Murilo caminha com Anne pelo palácio observando as esculturas de mármore espalhadas pelo lugar. Algumas até chamam mais atenção, como Netuno e Galateia, mas nem mesmo elas atraíram tanto sua admiração quanto a do cavaleiro com a espada entre as mãos e sua armadura que fica aos pés da escadaria principal.
Onde tem a escultura de com uma espada entre as mãos e sua armadura
—Francis Stewart-Wilkinson.
Murilo se vira junto com Anne que rapidamente se inclina em direção a William que descia as escadas em direção a sala principal para a cerimônia.
—O primeiro Duque de Wilkinson – continua o duque para Murilo que está com os olhos arregalados admirando a estátua. — Foi com ele que tudo começou.
— Ele era um rei? – pergunta Murilo, curioso.
— Anne, por gentileza, verifique se está tudo pronto para a cerimônia. – ordena o duque que termina de descer as escadas.
— Sim, Your Grace – responde Anne se retirando rapidamente.
—Não, mas ele foi o grande amigo de um – responde William recordando da história que contou para seus filhos quando ainda eram crianças. Ele para ao lado do menino e continua — Francis era um jovem camponês filho de um inglês com uma estrangeira. Apesar de seus pais o terem instruído a seguir tomando conta das terras, ele queria mais do que apenas aquele pedaço de chão tinha a oferecer. Então partiu de Cambridge em busca oportunidade que acreditava que só teria em Londres. Porém, ele escolheu um péssimo momento para isso e acabou no meio de uma das mais violentas:
A Revolta camponesa. A revolta foi desencadeada em parte devido à introdução de polltax[1] de um xelim por adulto, introduzido em 1377, como forma de financiar as campanhas militares no continente. Esse imposto foi a última gota para os camponeses, que tinham sua remuneração fixa depois de muitos anos e eram proibidos de procurar trabalho noutros sítios, conforme a antiga lei senhorial de s******o. A peste n***a tinha reduzido a força de trabalho e, num mercado livre, a remuneração do trabalho teria aumentado. Então imagine a revolta de todos os camponeses e o pobre Francis no meio de tudo isso. Muitos iriam se apavorar – narra Edward sobre o olhar atento de Murilo — Mas Francis não se apavorou e muito menos regressou para casa. Ele foi justamente para o foco da revolução.
— E foi onde ele conheceu o rei?
—Sim, Francis chegou a Greenwich, nas margens do Rio Tamisa, o cavalo do então rei Richard II foi para cima dele, o atingindo em cheio. O rei compadecido do que fizera, decidiu ajudar o camponês que o alertou sobre a multidão enfurecida que o aguardava.
Em gratidão, o rei levou o jovem com ele de volta para a Torre, onde eles passaram a noite. E é aí que entra a importância do nosso antepassado para a história. Nessa noite, os dois jovens de 14 anos conversaram bastante a respeito da Revolta e Francis sugeriu ao Rei que ao invés de lutar contra os rebeldes, que ele fosse clemente e desse permissão aos rebeldes dispersarem e regressarem para suas casas. E ainda sugeriu que o rei aceitasse as exigências dos rebeldes que só queriam poder trabalhar dignamente em suas terras. Na manhã seguinte, Francis foi junto com o rei para Mile End, onde negociaram com os rebeldes. A ideia do jovem Wilkinson deu tão certo que Richard II lhe concedeu o título de Duque como demonstração de amizade eterna.
—Mas ele colocou isso no papel? – questiona Murilo, sério.
—Tenho certeza que sim. Por que a pergunta?
—Lá no orfanato diziam que só podemos confiar em algo que está no papel. –responde Murilo olhando para seus próprios — Eu não tenho pais, pois não tenho papel que prove que sou filho de alguém.
—Mas você é filho do Flávio e da Beatriz. – alega William, surpreso.
—Não sou não. Apesar de eu gostar deles, não são meus pais e eu não sou o filho deles já que não há papel escrito.
—Mas você gosta deles, certo?
—Sim, mas isso não importa. O que importa é o papel. – responde Murilo sério.
— Sabe Murilo, essas pessoas que disseram isso... Estão certas. O papel é importante para definir quem você é... E os grandes feitos realizados em seu nome. Porém, ele nunca será mais importante que o sentimento e a família. Você pode não ser filho do Flávio e da Beatriz no papel, mas tenho certeza absoluta de que é filho deles de alma.
—Como pode ter tanta certeza? – questiona o menino desconfiado.
—Porque os vejo em você – responde William observando Murilo da cabeça aos pés. — O seu jeito aventureiro é o mesmo de seu pai quando desbravava cada canto de Birth. A doçura em seus olhos me lembra a ternura de sua mãe. Não há papel no mundo que possa dizer o contrário.
— Se eu sou filho do Flávio... Significa que você é... Meu avô, certo? – pergunta Murilo, cauteloso.
—Seguindo essa linha de raciocínio – William volta a observar a estátua — Sim.
— Posso te chamar de vovô? – pergunta Murilo encarando o duque.
— Só quando ninguém estiver olhando – responde William olhando para o Murilo, esboçando um leve sorriso.
— Obrigado, vovô – fala Murilo abraçando a cintura do avô.
— Your Grace, todos o aguardam – avisa Anne chamando atenção deles. Ela se esforça para não demonstrar a alegria que está sentindo ao ver eles juntos.
— Obrigado, Anne – responde William se afastando de Murilo. Ele toca no ombro de Anne e comenta — Cuide do meu neto, enquanto isso.
—Com todo prazer, Your Grace – responde Anne Scott.
****
William caminha pelo corredor em direção sala principal. Na porta, Georgiana termina de ajeitar seu broche com o brasão da família na lapela de seu casaco bege por cima do sóbrio vestido roxo escolhido para aquele dia, apesar de sentir uma enorme vontade de se enlutar. Enquanto isso Beatriz ajuda Flávio a colocar o manto e o coronel.
O duque se posiciona ao lado da esposa, a forçando a segurar em seu braço, mesmo que contrariada ao mesmo tempo em que os lacaios abrem as portas da sala, iniciando assim o rito de abdicação. Os dois começam a caminhar pelo tapete vermelho em direção ao Cardeal Hardwick que os aguarda na enorme mesa de madeira. Edward e sua esposa se posicionam atrás dos Duques de Esk que seguem atrás dos Duques de Wilkinson.
— Soube que você andou conversando com o Murilo... E que se deram muito bem. – comenta Georgiana
— Gigio... – repreende William, bufando
— Você sabe que ainda há tempo para desistir dessa loucura – comenta Georgiana ao esposo assim que param na frente do Cardeal.
— Você sabe que eu não posso legitimar o menino.
— Há uma linha tênue entre poder e querer – alega a duquesa antes de soltar do braço do marido e sentar na primeira cadeira do lado esquerdo.
— Vossa Eminência – cumprimenta o duque apertando a mão do Cardeal.
— Your Grace – retribui o Cardeal. Ele acena com a cabeça para os outros nobres que se posicionam em seus respectivos lugares. — Podemos começar?
— Sim – responde o duque antes de se virar em direção a porta.
— The Most Hon Flávio William John Francis Richard Peixoto Stewart -Wilkinson – chama o Cardeal — Marquês de Wilkinson.
Flávio entra de braços dados com Beatriz com o semblante calmo. Ele para dois passos do pai e se vira em direção a Beatriz que lhe oferece seu melhor sorriso antes de sentar na primeira cadeira do lado direito. Então, se posiciona ao lado do pai enquanto aguarda as palavras do Cardeal.
— Estamos aqui reunidos para confirmação da renúncia de títulos e poderes – informa Hardwick entregando os documentos a ambos.
Pai e filho pegam seus respectivos papéis, lendo em silêncio diante do clima tenso que domina cada canto da sala.
— Papa? – chama Flávio, surpreso ao terminar de ler.
—Aos efeitos constitucionais procedentes, assim como a escritura que leio, assino e entrego a Vossa Eminência, nosso Cardeal, este ato – lê William em voz alta sem dar atenção a Flávio — mediante ao qual o comunico minha decisão de abdicar do título de Duque de Wilkinson.
— O que está havendo aqui? – questiona Flávio encarando Hardwick.
— His Grace William Richard Louis George Stewart-Wilkinson, The Duke of Wilkinson, recém me comunicou seu desejo de renunciar ao seu título e abrir o processo sucessório. – explica o Cardeal entregando a caneta ao Duque de Wilkinson.
— Eu não posso legitimar o Murilo, Flávio – alega William assinando o documento. Ele empurra o papel em direção ao filho — Porém, o Nono Duque de Wilkinson, pode.
Flávio olha para o papel sem acreditar no que seu pai havia feito, mas ele não é o único. Todos ali ficam chocados diante da atitude de William que não demonstra qualquer arrependimento. O Marquês então assina o documento enquanto o Cardeal organiza o próximo rito: A nomeação do Nono Duque de Wilkinson.
Beatriz se aproxima, ajudando o marido a retirar o manto e o coronel, enquanto William é auxiliado por Georgiana com a espada e as demais relíquias que serão utilizadas, ao mesmo tempo em que o Cardeal de posiciona com a bíblia Sagrada.
Flávio respira fundo antes de se ajoelhar diante de seu pai, colocando suas mãos unidas entre as dele, tornando-se por este ato seu fiel servo.
— Flávio William John Francis Richard Peixoto Stewart-Wilkinson, jura servir e ser fiel ao título, ao povo e, principalmente a Deus, nosso soberano? – questiona o Cardeal.
— Juro – responde Flávio.
Ele se levanta e viram em direção ao Hardwick, selando seu juramento ao beijar a bíblia. Ato realizado por seu pai em seguida. Ajoelha-se mais uma vez, agora para a investidura de cavaleiro.
— Entrego-lhe este punhado de terra e esses ramos com folhas – começa William entregando o punhado de terra e o ramo nas mãos de Flávio — Como símbolos do feudo a qual lhe é repassado como dono, servo e protetor de agora em diante, até o fim dos tempos. Aceita?
— Aceito – responde Flávio segurando com cuidado. Beatriz se aproxima e os retira das mãos do marido que está visivelmente emocionado.
— Agora, a nomeação – avisa o Cardeal a William.
William se posiciona em frente a Flávio que permanece ajoelhado. O pai então lhe aplica um golpe de punho nu na orelha de seu filho:
— Para que se lembre para sempre de mim – fala William. — Eu, William Richard Louis George Stewart -Wilkinson – pega sua espada e com a palma da mesma dá um toque suave contra a lateral do pescoço de Flávio. — Nomeio você – em seguida coloca a espada de lado no ombro direito do filho — Flávio William John Francis Richard Peixoto Stewart -Wilkinson – levantando levemente a espada acima da cabeça do nomeado — O Nono Duque de Wilkinson – finaliza pousando a espada no ombro esquerdo.
William entrega a espada ao Cardeal, então pega o coronel de Duque, uma coroa de cruzes e de flores de lis, e coloca na cabeça de Flávio que agora nomeado levanta-se para ser abraçado brevemente pelo seu pai.
— Parabéns, son – parabeniza William colocando o rosto de seu filho entre suas mãos. — Ou melhor, Your Grace.
Flávio sorri para o pai e depois se vira chamando Beatriz que vem em sua direção, sorridente. Georgiana se posiciona ao lado do esposo sem esboçar nenhuma reação ao que acabou de presenciar.
— Eu disse que iria cumprir com a minha promessa – comenta William segurando na mão da esposa.
—Você poderia ter ao menos comunicado de sua decisão – comenta Georgiana.
— Há uma linha tênue entre poder e querer – repete William tirando um sorriso do rosto de sua esposa.
****
O resto do dia foi de comemoração, todos celebravam animados na sala de música quando William convida Flávio para acompanhá-lo até o escritório, sendo atendido prontamente. O pai do duque serve dois copos com uísque, entrega um para o seu filho ao mesmo tempo em que ergue o outro copo
— Um brinde aos novos tempos – propõe William antes de virar o líquido de uma vez só.
— Diga-me, papa – começa Flávio tomando um gole de seu copo — Você acredita que eles concederão a legitimidade ao Murilo, visto que agora eu sou o Duque e estou bem perto de conseguir seu registro, o tornando meu filho legalmente?
— Não – responde William rapidamente para a surpresa de Flávio — Filho, você precisa entender que aqueles homens são os responsáveis por manter a ordem no país. Então, dificilmente abrirão mão de seus princípios em prol de sua vontade.
— Então o senhor abdicou porque sabia que eles não irão aceitar o Murilo?
—Não. Eu abdiquei porque estou velho para bater de frente com eles. Mas você não, além de ter um forte motivo para não desistir dessa luta, você se tornando o Duque, Murilo finalmente terá o que precisa.
— Desculpe-me, não entendi... Como assim, o Murilo terá o que precisa?
—Eu e o Murilo tivemos agradável conversa mais cedo. Ele acabou me confessando que tem algo que tornaria o sonho dele de pertencer a uma família... Real. Ou melhor, de tornar você o pai dele. – responde William com um leve sorriso.
—E o que seria? O que falta para o Murilo perceber que ele é o meu filho? – questiona Flávio, curioso.
—O papel – responde William recebendo um olhar de dúvida do filho — Murilo precisa de uma certidão de nascimento para que prove que ele é o seu filho.
—Ele disse isso?- questiona Flávio.
—Sim. Porém, eu discordo – alega William servindo mais um pouco de uísque — O que falta ao Murilo é segurança. Posso dar um conselho de pai?
—Todos os que o senhor puder oferecer – responde Flávio, aliviado.
— Vocês precisam mostrar ao Murilo que o Amor vence qualquer barreira. Que um pedaço de papel não determina seu destino. – revela William indo em direção a porta.
—Como faço isso? – pergunta Flávio, curioso.
— O primeiro passo é... – começa William fechando a porta logo em seguida.
****
Um ano depois...
Beatriz está entretida ajeitando a mochila de Murilo para a escola que m*l nota a chegada do filho no quarto. Ele beija seu rosto e a abraça.
— O que foi Murilo?
— O Flávio chegou e pediu para irmos para a sala – responde Murilo.
Beatriz se levanta e caminha de mãos dadas com filho em direção a sala, onde encontram Flávio está com dois envelopes nas mãos. Ele sorri em direção aos dois e aponta para o sofá dizendo:
—Sentem-se, por favor. – ele abre um dos envelopes, tira o papel, se ajoelha na frente de Murilo e o entrega — Quero que leia em voz alta.
—Certidão de nascimento – começa Murilo recebendo um olhar surpreso de Beatriz que agora encara o marido com as mãos sobre os lábios —Murilo Gouvêa Esse, Tê... Tem um Dabliu, a, erre e um Tê. E outro nome esquisito... Ei! Sou, eu!
—Sim, é você – confirma Flávio que agora aponta para a seção do registro de nascimento, onde ficam os nomes dos pais — Agora leia aqui.
—Mãe: Beatriz Gouvêa Dabliu e I... Ele... Aquele nome lá da parte de cima e pai... Flávio... William, João... Ops... John, Francis Ricardo Peixoto Esse Tê... – continua Murilo. Bee chora emocionada, enquanto o menino lê bem devagar. — tem um Dabliu, a, erre e um Tê e aquele nome... Duilquison.
Flávio enxuga as lágrimas de seu rosto bem com Beatriz. Então o duque esfrega os cabelos do filho e pergunta:
—Sabe o que isso quer dizer?
— Quer dizer que agora eu posso chamar vocês de papai e mamãe?
— Sim – responde Bee, abraçando o filho.
—Não – n**a Flávio pegando a certidão das mãos do menino que o olho confuso. — Esse aqui é apenas um papel Murilo que oficializa que você é o nosso filho e que nós somos os seus pais. Só que...
Flávio rasga a certidão na frente de Murilo e Beatriz que o encaram, chocados com sua atitude.
— Papéis se rasgam – alega se levantando com os pedaços da certidão nas mãos. Ele se aproxima da jarra disponibilizada por Leninha e os joga lá dentro — Molham... E se perdem com o tempo. – Volta a se aproximar do filho — Mas o que nós sentimos por você, Murilo é muito maior do que esse papel é capaz de representar. Nada no mundo poderá dizer que você não é o nosso filho e nem que nós não somos os seus pais, entendeu?
—Mais ou menos – responde Murilo com sinceridade.
—Nós amamos você, campeão. – declara Flávio segurando nos ombros do filho — E nada poderá desfazer isso.
— Obrigado, Papai – fala Murilo abraçando Flávio — Obrigado por ser meu pai.
Ele se vira e abraça Beatriz que encara o marido ainda confusa.
— Agora está na hora de você ir pra escola – avisa Beatriz —Peça para a Leninha ajudá-lo a descer com a mochila, está bem?
— Sim, mamãe. – responde Murilo sorridente.
Flávio se afasta do sofá e volta a analisar a jarra que agora só está repleta com os pedaços da certidão de nascimento de Murilo
— Eu achei lindo o que disse para o nosso filho, mas... Você não rasgou a verdadeira, certo? – pergunta Beatriz, preocupada.
—Oh, Jesus, claro que não. – responde Flávio rindo. Ele entrega o outro envelope para Beatriz — Essa é a original.
— Ufa, achei que precisaria interná-lo – comenta Beatriz, sorrindo. Porém nota que Flávio está com o semblante preocupado — Aconteceu alguma coisa?
—A Câmara dos Lordes continua recusando legitimar o Murilo como meu sucessor ao título – revela Flávio.
—Nós sabíamos que eles iriam dificultar as coisas – comenta Beatriz abraçando as costas do marido.
— Sim, é verdade – confirma Flávio segurando as mãos de sua esposa contra o seu peito. —Mas quer saber? Eu não irei desistir. Nada e nem ninguém neste mundo me fará desistir do Murilo ser o décimo duque de Wilkinson. Ele é o meu filho e esse será o seu Destino.
[1] Imposto p**o por cabeça