Não sob o comando de Rudra. E antes dele, o único território que invadiam era a floresta, porque nada havia ao norte e ao sul só tinha o mar. Todos os outros território eram tão distantes que Hybria estava protegida. A única vez que houve visitante foi quando uma nau vinda de uma terra longínqua apontou em Hybria. Nela havia uma pequena tripulação e uma família real. Foram bem recebidos, porque o rei era Arimæ naqueles tempos e fazia parte dessa distinta família real o príncipe Luth, por quem ele se apaixonou e se casou alguns anos depois, com o consentimento da família dele, que nunca mais quis voltar para as terras conflituosas de onde vieram. Havia nos livros de Hybria narrativas sobre a as terras de além-mar, as terras do rei Luth, mas quase ninguém se interessava em ler. E tanto o rei Luth quanto sua terra viraram história, passado distante, lembrança de um tempo bom, de quando o povo era feliz. Não chegaram a completar dez anos de casados os dois reis enamorados e dizem os bardos que eles morreram no mesmo dia e em nenhum dia sequer, desde que se conheceram, os dois brigaram. Em nenhum dia, viveram um sem o outro. Amor à primeira vista era o que ainda diziam os versos das canções, daqueles que o destino move os mares para fazer os corações se encontrarem. Mas o homem e sua espada, o homem e sua cobiça... o homem aliado ao senhor da face obscura, consegue retardar e atrapalhar o destino dos bons. Foi assim e sempre será. E o casal foi enviado ao mundo azul, para fazer a passagem de volta. Isso era o acreditava o povo de Hybria.  Havia crenças diversas no reino, mas no geral, se cria secretamente no poder dos seres míticos da floresta e se fazia oferendas ocultas a eles nas pedras e no mar. Porque era proibido venerá-los sob o reinado de Nihil. A crença oficial de Hybria era num deus único chamado apenas de Senhor. E havia sacerdotes do Senhor e catedrais espalhados por todo lado, mas ninguém era muito rígido com relação a isso, nem mesmo o rei Nihil. Ainda que os sacerdotes realizassem casamentos oficiais, as crenças em entidades múltiplas não estavam apagadas das mentes e dos corações do povo.  O rei sabia disso, sua ressalva era mesmo contra a floresta. Odiava as guardiãs e sua capacidade oracular. Não fossem elas, acabaria ele mesmo com os sacerdotes, pois nem ele gostava daqueles velhos empolados andando pelo castelo e ditando regras. Vivia querendo enforcá-los e por isso dava-lhes poucos poderes, talvez essa fosse a maior qualidade de Nihil. Tinha sido o rei a dar menos poder e privilégios aos sacerdotes do Senhor e via diminuir a cada dia entre o povo os seus seguidores. Para se contrapor aos poder dos espíritos e dos seres da floresta, diferentemente de Rudra, que acreditava em coisa alguma, mas deixava o povo livre para reverenciar quem quisesse, proibindo apenas os sacrifícios, Nihil cultuava em segredo o Senhor da face sombria, uma espécie de antítese do Senhor dos sacerdotes, um demônio, como chamavam. Participava de rituais nas pedras circulares, em que sangue  era ofertado em troca da morte de pessoas e da perda de seus poderes e assim ele ia tentando minar o poder do povo da florestas antes de cada tentativa de ataque. Em quatorze anos, nunca havia capturado uma guardiã, era a sua maior frustração, havia capturado mulheres da floresta. Algumas matou, outras tornou prostitutas, mas nenhuma era guardiã. E esse era o seu desejo, capturar e matar uma a uma para que a profecia não fosse cumprida. Porque ele jamais aceitaria que houvesse dois reis. Nem com a sua morte. E se ele conseguisse matar todas as guardiãs, o povo esqueceria aquilo de vez e Hybria seria para sempre dele e de seus descendentes. Ninguém sabia se haveria mesmo dois reis, quem seriam eles e se havia mesmo as tais marcas. Mas Nihil não podia arriscar. Precisava dar um jeito de mudar as regras de sucessão sem causar um caos social, porque o povo de Hybria tendia ao caos, não aceitava as coisas com facilidade. Não podia deixar seu destino nas mãos de crendices tolas. Precisava garantir seu reinado e deixar Hybria para os seus descendentes. Seu filho mais velho, Dhyani, era bastardo e sua mãe já era morta. Era um bom filho e um excelente soldado, muito melhor do que Soma, filho da atual rainha, Kaya. Mas Soma era dono de uma insaciável ambição, esperto e inquestionavelmente mais apto a ser rei. Seria implacável como o pai e por isso Nihil precisava colocá-lo na frente da linha sucessória. Pelas regras de Hybria pouco importava se o filho fosse ou não legítimo, o mais velho sempre estaria na frente. A não ser que abdicasse do trono, ou que algo inusual acontecesse. Dhyani não tinha interesse em ser rei e não se importaria em ceder seu lugar a Soma, mas Nihil sentia que precisava formalizar a situação.  Alheio a tudo isso, Dhyani gostava mesmo de ser soldado, ainda que não houvesse guerra em Hybria. Mas como agora havia o reino de Shakya, precisava haver exército de proteção, treinamento, estratégia. Era para isso que Dhyani servia. Ele era um príncipe guerreiro. Sombrio, quieto e extremamente enigmático. E, diziam, ótimo estrategista. Mas a verdade é que o melhor estrategista de toda a região não era nem Dhyani nem Tyr. Não estava nem Hybria nem em Shakya. Residia na floresta e era uma mulher. Uma guardiã chamada Kalish. Se havia um motivo pelo qual Nihil não havia capturado guardiã alguma, esse motivo era a habilidade de Kalish em conseguir treinar as garotas e ensiná-las a se esconder na floresta, bem como as táticas de ataque do alto das árvores. Kalish era a melhor treinadora que já se tinha tido notícia. Não havia treinado as mais velhas, mas mesmo elas aprenderam coisas novas com Kalish, que tinha uma habilidade natural para se esconder na selva.  Embolava-se entre o verde como se ela e a mata fossem uma. Assim como bolava planos de fuga e de entrada e saída de esconderijos. Além de construir, sozinha, esconderijos e armadilhas no tempo vago.  Kalish era uma guerreira solitária. Ninguém sabia onde ela morava e ninguém sabia se ela já havia tido companheiro. Um total e completo mistério. Algumas guardiãs chegavam até a duvidar de que ela fosse real, pois ela m*l tocava as pessoas. Mas era de riso fácil e tinha a voz suave como o balançar dos seus cabelos claros pelo vento. Nunca era vista à noite e Tiana, a mais nova, tinha uma completa adoração por ela. Um fascínio que fazia com que seus olhos brilhassem mais que as estrelas. Mas Kalish era firme e nem mesmo nos dias de comemoração, como quando encontraram a marca em Ahura, ela se permitiu entrar no mundo azul. Foi uma das que ficou de guarda, junto com Kalpa. E se Kalish estava de guarda, elas estavam seguras, porque ela podia não ser tão forte e grande quanto Valkyr mas sem dúvida era a mais ágil, a mais rápida e a mais esperta. Nada escapava a ela. Era como uma raposa e aquela foi a única noite em que foi vista por pessoas que não fossem do seu círculo restrito de contato, pois era uma noite especial. Mas Soma era um bom estrategista também e tinha motivações muito diferentes das de Kalish. E eram essas motivações que faziam com que seu pai preferisse que ele o sucedesse em vez de Dhyani. Porque Dhyani entendia de táticas bélicas e de proteção. A capacidade estratégica de Soma ia muito além disso. Estranha é a cobiça que o poder insufla nas pessoas. Porque Soma só seria rei após a morte do pai, Nihil nem sequer veria o filho no trono. — Não importa! — disse em certa feita ao ser questionado por um conselheiro. — Quero que minha linhagem sobreviva mil anos. Dois mil anos. — ele falava com olhos em chamas. Quem o visse facilmente saberia que ali brilhava a ganância e a sede por poder. E assim ele prepara o mundo para depois de sua morte. E se pudesse levaria o reino consigo no pós-morte, para o além-túmulo. Como não podia, deixaria para Soma, o filho que considerava mais bem preparado. Que considerava uma extensão sua. Porque uma vida era pouco para usufruir daquilo que tirava do suor do povo. Precisava viver sabendo que sua linhagem perduraria por tempos incontáveis, eternizando o seu legado naquelas terras, fazendo com que tudo fosse para sempre seu.
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