Acordei com o som do interfone tocando sem parar, meu corpo nem tinha se recuperado da primeira ressaca e agora revivia outra. A diferença era que agora estava com dores acumuladas e a maior parte se concentrava na minha cabeça. Mais duas garrafas de vinhos secas na mesa do centro da sala. Definitivamente, eu precisava voltar à terapia.
Olhei o celular para ver que horas eram; 6h do domingo. Sério que o porteiro queria falar comigo àquela hora? Minha cabeça ia explodir se o interfone continuasse tocando assim, repetitivamente. No meu celular havia inúmeras ligações e mensagens que devido à insistência do interfone tocando, não tive tempo de ver quem, provavelmente, estava em apuros. Eu precisava me concentrar apenas em atender com brevidade aquele interfone, senão teria um colapso nervoso de dor.
— Dona Milena, o seu irmão Otávio tá aqui na portaria, querendo falar com a senhora. E mesmo ele sendo da sua família, eu só posso liberar a entrada de pessoas no edifício com autorização do morador — falou Genivaldo com a voz de aflito.
Inacreditável que o Otávio me traria problemas tão cedo em um domingo que estava com ressaca dupla.
— Não está autorizado! Peça para ele voltar para casa. E, por favor, Genivaldo, deixe de me chamar de dona e senhora, já pedi isso a você, por favor, é só Milena — respondi com uma mão na cabeça fazendo uma leve massagem. Algo tinha que fazê-la parar de doer e não eram os problemas que o Otávio já estava me causando naquela hora.
— Eu esqueço, dona… — ele tossiu forçadamente —… Milena. E pode ficar tranquila, que eu vou dizer para ele ir embora.
Desliguei o interfone e fui me deitar na cama para verificar as mensagens e ligações insistentes que eu deixei de ver enquanto dormia. Pela quantidade, o mundo deveria estar acabando.
Havia várias ligações da Liz e perguntas bem íntimas sobre minha noite, ela realmente acreditava que eu estava com alguém e por isso não a atendi. Ok, essa parte estava administrada e eu resolveria mais tarde.
A minha mãe perguntando se eu estava bem, passei rápido e vi mensagens desaforadas do Otávio, que eu preferi apagar sem nem ler e ter de fato minha cabeça explodindo. Também tudo sob controle e dentro do esperado.
Havia mensagens da Beatriz, que fiquei com medo de abrir e precisar responder sobre minha saída repentina da festa e, por fim, tinha um número desconhecido com inúmeras ligações que não atendi pelo motivo óbvio: estava apagada de ressaca. Fiquei pensativa olhando aquelas ligações e aquilo, sim, exigia a minha atenção, pois poderia ser alguma urgência.
As minhas especulações estavam corretas, apenas com um toque a pessoa atendeu.
— Oi, você atendeu, finalmente! — Voz rouca, seca, seguida de um suspiro aliviado.
Era o cara de ontem, eu tinha certeza!
— Desculpe a insistência, mas fiquei preocupado, você saiu de repente da festa. E… — ele continuou a falar, mas sinceramente era muita loucura o cara me chamar para dançar, simplesmente desistir sem nenhuma explicação plausível e me ligar àquela hora da manhã de forma insistente e desesperada.
— Como você conseguiu meu telefone? — perguntei, o interrompendo.
— A Beatriz…
— O que você quer? — o interrompi novamente da forma mais seca que consegui.
— O seu irmão…
— Eu não tenho irmão… — voltei a interromper para esclarecer.
O interfone voltou a tocar.
— Um minuto, me deixe resolver algo — falei, me dirigindo para o interfone.
— É isso que estou falando, onde você está? Ele está com você? — ele perguntou preocupado.
Ham? — me perguntei, confusa. Atendi o interfone em um ouvido e continuei por algum motivo com o celular ainda no outro. Talvez a curiosidade das ligações insistentes associada a alguma explicação da desistência dele de dançar comigo.
— Oi, Genivaldo, eu já disse que não autorizo… — falei impaciente.
Sem me deixar concluir, Genivaldo continuou com a voz ainda mais nervosa:
— Milena, ele só faz gritar e disse que vai acabar com a vida de alguém. Os moradores estão ficando assustados. — A voz dele ficou mais baixa e abafada. — Eu acho que ele está armado.
Só podia ser um pesadelo, às 6h de um domingo despretensioso, eu já ter tanta informação e problema para processar. Escutei do interfone a voz distante do Otávio gritando o nome da Beatriz.
— Ele está da falando Beatriz? — perguntei para ter ideia do que eu teria que resolver.
— Estou indo aí. — o homem falou firme ao celular.
— Sim, Milena! Por favor, você precisa descer para resolver isso, ele está muito alterado. O síndico já deve ter chamado a polícia. Estou com medo de ele perder a cabeça e fazer alguma besteira — Genivaldo respondeu extremamente nervoso.
Eu me apressei para trocar de roupa e descer para conter o Otávio de fazer alguma besteira naquele momento, já bastava a Beatriz de vítima. Coloquei um moletom, prendi o cabelo em um coque rápido e desci às pressas.
No elevador, passo a me lembrar do homem falando com tanta propriedade do Otávio. Ele estava incomodado e se referiu como se eu e o Otávio fôssemos irmãos. Algo me dizia que eles tinham alguma relação, principalmente, por, às 6h da manhã, o cara estar preocupado se o Otávio vai aparecer na minha casa ou não. Estranho, inconclusivo e preocupante. Preferi rotular assim.
Quando estava me aproximando da portaria, do elevador conseguia ouvir os gritos e palavrões aleatórios que o babaca soltava me ofendendo. De certa forma, estava tranquila, pela primeira vez em anos suas palavras não me preocupavam e não me sentia tão impotente.
Quando a porta do elevador abriu e ele me viu, gritou:
— v***a, vaca, sua merda! Vou te matar!
Havia testemunhas, tinha provas em vídeos e de fato agora me sentia muito mais forte, porém a justiça deveria ser feita em todo seu âmbito de crime e todo o contexto atual só me servia para ter certeza de que a cada desespero dele, mais me sentia forte em derrotá-lo.
— Já chamaram a polícia, Otávio! Se eu fosse você, iria embora, senão, além de processado por mim, será preso — falei com calma.
Ele empurrou o Genivaldo e, se desvencilhando, gritou na minha direção:
— Vou f***r com a vida da sua amiguinha, você vai ver! Nenhuma das duas vai sair ilesa. São duas vadias de merda!
— Vá embora, a polícia chegará! Estou avisando! — falei firme e decidida, fixando os olhos nos azuis dele que estavam novamente cobertos por uma nuvem vermelha de ódio
Cheguei bem próximo dele e o Genivaldo foi para a minha frente, quase com um escudo humano. Mas não precisava, não tinha medo dele. Não mais.
Ele estava ofegante e conseguia ouvir a voz de ódio que a sua respiração ecoava.
— Você está bêbado? — perguntei irônica. — Vá embora, Otávio, seja inteligente uma vez na vida! Você será preso! Tudo aqui está contra você. Tenho provas, testemunhas e no final, o meu dinheiro não vai te ajudar a se safar. Além de desempregado e falido, será réu — finalizei com um leve sorriso.
Ele partiu para me bater com as mãos fechadas e o Genivaldo o empurrou com força, me defendendo. Talvez hoje eu precisasse mesmo colocar em prática as minhas aulas de defesa pessoal. Como não tinha seguranças, eu havia escolhido aprender a me defender, fosse com arma ou com o meu próprio corpo.
— Cadê? A mulherzinha sabe bater, não? Quero que você venha, vamos brigar como todos os irmãos fazem? — ele falou ironicamente, perdido em sua bebedeira.
Eu respirei fundo, abri a minha base de apoio e cruzei os braços. Àquela altura nem lembrava mais da minha dor de cabeça. Estava prestes a iniciar um confronto corporal que desejava há anos e me sentia muito preparada.
— Se quiser, pode vir. Garanto que a mulherzinha aqui sabe bater muito mais que você — falei firme.
Ele gargalhou.
— Socorrooooooo! — Genivaldo gritou.
— Eu não perdi. Quem perderá será você. Se prepare!
Da porta principal do prédio, ouvi uma batida brusca no vidro que nos assustou.
— Abra a porta, agora! — o homem gritava, e quando viu o Otávio se aproximando de mim pronto para a briga corporal, ele se desesperou e deu um soco no vidro da portaria, que se despedaçou.
Quando o Otávio finalmente percebeu quem se aproximava dele, murchou e toda aquela adrenalina de combate foi embora em segundos. O Otávio estava pálido e eu, confusa com o que estava acontecendo.
— Não chegue perto dela! Se você não sair daqui agora, vai sofrer as consequências! — ele ameaçou com o indicador apontado para o Otávio. Foi se aproximando, a mão sangrando, mas sem nenhum medo.
Talvez porque ele era duas vezes o Otávio em tamanho, talvez pela brutalidade, mas a sensação era mesmo que o Otávio tinha algum r**o preso com esse homem. Era bom e r**m ao mesmo tempo.
— Vá embora. Eu já avisei. Eu acabo com você, seu maldito! — Ele empurrou o Otávio que caiu longe de nós e, agilmente, se levantou e saiu correndo do meu edifício com o rosto tomado pelo medo.
Estava tentando processar a situação, tentando entender o que havia acabado de acontecer, mas sentia meu corpo fraco, sem forças para sequer balbuciar algo. Tinha a sensação de estar pisando em um chão flácido e, de repente, o mundo começou a ficar lento. Rostos sem formas, vozes mudas e senti mãos me segurando antes de, por fim, meus olhos fecharem. Estava desmaiando, essa sensação já era conhecida, eu já senti antes.
?
— Ela acordou! — Ouvi a voz entusiasmada da Liz. — Dr. Vicente, ela acordou!
Abri os olhos devagar e reconheci que estava em um leito de hospital. As palavras “Dr. Vicente” ecoaram na minha cabeça. Tentei mexer os braços e vi que estava com acesso para o soro ao meu lado.
— Tenha calma, Milena, assim você vai tirar o acesso do soro — Liz falou preocupada, enquanto ajeitava o soro no suporte.
— Onde estou?
— No hospital.
— Não me diga que estou sendo tratada pelas ervas daquele hippie — brinquei.
— Percebi que você já está pronta para mais uma cachaça — ela brincou, sorrindo.
— Vejo que você está ótima e pronta para voltar ao combate.
Eu sorri e dei uma leve tossida para melhorar minha voz que estava rouca. Comecei a me lembrar da briga com o Otávio e meu sorriso foi sumindo. Ficamos em silêncio um tempo.
— Você desmaiou após a briga com o Otávio, e o dr. Vicente identificou que você precisava se hidratar, parece que você voltou a usar a bebida sem muito controle. Precisa se cuidar, não terá um dr. Gato a seu dispor a todo momento.
O Vicente logo entrou com uma mão enfaixada no quarto, sem usar um jaleco. Percebi a Liz sem graça com o rosto bem vermelho.
— Como estava falando, você precisa se cuidar e maneirar na bebida — a Liz repreendeu.
— Pois é, se não vai precisar sempre tomar glicose na veia — o Vicente falou.
Ficamos todos em silêncio. A Liz ficou alternando o olhar para mim e para ele, enquanto nós dois estávamos vidrados um no outro. Não me cansava em dizer o quanto ele era lindo, mas nem toda beleza do mundo valeria a pena se houvesse o envolvimento do Otávio. Nada justificaria algum sentimento se o Otávio estivesse, mesmo que de muito longe, envolvido e hoje, na minha casa, eu tive a certeza de que eles tinham algum passado. Bom ou r**m, não importava, eles se conheciam o suficiente para ter algo que pudesse os prender a ponto de o Otávio ter medo e, para isso acontecer, deveria ser algo muito sério.
— Como você foi aparecer na minha casa? Quem te deu meu telefone? Por que me ligou tantas vezes? Você conhece o Otávio? — perguntei desnorteada em meus inúmeros questionamentos.
— Eu vou esperar lá fora — Liz falou, percebendo o clima de tensão.
— Não saia daqui, Liz! — falei, ríspida.
Nesse momento, uma enfermeira entrou no quarto.
— Posso retirar o acesso, doutor? — ela perguntou.
Ele balançou a cabeça positivamente e ficamos todos em silêncio, enquanto a enfermeira retirava o meu acesso. Era um clima constrangedor e a falta de respostas chegava a ser revoltante.
Ele se aproximou de mim e senti meu coração acelerar. Infelizmente, não era só revolta que dominava os meus pensamentos nessa hora, e desconfiava que o seu cheiro ardente estivesse me desconcentrando para me manter firme na busca das minhas respostas.
Assim que a enfermeira acabou, ela saiu da sala e a Liz aproveitou que estava distraída demais com aquela beleza e aquele perfume e se retirou, passando despercebida.
— Você pode me responder? — perguntei sem foco.
Ele começou a ficar ofegante; nitidamente incomodado com a situação. Deu mais um passo em minha direção e ficamos ainda mais perto. Ele tocou a mão não machucada no meu cabelo e saiu descendo lentamente.
Eu, que já estava sem foco e sem controle, cedi, relaxando a cabeça com aquele carinho. Um toque quente, aconchegante e muito bom.
— Por que tudo isso? Quem é você? — perguntei com os olhos fechados ainda degustando o seu toque macio.
Ele retirou lentamente a mão e abri os olhos. Eu o encontrei com os olhos entristecidos encarando o chão.
— Primeiramente, você está de alta e deve tomar cuidado. Precisa se alimentar bem e se for ingerir bebida alcoólica, coma algo e beba bastante água — ele falou, ríspido.
Eu sorri ironicamente! Ele, além de todos os empecilhos óbvios que teríamos para tentar algo, ainda era indeciso e complicado. Fato que não dava para mim.
Estava indignada e revoltada comigo mesma.
Precisava ir embora, precisava de distância dele e desse sentimento que eu deixei que brotasse no meu coração.
Desci a escada da cama lentamente e ao colocar o pé no chão, as minhas pernas fraquejaram. Ele me segurou rapidamente e continuou a falar:
— Segundo, você está com níveis baixos de ferro e vitamina D.
Ele continuou me segurando e eu senti o meu coração bater tão forte que achei que era audível, assim como o dele também estava, eu ouvi. O que só aumentou a minha confusão.
— Se você não quer responder as minhas perguntas, então me deixe em paz! — respondi, me soltando de seus braços.
— Você precisa se cuidar! — ele respondeu.
Mantendo uma distância segura dele, até que conseguia me manter forte com as minhas razões óbvias, mas assim tão perto e com seus olhos tão fixos nos meus, o máximo que conseguia pensar era que ele tinha cara de quem beijava superbem.
E pelo passo que ele deu, se aproximando mais de mim, tinha certeza de que aquela confusão que estava sentindo, vivia muito intensamente nele.
O cheiro refrescante invadiu o meu olfato e se tornou a combustão de um desejo que estava a todo tempo contendo. Mas naquela proximidade, foi impossível não deixar o meu corpo inteiro queimar de t***o. Não havia razão para tudo isso existir. Nada era óbvio. E eu que trabalhava com a razão e sob comprovações, me sentia rendida por algo inexplicável.
Ele aproximou o rosto do meu e a minha frequência respiratória e cardíaca instantemente aumentaram, se misturando com a dele e formando uma linda melodia que só nós escutávamos.
— Eu não posso aqui no meu trabalho — ele sussurrou quase com os lábios encostados nos meus. Alguns centímetros separavam o que tanto almejávamos.
Não consegui me conter, não consegui ficar a centímetros do que eu tinha fome de degustar e sede de ser saciada. O beijei. Quando os nossos lábios se encostaram, tive certeza de que houve uma explosão e tínhamos pressa para que o fogo queimasse exatamente todas as partes de nós. Coração acelerado e no ritmo intenso que as nossas línguas se enroscavam. Eu o explorava em busca de achar algo que fizesse sentido me manter aqui, porque neste momento não existia lugar que eu queria estar mais do que onde estava. Ali sentia coração, cabeça e corpo no mesmo compasso e desejando a mesma coisa, que o momento nunca mais acabasse. Por segundos, consegui acreditar que era possível e ele também. Mas de repente nosso ritmo diminuiu de forma mútua. Não era explícito, mas era sensível que não podíamos por inúmeros motivos alimentar a esperança que estávamos deixando nascer dentro de nossos corações. Por isso, me separei de seus lábios na mesma voracidade que encostei, a diferença era que meu corpo ainda pegava fogo e depois de prová-lo, eu queria muito mais e não devia, e não podia.
Segundos que pareceram horas, o que antes era só um despertar, agora era um caminho que iniciei sem volta.
— Vou assinar sua alta hospitalar. Como este quarto é apenas para repouso, não há necessidade de você assinar nada — ele falou desorientado saindo do quarto sem mais manter o contato visual comigo.
Fiquei observando-o sair, acalmando o meu coração, controlando a minha respiração ofegante. A Liz logo entrou no quarto batendo palmas e com uma expressão de impressionada.
— Milena, eu não estou acreditando que finalmente você vai abrir o seu coração e é para esse gato! — ela falou com entusiasmo.
Não conseguia falar, a minha energia estava concentrada em afirmar que não podíamos ter nada e que essa decisão era unânime entre nós dois.
— O que aconteceu? — Ela olhou para mim com mais atenção. — Você está mais pálida que o normal e você — ela fez uma expressão surpresa — vai chorar?
Lágrimas escorriam pelo meu rosto, foi a solução que o meu corpo conseguiu para esfriar o que ele aqueceu em mim. As lágrimas não eram desejadas, mas foi o resultado da tristeza da minha impotência em não achar a razão para ter a felicidade que, por segundos, achei ser possível ter junto a ele quando o beijei.
— Por favor, me leve embora daqui! Não estou bem — respondi.