O sol está radiante, o céu azul com poucas nuvens brancas, a grama em verde vivo assim como as enormes árvores, aquele dia parece que saiu de uma pintura. Embaixo da maior árvore, três mulheres conversam animadas, sentadas em uma mesa redonda, enquanto observam seus filhos brincando de caça ao tesouro elaborado por elas.
A menina de cabelos ruivos até a cintura de seis anos corre para debaixo da mesa fazendo as mulheres rirem, enquanto o menino de cabelos castanhos de onze anos vai em direção às grandiosas árvores do jardim da família Wilkinson.
A menina de cabelos negros soltos de sete anos fica parada no mesmo lugar, não consegue decidir onde procurar o tesouro. Falta pouco para terminar o tempo, então o menino de cabelos castanhos, segura sua mão e a leva junto em direção as árvores.
A ruiva não encontra nada, então corre em direção aos outros dois amigos que seguem suas buscas pelas árvores. Em poucos minutos, o menino encontra uma caixa embalada em papel dourado, o qual rasga mostrando ser uma caixa de bombons. Ele sorri erguendo a caixa em direção as meninas que se aproximam, a que tem seis anos está triste enquanto a de cabelos pretos sorri, comemorando com o menino:
— Parabéns, Murilo!
— Obrigado, Ashley – agradece Murilo à menina de cabelos pretos.
— Não vale – discorda a ruivinha, indignada — Você conhece esse lugar de olhos fechados.
— Você vem sempre aqui, Sofia – rebate Murilo — Mas eu concordo, foi injusto... Com a Ashley.
— Não se preocupe Murilo – responde Ashley sorrindo — Eu me diverti bastante, isso é o que importa.
— Mas o objetivo era encontrar a caixa de bombons – retruca Sofia, emburrada— coisa que só o Murilo iria encontrar.
— Mas não seja por isso – diz Murilo abrindo a caixa de bombons — Vamos repartir os bombons.
As meninas sorriem e pegam os bombons que mais gostam da caixa, deixando alguns para Murilo.
— Obrigada, Murilo – agradece Ashley. — Você é um bom amigo.
— De nada, Ashley. – responde Murilo, tímido.
— Você é um amor – elogia Sofia beijando a bochecha do menino, rapidamente.
— De nada, Sofia – responde Murilo, sem jeito. — O que importa é sermos todos amigos. Prometem que seremos amigos para sempre?
— Claro que sim – responde Sofia, rapidamente.
— Sim, nós seremos amigos para sempre – responde Ashley sorrindo para os dois amigos.
— Melhores amigos – corrige Sofia.
— Melhores amigos – confirma Ashley.
— Mas tem que ser promessa de dedinho – propõe Murilo erguendo seu dedo mindinho em direção às meninas.
Eles apertam os dedinhos entre si, selando o pacto de amizade.
— Sofia – chama Sônia, a mãe da menina de cabelos cor de fogo — Hora do lanche.
— Ashley! – chama Janet para sua filha de cabelos pretos, bem diferentes dos da mãe que são loiros.
— Murilo, a brincadeira acabou, venha! – chama Beatriz Gouvêa Wilkinson, mãe de Murilo e dona da casa, olhando para as árvores.
Não demora muito, e os três aparecem. Sofia corre na frente com seus bombons nas mãos, triunfante. Logo atrás, Murilo aparece com sua caixa de bombons quase vazia. Ashley vem logo atrás também com os seus bombons, mas acaba se desequilibrando e derrubando os seus. O menino para imediatamente e ajuda a menina com os bombons. Coloca todos em sua caixa e a entrega para Ashley que a segura. Eles caminham em direção à Beatriz, calmamente. Murilo encara Ashley, parece estar encantado com a menina dos cabelos negros.
"A história se repete"... pensa Beatriz sorrindo.
****
Ashley encara “La tricoteuse” de Adolphe Bouguereau, que mais parecia um espelho que de fato uma pintura. A menina do quadro demonstra ter a mesma idade, os cabelos no mesmo tom e tamanho, bem como a meiguice e a delicadeza. As únicas coisas que as diferenciavam eram a roupa e o momento: A menina real usava um vestido preto, bem diferente dos tons claros da pintura. Com relação ao momento, a pintura retrata um dia de primavera, enquanto na realidade era inverno em Londres e também no coração de Ashley que acabara de perder seus pais. Ela continua observando o rosto na pintura enquanto se pergunta se aquela menina também era órfã, assim como é agora. Será que ela passou pela mesma espera em um tribunal de justiça, onde estão decidindo como será a partir de agora?
— Precisamos de um copo de vidro – comenta Murilo, chamando atenção de Ashley que o encarou curiosa.
— Por que nós precisamos de um copo de vidro, Murilo? – questiona Ashley.
— Eu li em algum lugar que se colocar um copo contra a parede, ajuda a escutar o que eles estão falando. Podemos testar isso. – responde o menino. Ele se levanta da cadeira de madeira maciça e começa a andar em direção a mesa da recepcionista que ficou responsável por cuidar deles e avisa — Estamos com sede.
A recepcionista respira fundo e caminha pelo longo corredor. Em poucos minutos ela volta com dois copos d’água para as crianças. Eles bebem rapidamente até deixar os copos vazios e então esperam a recepcionista se distrair para colocar a idéia de Murilo em prática.
— Então, conseguiu escutar sobre qual é o assunto? – questiona Murilo encostando sua orelha ao máximo com o copo.
— Não – responde Ashley concentrada, buscando qualquer ruído que venha do outro lado.
Os dois ficam em silêncio “escutando” a parede e torcendo para que dê certo. Porém, antes que pudessem comprovar tal teoria, a enorme porta de madeira se abre, permitindo que as pessoas envolvidas pelo destino de Ashley saírem juntas. A senhora de cabelos com mechas grisalhas presos em um modesto coque encara a menina, séria, enquanto ajeita suas luvas pretas, dizendo:
— Ashley, vamos embora – ordena a senhora em inglês.
—Duquesa, vossa graça deve ao menos levar em conta o desejo pessoal de sua filha a respeito de nós, seus padrinhos – comenta o homem de cabelos loiros chamando a atenção da duquesa que o encara com desprezo.
—Your Grace,nós vimos que o desejo pessoal de minha filha não foi transcrito em seu testamento. – explica a duquesa com um leve sorriso.
— Bem como não consta que a guarda ficaria com a senhora, Your Grace – rebate, sério.
— Your Grace sabe que não há necessidade de tal formalidade diante dos laços sanguíneos. A menina perdeu os pais e os avôs paternos se foram antes mesmo de seu filho. Restou somente a mim e ao meu marido que está com a saúde debilitada por conta dos últimos acontecimentos.
— Peço que reconsidere, Your Grace...
— Reconsiderar? – questiona a duquesa irritada — Flávio, se alguém deveria reconsiderar aqui, é você.
— Eu? – questiona Flávio, surpreso.
— Sim, você. – afirma a senhora ajeitando seu casaco — Se você não tivesse encorajado minha filha a romperem o noivado de vocês, não estaríamos passando por nada disso. Porém – encara Beatriz que está abraçada ao Murilo observando a cena — Você escolheu e deve arcar com as consequências. Bem como, eu terei de arcar com as minhas por ter permitido que minha filha tenha se envolvido com aquele... Aquele... Plebeu! – esbraveja a mulher que deixa algumas lágrimas escorrerem pelo seu rosto. Ela limpa rapidamente, retornando a postura autoritária e continua — De qualquer forma, saiba que não cometerei esse erro novamente. Vamos, Ashley, ou perderemos o avião para Lausanne.
— Lausanne, Suíça? – questiona Flávio, surpreso — Você a está mandando para um colégio interno na Suíça?
— Sim – confirma a duquesa — Ela terá a mesma educação que todo Campbell recebeu, inclusive minha pobre filha que parece ter se esquecido ao criar essa menina tão selvagem. Porém, isso será consertado com rigor e disciplina que somente Brillantmont pode oferecer.
— Ela só tem oito anos! – exclama Beatriz, indignada. Ela tenta abraçar a menina, mas é impedida pela majestosa senhora. — Você não tem esse direito!
— Pelo visto, Your Grace tomou para si uma mulher com intelecto incomparável ao da minha filha – alfineta a duquesa encarando Flávio. Ela se vira para Beatriz — Duquesa de Wilkinson, EU posso fazer o que EU quiser com a minha neta.
—Duquesa de Argyll, pode ao menos nos conceder uma despedida? – pede Flávio, cauteloso.
— Para mostrar que sou benevolente para com sua família, com a qual ainda tenho grande respeito e admiração, permito. – concorda a senhora soltando os ombros de Ashley que corre em direção a Beatriz que a abraça, ajoelhada. A duquesa revira os olhos — Peço que sejam breves, Your Grace.
—Como quiser, Your Grace – afirma Flávio.
— Seja forte –pede Beatriz segurando na mão da Ashley — Eu sei que não irá compreender agora o motivo pelo qual não poderá ir conosco, mas não esqueça que isso é contra nossa vontade.
— Isso é muito além do que nós podemos fazer por você. – admite Flávio ajoelhado e tocando nos cabelos da menina — Eu sinto muito por não conseguir cumprir com a promessa que fiz aos seus pais... Por favor, não se esqueça de nós. Nós a amamos, Ashley e faremos de tudo para que voltemos a nos ver e ficarmos todos juntos.
—Vocês já se despediram o suficiente – alega a duquesa puxando Ashley pelo braço.
A menina olha para trás vendo seus padrinhos abraçados e chorando. Sabe que aquela será a última visão que terá dos dois, então fecha os olhos bem fortes para gravá-la em sua mente para sempre. Sua avó espera impaciente o motorista abrir a porta do carro, pois não vê à hora de encerrar de vez aquele assunto.
— Ashley – chama Murilo correndo em sua direção. Ele segura na mão da menina, o que lhe dá uma sensação de paz — Eu nunca esquecerei você, prometo.
— Promessa de dedinho? – questiona Ashley erguendo o dedo mindinho.
— Promessa de dedinho – confirma Murilo tocando o dedo dela com o seu. Eles apertam o mais firme que conseguem enquanto tentam segurar as lágrimas
— Vamos – ordena a duquesa empurrando Ashley em direção a porta do carro.
A menina se esforça ao máximo para não soltar das mãos de Murilo, até não aguentar mais e acabar vendo a porta se fechar.
— Eu não esquecerei, eu não esquecerei, eu não esquecerei... – murmura Ashley que sobe no banco do veículo, enquanto observa a imagem do menino desaparecer conforme o veículo avança pela rua.
***
Ashley Stephanie Mary Campbell Davenport, Lady de Argyll, caminha apressada pelo corredor branco. Olha para o seu relógio de pulso mais uma vez, faltam apenas dois minutos para o início da sua grande reunião com, Ludwig Hofstadter, dono da Living and Decoration (L & D), aquela que determinaria seu futuro na carreira que escolheu: Ser a mais jovem diretora de projetos daquela empresa de decoração britânica. Enquanto seus sapatos pretos batem firmes no chão, ela se lembra de tudo o que passou para chegar ali.
Após a morte de seus pais em um acidente de carro, foi criada pelos Campbell, que foram, por séculos, a família mais poderosa e nobre da Escócia e de quem herdou o título Argyll. Assim, tiveram um papel importante na história escocesa durante todo o século XVI até o XVIII. Desde então, eles passaram a decidir o que era melhor para o seu futuro.
Foi a primeira da classe no Colégio interno Brillantmont, na Suíça, na qual foi a oradora, além de destaque da turma de negócios da London School of Economics (LSE), onde se formou com apenas 21 anos. Especializou-se em Decoração, além de ter referência por conta do estágio que realizou na Candy & Candy, da qual recebeu a proposta de fazer parte da equipe criativa. Porém, o fato dos donos não fazerem parte da nobreza, acabou influenciando em sua saída.
Ela sorri quando recorda que logo após a recusa, recebeu a ligação da L&D. Diretora de projetos... pensa enquanto para na frente da recepcionista platinada. Ashley arruma seu terno cinza com uma das mãos, enquanto a outra segura sua pasta preta da sorte. Ela nota a indiferença da jovem a sua frente, então pigarreou para chamar a atenção.
— Bom dia – cumprimenta a recepcionista sem encarar Ashley. — Em que posso ajudar?
— Bom dia, tenho uma entrevista com Ludwig Hofstadter, às oito horas – responde Ashley, evitando olhar o seu próprio relógio. Prefere fingir que não estava atrasada.
— Por gentileza, assine o formulário. – pede a jovem , entregando um formulário a Ashley
— Depois disso poderei vê-lo? – pergunta Ashley, ansiosa.
— Não, ele está em reunião – responde a recepcionista com desprezo. —Este formulário é apenas de comparecimento. Caso queira agendar uma entrevista com o senhor Ludwig, precisa fazer com antecedência.
—Mas... – começa Ashley que acaba por ser ignorada pela recepcionista que está sorrindo para outra pessoa que acabara de chegar. Mesmo não aceitando, sabe que a mulher só está fazendo o seu trabalho.
Ashley assina relutante, entrega o formulário para a jovem e sai tentando não demonstrar o quão decepcionada estava consigo. Ela sempre foi tão rigorosa com seu horário, mas naquele dia tudo havia acontecido de errado. Ela corre até o carro, tentando fugir da forte chuva, aciona o veículo e sai do estacionamento dirigindo para a região norte de Londres, enquanto repassa tudo o que aconteceu naquela manhã, começando pelo fato de seu celular não ter acionado, já que o mesmo descarregou , a fazendo perder a hora . Em seguida, houve o acidente no caminho para a L&D. Apesar de tudo isso, ela realmente acreditou que conseguiria chegar a tempo. Uma viagem de uma hora de Londres a Cambridge acabou tomando o dobro do tempo. Já escuta a voz da Duquesa de Argyll a repreendendo por seu atraso. Então seu carro começa a dar solavancos no meio da estrada, até que finalmente desliga, sendo tomado pela fumaça que sai do capô.
— Isso não está acontecendo... Isso não está acontecendo... – repete Ashley tentando não entrar em pânico. Ela gira a chave insistentemente enquanto implora — Come on, por favor, não me deixe aqui... Come on – o carro não corresponde às suas preces o que a deixa irritada a ponto de bater loucamente no volante sem se importar com a buzina que responde em alto e bom som aos comandos da Lady — s**t!s**t! s**t! s**t! s**t! s**t!
Ela para por alguns segundos, respira fundo e então decide ver o que tinha acontecido com o carro, mesmo não tendo a menor noção de mecânica. Procura o guarda-chuva que deveria estar no porta-luvas, mas não está. Continua a busca com toda sua raiva por cada canto do carro e nada.
— Perfeito! – exclama Ashley antes de sair do carro.
Em questão de segundos, sua camisa branca ficou totalmente transparente, permitindo que qualquer um visse seu sutiã bege que também não está ajudando a tapar muita coisa,mas ela não se importa , da mesma forma que os veículos passam pela via. Ela continua sua vistoria, primeiro colocando o triângulo a uma distância segura da parte traseira do veículo, depois abrindo o capô do carro. Assim que o levanta, percebe que nada daquilo faz sentido pra ela, ainda mais com a quantidade de fumaça que ainda insiste em sair de algum canto do motor. Sente vontade de chorar em desespero, quando vê a sombra com guarda-chuva parar ao seu lado.
— Posso ajudá-la, senhorita?
Ashley ergue a cabeça batendo abruptamente no capô aberto, do qual havia esquecido completamente, ela fecha os olhos enquanto sente sua cabeça latejar. O homem larga seu guarda – chuva e vai em auxílio da jovem, segurando seu rosto por entre as mãos enquanto busca por algum corte no topo da cabeça da Lady de Argyll.
—Você é a pessoa com a cabeça mais dura que já conheci em toda minha vida – comenta o homem chamando atenção de Ashley que ri.
Ela abre os olhos e se depara com os olhos castanhos mais vívidos que já viu em toda sua vida. Poucas marcas de expressão na testa e muitas ao redor da boca que denunciam ser um homem que gosta de sorrir. Seus cabelos tem , para aumentar ainda mais a admiração de Ashley, o mesmo tom dos olhos, muito bem cortados e um leve topete, só perceptível por conta da chuva que agora o joga pela testa do rapaz que se afasta devagar. Ele caminha atrás de seu guarda chuva e então volta a se aproximar, mas dessa vez o entrega para Ashley, que sorri agradecida. O homem então retira seu casaco preto e coloca gentilmente nos ombros da loira que não deixa de notar o peitoral do rapaz que vai sendo mostrado conforme a chuva molha sua camisa social azul clara. Então ela volta a encará-lo recebendo um enorme sorriso de volta. Eles ficam se olhando por um tempo, como se tentassem adivinhar de onde se conhecem até que ele pigarreia , trazendo Ashley de volta a realidade
— Preciso que você entre no veículo e o manobre enquanto empurro para o acostamento, está bem? – propõe o rapaz enquanto fecha o capô do carro com cuidado.
Ashley entra em seu veículo e segue as orientações do rapaz que caminha para a parte traseira do carro, onde começa a empurrá-lo em direção ao acostamento. Em poucos minutos eles conseguem tirar o carro da pista. Ela volta a descer do veículo caminhando em direção ao rapaz que abre o capô mais uma vez, analisando com cuidado. Ele se vira para a Lady de Argyll e informa:
— Olhando por cima , posso dizer que o motor do seu carro fundiu – ele fecha o capô —Você possui algum contato do seu seguro para acionar o guincho e levá-lo a uma oficina de confiança ou chamar um profissional especializado para ajudar com o seu carro?
— Tenho sim, está no meu celular – responde Ashley andando até a porta do veículo. Então ela para e sorri olhando para cima —que está descarregado.
— Eu tenho carregador veicular, se quiser pode usá-lo – sugere o rapaz apontando em direção ao seu carro e depois aponta para Ashley que treme freneticamente — Além disso, você precisa se aquecer.
— Obrigada – agradece Ashley que pega sua bolsa em seu carro e depois caminha em direção ao dele que faz questão de abrir a porta para ela entrar.
Com destreza, ele liga o veículo e coloca o aquecedor no máximo. Logo em seguida pega o celular de Ashley e coloca em seu carregador que encaixa perfeitamente, enquanto ela tenta aquecer as suas mãos na saída de ar na frente de seu banco. Ele faz o mesmo até notar que as mãos de ambos estão sujas de graxa, então retira sua camisa e a entrega para Ashley:
— Tome, para limpar suas mãos – oferece junto com o seu sorriso espontâneo.
— Oh, obrigada mais uma vez! – agradece Ashley pegando a camisa e limpando suas mãos. Ela encara o rapaz, admirada — Obrigada por tudo o que está fazendo.
— Não é mais do que a minha obrigação – responde o homem respirando entre as suas mãos.
— É sua obrigação resgatar jovens desesperadas com seus carros na beira da estrada? – questiona Ashley sorrindo.
— É uma tradição familiar, digamos assim – sorri em direção a Ashley que fica vermelha na hora. Então ele se ajeita melhor no banco para encarar a jovem resgatada — Então, o que faz parada aqui no meio da estrada?
— Regressando de uma entrevista de emprego – responde Ashley olhando para suas unhas ainda tomadas pela graxa. — Ou o que deveria ser uma...
— Por que diz isso? – questiona o rapaz franzindo a testa.
— Porque para ser uma entrevista, você precisa estar nela e como eu cheguei atrasada...
— Compreendo, isso é uma pena – comenta, solícito. — Se não for muito atrevimento da minha parte, para qual cargo estava concorrendo?
— Diretora de Projetos pela L&D. – responde Ashley sem graça enquanto ajeita os cabelos — Entretanto, foi tudo por água abaixo quando não reparei que meu celular não estava carregando.
— É uma pena, mas tenho certeza que há de conseguir outro melhor.
— Assim espero – afirma Ashley que encara o homem misterioso — E você? Além de realizar resgates... O que estava fazendo antes de parar e me ajudar?
— Indo para o aeroporto – responde o rapaz sorrindo.— Estou voltando para o meu país.
— Oh, então não mora aqui na Inglaterra? – questiona Ashley , surpresa — Desculpe-me a indelicadeza, mas sua pronúncia é perfeita.
— Obrigado. – agradece o rapaz lisonjeado — Porém, não sou nem ao menos inglês. Se a minha pronúncia é tão boa, deveria agradecer à uma parte da minha família que mora no país.
— Então veio a passeio? – deduz Ashley, animada.
— Também. – ele olha para o celular de Ashley que já registra 15% de bateria. Então pega e o entrega para ela —Acho que você poderá ao menos pegar o número do seu seguro para fazer a ligação. Vou ali fora deixar seu carro melhor sinalizado, já volto.
— Com certeza – confirma Ashley ligando o celular. Depois de algum tempo ela liga para a seguradora e explica sua situação para eles ao mesmo tempo em que observa o homem ajeitar a sinalização com certa admiração. O rapaz volta para o carro e ela desliga o telefone enquanto sorri para ele, satisfeita — Bom, me informaram que o guincho chegará em aproximadamente quinze minutos.
— Isso é ótimo. Fico feliz por tudo estar se resolvendo.
—Então, voltarei para o meu carro – informa a Lady de Argyll enquanto estende sua mão em direção ao desconhecido — Obrigada por tudo.
—Sempre as ordens – retribui o rapaz apertando a mão de Ashley firmemente — Porém, acredito que não há necessidade de você voltar para o seu carro agora.
— Eu não quero atrapalhar mais ainda sua viagem. Pode acabar perdendo o voo por minha causa e eu jamais me perdoaria – alega Ashley colocando a mão sobre o peito.
— Ainda tenho bastante tempo. O importante é deixar você em segurança.
— Tudo bem. – responde Ashley com um leve sorriso. Ela se vira olhando para frente, admirando as gotas de chuva, então volta a encará-lo — Então... o que faremos?
— A gente pode conversar... E falar sobre as nossas vidas – sugere o homem — Ou melhor, que tal falarmos sobre coisas que jamais diríamos a pessoas conhecidas?
— Desculpe-me, como assim? – questiona Ashley sem entender o objetivo dele.
— Não nos conhecemos e nunca nos vimos na vida... E nossos destinos nunca mais voltarão a se cruzar. Então nós podemos desabafar qualquer coisa um para o outro, pois somos isentos de qualquer julgamento ou constrangimento entre nós. O que acha?
— Uma boa ideia, ainda mais com esse péssimo dia que estou vivendo – admite Ashley. — Vamos chamar de quinze minutos no paraíso.
— Perfeito – concorda o rapaz — Já que você deu o nome, comece.
— Negativo. Você deu a ideia, você começa – argumenta Ashley.
— Está bem – concorda se ajeitando no banco. Ele respira fundo e olhos fechados — Eu não queria ter o fardo de carregar as obrigações da minha família sempre à frente das minhas. Eu quero um dia, só um dia, viver baseado nas minhas escolhas.
— Entendo perfeitamente você – afirma Ashley pensativa — Na verdade, eu também gostaria.
— Sério?
—Sim, eu sinto que a minha vida toda foi executada em cima de um roteiro aprovado pela minha avó... Incluindo o meu noivado. As vezes eu sinto que tenho uma dívida para com a minha família e... Só posso quitá-la , realizando esse casamento.
— Você o ama? – pergunta encarando Ashley intensamente.
— Eu... – ela começa a responder quando nota as sirenes amarelas se aproximando. — O guincho chegou.
—Salva pelo gongo, ou melhor guincho – comenta o rapaz sorridente. Ele desce e abre a porta do carro para ela — Nossos quinze minutos acabaram.
— Sim. Muito obrigada por tudo – responde Ashley descendo do veículo.
Ela caminha em direção ao guincho que já está a postos para remover seu carro. Conversa com os rapazes e então recebe uma notícia nada agradável. Respira fundo e se vira em direção ao carro do rapaz que , para a sorte dela, ainda não havia seguido seu caminho. Aproxima-se da janela do banco do passageiro e diz:
— Eles rebocam meu carro, porém não podem me levar com eles, pois as normas da seguradora os impede. Eu gostaria de saber se posso abusar mais um pouco da sua generosidade e pegar uma carona com você até Londres. Só até onde for o seu caminho , depois pego um táxi.
— Não se preocupe, faço questão de deixá-la no portão de sua residência – responde o rapaz abrindo a porta do carro.
Ashley entra novamente no veículo, coloca o cinto e então sorri para o homem que começa a dirigir em direção a Londres. Ela sabe que não se deve pegar carona com estranhos, mas por algum motivo aquele rapaz lhe parecia familiar.
****
A ansiedade de Ashley aumenta quando percebe a mudança do cenário que antes eram ruas Terraced (casas construídas lado a lado sem espaço entre elas), para as casas mais espaçosas, grandes parques, jardins e campos de golfe, indicando que está em Hampestead, bairro onde mora. Seu estômago embrulha quando entram na Avenida The Bishop, conhecida como a rua dos “bilionários”, local onde estão algumas das mansões mais caras da cidade.
— Pode parar aqui. – pede a jovem apontando para o um dos maiores portões de ferro da Avenida. O rapaz abaixa o vidro para que o segurança possa ver seu rosto — Sou eu, James.
—Bom dia, My Lady – responde o segurança antes de falar no rádio — Acesso liberado: Lady Ashley de Argyll.
O carro passa pelo portão que se abre, ao ser acionado por um dos guardas, então estaciona dentro da imponente propriedade dos Campbell .
— Entregue, My Lady – comenta o rapaz com tom de ironia. Ele se vira em direção a jovem , apoiando a cabeça com a mão enquanto a admira.
—O que foi? – questiona Ashley sorrindo sem graça.
—Nada, só não tinha ideia de que estava dirigindo para a nobreza.
— Como pôde notar, de nobreza , somente o título – comenta Ashley respirando fundo — Vivemos apenas a ilusão do glamour, senhor...
—Nobody[1] – responde o homem com um leve sorriso.
— Nobody? – questiona Ashley surpresa com a ironia do suposto sobrenome do homem desconhecido. — Está brincando?
— É sempre bom manter o mistério. – responde Sr. Nobody — Pelo bem da minha cabeça. Enfim, foi um prazer conhecê-la – finaliza estendendo a mão.
— É aqui que os nossos destinos deixam de se cruzar. – responde Ashley apertando a mão do homem. Ela desce do carro , dá alguns passos e então volta retirando o casaco emprestado por ele — Seu casaco.
— Fique com ele. Entregue-me da próxima vez em que nos vermos – alega o homem encarando a jovem.
— Como? – questiona Ashley sem entender o que ele quis dizer.
O homem sorri e inclina a cabeça levemente, então dirige seu carro em direção aos portões, levando consigo a resposta.
____________________________________________________________________________________________
[1] Ninguém.