Capitulo 1
Ainda deitada na cama, esperando o despertador tocar para me levantar, eu continuava a lembrar-me de cada detalhe do pior dia da minha vida, afinal, era dia dez de junho e o passado, como de costume, não havia passado e insistia em bater à porta das minhas piores recordações.
Ainda conseguia lembrar os dias terríveis tomados pela incerteza de manter-me viva e, principalmente, o pavor por cada segundo que passei sob o poder de bandidos num cativeiro quando fui sequestrada. A cada pancada que meu corpo recebia, mais a esperança de ser libertada com vida desaparecia.
Eu costumava ir andando para a escola que ficava a alguns quarteirões da minha casa. Não era um local seguro de se caminhar, eu precisava andar alguns metros em uma estrada estreita de terra, para chegar então às ruas asfaltadas. Embora fosse inseguro, eu gostava de fazer essa caminhada diariamente, gostava de observar a natureza durante o caminho, de ouvir o barulho dos animais que eu imaginava surgir para me dar bom dia. Eu gostava muito de ter a liberdade de ouvir os meus pensamentos sem ter o eco das vozes daqueles que faziam dos meus dias um verdadeiro pesadelo. Por incrível que pareça, a insegurança da estrada de terra assustava-me menos que a insegurança que vivia diariamente por xingamentos, privações e desconfiança.
No percurso mais esquisito que era o de barro, eu costumava ser mais atenta e andava rápido, mas quando chegava a parte asfaltada, eu costumava relaxar mais e degustar os minutos de liberdade. As ruas eram pouco movimentadas, mas sempre tinham estudantes em seus carros, ou até mesmo andando como eu. Mas hoje era um dia atípico e descobri isso quando fui surpreendida por um carro na cor preta que parou repentinamente na minha frente do cruzamento próximo à escola. Eu estava muito perto da escola e jamais imaginei ser surpreendida daquela forma. Tomei um susto ao perceber a parada brusca do carro e a minha reação imediata foi gritar e não de correr, o que não me permitiu muitas chances de me salvar.
Dois homens encapuçados saíram do carro apontando uma arma para mim e de imediato a minha ficha caiu que eu estava sendo vítima de um crime premeditado. Não tive força suficiente para não ser contida, na verdade, olhando bem friamente para a situação, fui uma presa fácil e inocente. Eles estavam armados, eram fortes e eu uma adolescente sem nenhuma ideia ou experiência de autodefesa. Respirava rápido, o nervosismo era grande e eles sabiam e usaram aquilo contra mim, porque gastei as minhas energias de uma só vez enquanto eles sabiam exatamente o que fazer para finalizar com êxito o meu sequestro. Não me lembro de ter visto ninguém para me defender, não lembro de ouvir algum grito que não fosse o meu de desespero. De repente, uma pancada forte na minha cabeça, meu corpo ficou mole, eu comecei a enxergar os homens embaraçados, até que tudo ficou escuro e não sabia mais se estava ou por quanto tempo ficaria viva.
Acordei desnorteada, com muita dor de cabeça, ainda fraca da tentativa de fuga, as mãos e pés estavam atados, eu estava vendada e o mesmo tecido grosseiro que arranhava os meus olhos, também cobriam a minha boca abafando os meus tantos gritos. Lembro-me do cheiro húmido, da textura áspera do chão e do quanto fiquei apavorada quando acordei deitada apenas podendo usar alguns poucos sentidos do meu corpo. Gritei, tentei me mover, mas nada funcionava. Parecia que eu estava me sabotando, perdendo energias e facilitando a minha incapacidade de fuga. De repente, a sensação de ser vencida invadiu o meu coração, eu precisava conformar-me com a derrota dessa batalha e talvez de toda a guerra. Eu estava viva, mas, ao mesmo tempo sentia cada gosta de esperança de me manter nessa condição morrendo paulatinamente.
O despertador do celular tocou, me tirando do passado e das piores recordações que eu tinha na vida, pois embora já tivessem passados 12 anos, todo aquele sofrimento, era muito vivo em mim. Conseguia me lembrar de cada segundo que vivi naquele cativeiro e da sensação de morte iminente. Há 12 anos fui libertada e, ao mesmo tempo, vivia presa nas minhas piores recordações.
Eu cresci, passei por muitas terapias e conquistei exatamente tudo o que sempre desejei, exceto a liberdade dos meus sentimentos. Mas esse ano seria diferente, eu prometi que iria me libertar do meu passado e seguir em frente com minha atual vida. E era isso que iria fazer hoje. Ia viver como se dia 10 de junho fosse igual a qualquer dia, faria de tudo para esquecer o que fui. Hoje eu só queria ser o que me tornei, sem a dependência pelos sentimentos de medo e de submissão que estavam dentro de mim há tantos anos.
Levantei da cama ainda sonolenta, mas estava determinada a mudar. Todos os dias acordava cedo, fazia parte da minha rotina como uma das CEO do “Shopping” Pallaci. Acordava às 5h da manhã, tomava o meu café da manhã, praticava ioga e, em seguida, ia para o trabalho.
Eu herdei o “shopping” do meu pai, que morreu assim que completei seis anos, num acidente de carro. Achei, na época, que esse seria meu maior desafio, viver sem o homem que eu tanto amava e admirava. Ele era meu porto seguro. Nós nos parecíamos em tudo, do físico ao emocional e perdê-lo sem despedida foi muito chocante. Quanta inocência, pois ainda no processo de luto, precisei me esforçar para aceitar o casamento da minha mãe com o Messias em pouco tempo e, de brinde, ainda ganhei também um perverso irmão postiço mais velho. Passei a morar numa casa que eu não sentia ser minha. Num espaço de tempo pequeno perdi um pai, uma mãe e a minha casa. A sensação que eu tinha na minha juventude era que eu era uma intrusa dentro da minha própria casa e ouvindo tantos xingamentos do Otávio, aprendi cedo o que era ser desrespeitada e desacreditada por gênero.
A minha mãe sempre viveu num mundo particular dela, ela gostava do glamour, do dinheiro como poder. Sua prioridade era o status de high Society que vivia numa família perfeita. Mas não era preciso conviver muito conosco para perceber o quanto esse idealismo não existia. Eu era o oposto de tudo que eles representavam e fazia isso propositalmente. Desde muito cedo, abri mão de motorista, de segurança e de particularidades pagas.
Após tanto sofrimento, decidi focar os meus esforços para o estudo. Consegui sempre estar entre os primeiros, fiz network importantes e assim que terminei a faculdade, assumi o cargo de CEO do “shopping”. Assumi o cargo por idade, mas fazia diariamente que foi por merecimento. Dedicava a vida a esse local, não só por mim, mas pelo meu pai. No “shopping” tinha recordações boas dele e por isso não media esforços para vê-lo prosperar e crescer. Não foi por acaso que o meu pai havia deixado sob a minha responsabilidade um empreendimento daquele porte com pouca idade, ele acreditou em mim, no meu potencial e no amor que eu sentia por ele, mesmo ainda sendo tão pequena.
Mas nem tudo são flores e acho que foi proposital meu pai deixar a missão de gerar lucros, caso o contrário, eu perderia o meu cargo e a minha mãe voltaria a ter o controle majoritário do shopping. O Messias e o Otávio sabiam disso, por esse motivo faziam de tudo para que eu fraquejasse e, de alguma maneira, perdesse o poder que me foi herdado, para que assim eles pudessem ter o dinheiro nas suas mãos. Mas graças à minha dedicação diária, o meu trabalho árduo gera excelentes resultados financeiros e a minha gestão é a de mais lucro de toda história.
Já no carro, dirigindo para o trabalho, liguei o som para me desconectar das lembranças, porém a inquietude da minha mente tendia sempre a me levar a jato para o passado.
O som do carro ganhou espaço para o som da porta abrindo do local que fiquei quando fui sequestrada. Um rangido baixo que me arrepiou inteira de medo do inesperado. Lembro-me do coração palpitando e do choro instalado na garganta, assim como agora, quando ouvi passos seguidos na minha direção e de homens falando da quantidade alta de dinheiro que estavam pedindo em troca da minha liberdade.
Respirei fundo para tentar me concentrar apenas no presente, mas foi inútil, pois ao inspirar, eu procurei sentir o cheiro que me acalmou naqueles dias. A minha liberdade tinha cheiro refrescante. Lágrimas escorriam por meu rosto e sentia o meu coração bater tão forte que achava que ia ter uma taquicardia.
Eu estava imersa no passado e passei a me lembrar do momento que a porta do espaço que estava ali, mais uma vez, se abriu e eu me encolhi toda achando que naquele momento seria o meu fim, pois eu sabia que a minha mãe teria dificuldades de conseguir todo o dinheiro que eles estavam pedindo com rapidez. Os meus sentidos do olfato e audição estavam mais aguçados que o comum, dizem que em situações extremas seu corpo se adapta para se manter vivo e naqueles dias eu percebi que isso aconteceu comigo. De imediato, percebi que era alguém diferente dos demais que havia entrado no local que eu estava. A porta rangeu bem menos, as passadas eram mais leves e o cheiro era refrescante. Ele se aproximou de mim, e mesmo com um tom de voz baixo, percebi que era firme. Ele me prometeu que me tiraria daquele lugar.
Eu gostaria de encontrá-lo de novo e entender o motivo de ele ter me salvado sem uma despedida. Mas, no fundo, eu sabia o motivo, pois quando fiquei maior de idade e assumi as contas da família, percebi que havia uma retirada de valor considerável das nossas contas justamente no período do sequestro. E mesmo sem conseguir provar a ligação direta com meu sequestro, eu desconfiava que o dinheiro tivesse sido destinado a ele. O Messias e a mamãe diziam que não lembravam o motivo da retirada e que devia estar envolvida com a ampliação do shopping, mas as contas não batiam e para mim era claro que havia ligação com o sumiço dele.
Cheguei ao "shopping" e a tentativa de me desvincular com o passado foi por água abaixo. Limpei as minhas lágrimas, retoquei a maquiagem e segui diretamente para a minha sala em silêncio. Comecei a organizar os documentos que precisava dar andamento naquele dia e, de repente, fui surpreendida pela entrada brusca do Otávio entre gritos desrespeitosos:
— Sua v***a, sua vaca de merda!
Eu já imaginava que ele viria na minha sala questionar o motivo de não acatar uma determinação dele. Só não imaginei que fosse ser tão rápido e com aquela reação no nosso ambiente de trabalho, afinal, tínhamos uma reputação que minha mãe prezava e se era algo que ele sabia fazer, era ser falso quando estávamos em público. Notoriamente, ele perdeu o controle e confesso que não sabia expressar se isso era bom ou r**m.
Respirei fundo, tentando concentrar apenas no meu lado racional e quando abri os olhos o encontrei ofegante, os seus cabelos loiros escorridos estavam desarrumados e os olhos azuis cobertos por uma nuvem vermelha que estampavam o ódio palpável que ele sentia de mim. Acho que vê-lo perder o controle foi mais bom do que r**m. Gostava de ver as pessoas como elas realmente eram, sem as suas capas de interesses, igual o via agora.
— Você não autorizou a contratação da Lídia como supervisora geral do “marketing”? Você está achando que é quem? — falou raivoso
Eu forcei um sorriso para ele, o que o enfureceu. Desviei os olhos dos dele para a tela do meu computador, perdendo mais um show de realidade de um i****a perverso. Eu comecei a procurar o currículo digital da mulher a qual ele se referia.
— Você não está ouvindo? — ele perguntou gritando e apontando para o ouvido dele. — Quem mandou você me desautorizar?
Ele, ao entrar na minha sala, deixou a porta aberta e o burburinho das pessoas que trabalhavam na sala ampla em frente à minha começou a aumentar. Achei o currículo, respirei profundamente para manter a calma e virei a tela do computador na direção dele, que estava de pé em frente à minha mesa, com respiração ofegante e os braços na cintura, numa postura pronta para um confronto corporal.
— Por que você achou que iríamos contratar uma supervisora geral de “marketing”, quando já temos uma pessoa nesse setor? Que, por sinal, faz o trabalho dela super bem e nos gera bastante lucro! — falei com muita calma.
Ele bateu a palma das mãos na minha mesa com muita raiva querendo me intimidar, algo que ele já conseguiu um dia, mas não mais hoje. E eu ia deixar isso bem claro.
— Como você pode ver, o currículo da Lídia não tem qualificação para o cargo e que como já falei, está ocupado faz tempo. — Dei uma breve pausa. — Sem falar que não temos vaga aberta em outros setores para realocá-la. Não estamos em tempo de contratação, estamos passando por um período de recessão. Inclusive, até me surpreende você não saber, Otávio! Talvez você não esteja pronto, ou melhor, talvez você não esteja preparado para trabalhar conosco.
Ele inclinou o seu corpo na minha direção e com as mãos fechadas deu, desta vez, um murro na minha mesa que balançou, ameaçando quebrar.
— Você não entendeu que eu mandei? Experiência se cria e a supervisora antiga eu já mandei demitir! — Respirou ofegante e fechou as mãos, como se preparasse para uma luta corporal comigo. — Te dou algumas horas para ver essa v***a da Beatriz na rua definitivamente. E antes que eu esqueça de falar, aqui quem não está preparada é você para sentar nessa merda de cadeira. Você só está aí — ele apontou para mim — porque o seu pai i****a deixou por escrito, mas se ele soubesse a v***a burra que é, teria era vergonha do que você está representando.
Ele conseguiu o que queria, ele mexeu com a minha emoção e, infelizmente, não consegui me manter apenas com a razão. Imediatamente, o meu corpo começou a tremer com o misto de sentimentos de raiva e tristeza.
O setor já estava barulhento com os burburinhos das pessoas comentando aquela confusão que o Otávio havia começado quando invadiu a minha sala. Eu precisava dar um basta a tudo aquilo, pois ele só iria parar quando me visse fraquejar.
Levantei da cadeira com um pulo e fixei os olhos nos dele e falei com um tom de voz baixo, porém, ríspido:
— Você acha mesmo que vou autorizar demitir uma mulher que executa bem o trabalho, uma boa funcionária, simplesmente porque não aceitou sair com você? — Respirei fundo e percebi que meu corpo tremia muito mais do que eu podia controlar. — A Beatriz é maravilhosa no que faz e não tenho nenhum motivo para demiti-la, agora você? Você entrou na minha sala sem pedir, gritando comigo e me ofendendo, você sim me dá motivos para demissão! E não sei se você está lembrando, mas vou te lembrar de que este shopping era do meu pai, então TUDO — eu falei ainda mais alto para que todos do setor escutassem —, TUDO que está aqui é meu e eu faço o que eu quiser, inclusive, te demitir, pois seu cargo está muito abaixo do meu. Percebo que não está realizando o seu trabalho direito, pois não consegue notar o período difícil financeiro que nosso país está passando. E vou te lembrar também que você só está aqui porque a minha mãe pediu muito para te deixar trabalhar, para manter a imagem de família perfeita que ela criou, apenas por isso, seu i****a, jamais foi por merecimento ou competência.
Eu finalizei com os olhos arregalados fixos nos olhos azuis dele, que se misturavam com a nuvem vermelha de ódio. Ele ficou calado por alguns segundos, tentando conter a respiração ofegante com ritmo acelerado. Ele sabia que se eu quisesse, o colocaria na rua em segundos, ele sabia que o que falei era pura verdade e, por isso, ele se conteve e percebi o vermelho dos olhos começando a ceder.
— Eu ainda te tiro daí, sua v***a! Se prepare que seus dias estão contados nessa cadeira! — ele sussurrou com ironia.
Ele virou as costas para mim, se dirigindo à porta e eu me enfureci com o desrespeito dele. Nossa convivência nunca foi pacífica na vida pessoal, mas no trabalho havia respeito e eu não poderia tolerar aquele desrespeito, principalmente como profissional.
— Está demitido por justa causa, Otávio Barbosa. Retire-se da minha sala agora e nunca mais apareça aqui — gritei antes que ele saísse da sala.
Ele voltou rapidamente em minha direção. Sua reação irônica não me espantou, ele voltou a ser o Otávio de duas caras.
— O que é seu, está guardado, v***a. Suas escolhas, suas consequências! — finalizou soltando um beijo no ar.
Ele era um covarde, sempre me ameaçava e agia escondido, sempre se fazia de vítima e não seria diferente hoje. Eu sabia que tudo aquilo não era referente apenas ao profissional, ele queria demitir ou admitir, aquele show de horrores era só o estopim de uma vida de ódio e rancor que tinha por mim. Algo que nunca consegui entender e hoje eu resolvi colocar um ponto final.
Antes que eu pudesse falar algo em minha defesa, o Messias e a mamãe entraram na minha sala repentinamente, como um furacão, fechando a porta com uma batida grave.
— Chamem os seguranças, acabei de ser ameaçada por esse i*****l, metido à bosta e que adora gastar o que não é dele. Mãe, eu vou logo dizendo, desta vez não volto atrás na minha decisão — gritei.
Minha mãe se aproximou de nós, que estávamos em pé de frente um para o outro e separados pela mesa em postura de briga. Nossos corpos estavam prontos para um confronto, há tempos eu queria acertar a cara daquele canalha e hoje, quando ele falou do meu pai, foi o estopim.
— O que está acontecendo aqui? Fomos chamados às pressas, disseram que vocês estavam brigando — a minha mãe perguntou com a voz trêmula.
O Messias, que sempre estava na cola na mamãe e fazia de tudo para dar razão ao seu filho, foi logo se adiantando:
— Que desnecessário, Milena, o Otávio me falou que você o desautorizou aqui no “shopping”. Como você pôde ser capaz disso? Depois de tudo que fizemos por você, deveria ser agradecida e não o humilhar desta forma, todos no “shopping” estão falando dessa confusão que você está fazendo!
Eu odiava aquele homem que estimulava o vício da minha mãe como garantia de se manter na família. Ele a controlava diariamente, para se certificar de que ela não se interessaria por outra pessoa e à noite dopava a minha mãe com os muitos remédios que ela era viciada, em seguida saía para beber com os "amigos" e jogar baralho. Mas, na verdade, ele saía para encontrar a Eudora, sua assistente administrativa, a qual ele tinha um caso há muitos anos.
Eu já havia aprendido a ignorar as colocações do Messias, então coloquei em prática as minhas terapias e o ignorei.
— Mãe, a decisão já foi tomada. Desta vez, eu não vou ceder — falei para minha mãe.
Minha mãe colocou a mão no rosto e começou a chorar, o Messias a abraçou por trás, mantendo o contato visual comigo, que observava a cena asquerosa com muito m*l-estar.
— Olha só o que está fazendo com sua mãe! — Messias falou, a beijando no rosto. — Eu te disse, minha flor, eu te disse que essa menina era uma m*l-agradecida. Era para você a ter despachado para o interior, para ser cuidada pelos tios no meio do mato, sem estudo, sem educação, sem conforto. Só assim não teríamos esse desgosto.
O Otávio também abraçou minha mãe, a consolando, e eu fiquei olhando aquela cena patética, mas que era a realidade da minha vida desde que eles entraram para minha família. O Messias passou minha adolescência e infância ameaçando de me mandar para o interior para ser cuidada pelos meus tios e abrir um processo para que a herança fosse assumida por minha mãe, por integridade, porém, todos os advogados da cidade falavam que era inútil a tentativa de me tirar o shopping. Eles falavam que ou a minha mãe cuidava de mim ou ela perderia todo o dinheiro do meu pai. Apesar de tantos esforços do Messias, minha mãe nunca permitiu que nos separassem e, apesar de tudo, sempre fez o possível para me dar amor e apoio. Eu a amava e vendo-a sofrer daquela forma, senti meu coração amolecer. Éramos diferentes, mas sempre existiu muito amor entre nós duas. Então como defesa, eu falei com a voz agora trêmula, que queria ceder para um choro:
— m*l-agradecida? O que eu preciso agradecer? Vocês hoje têm todo o conforto, porque o meu pai deixou isso aqui — apontei para a sala —, porque vocês usam e abusam do dinheiro que não é de vocês. — Coloquei a mão na cintura e olhei para cima, contendo o choro. — Mãe, o que você vê nesse cara? É inacreditável que ainda esteja casada com ele — finalizei, balançando a minha cabeça negativamente.
A minha mãe balançava a cabeça com sinal negativo e continuava a chorar sem controle, ela era fraca e completamente manipulada pelo Messias.
— Fui seu pai todos esses anos, fiz de tudo por você, te eduquei, e ainda te salvamos daquele sequestro, você está lembrada disso? Se não fosse a gente, hoje você estaria morta! — Messias respondeu.
Ele era habilidoso nas palavras e adorava reverter à situação a seu favor. Ele nunca havia sido meu pai, nunca tinha se comportado com o mínimo de empatia por mim, eu era apenas aturada por ele. E o sequestro? Como se eu pudesse esquecer que fui sequestrada! O Messias estava praticando sua corrida quando me encontrou e a sua participação na minha liberdade, foi ter me encontrado apavorada andando no caminho de casa, pois o sequestrador havia me libertado próximo à minha casa, desacordada.
Eu o ignorei novamente e o tirei do meu campo de visão para manter o contato visual apenas com minha mãe.
— Mãe, ou ele — apontei para o Otávio — ou eu! E te digo uma coisa, se o escolher, se prepare para uma ação judicial grande aqui neste “shopping” — falei determinada.
Minha mãe era fraca, mas não era boba e sabia que eu estava falando sério. Se eu cumprisse o combinado, ela corria o sério risco de perder boa parte do dinheiro que sustentava o seu vício e seus luxos.
— Você faz o que quiser, Milena, já tem idade para assumir a sua herança. Estou apenas querendo viver em paz. Você prefere demitir seu irmão, em vez de demitir uma funcionária que se desfez dele? Qualquer pessoa conseguirá exercer o papel daquela mulher. Fiz e faço tudo por você, minha filha; te ensinei a ser a mulher que és, não faça isso comigo…
Eu a interrompi e fixei o olhar nos olhos azuis dela, que estavam tomados pelas lágrimas que desciam sem controle por seu rosto e falei, com determinação:
— O nome dela é Beatriz, e seu querido filho queria demiti-la porque ela não aceitou sair com ele. Vou deixar bem claro para você, que nunca conseguiu entender, mãe, ele não é meu irmão, o seu marido não é meu pai. Sobre minha criação por você, passaria horas aqui falando o que acho e como várias vezes me senti rejeitada, mas não posso, porque eu preciso trabalhar e continuar mantendo o que o meu pai me confiou. Acho que não foi à toa a determinação do testamento. — Respirei fundo e continuei, ainda mais ríspida: — Essa conversa acabou e eu preciso trabalhar. Não vou perder mais tempo, esse i*****l armou essa cena patética para demitir uma profissional experiente, boa e prestativa para colocar no lugar uma pessoa que nunca trabalhou na área e que pelo pouco que tem no currículo, estudou com ele na faculdade. Posso até apostar que ela esteja dormindo com ele para conseguir o cargo. A conversa acabou, por favor, se retirem da minha sala.
Eu me sentei quase como um desabamento, pois eu me sentia fraca e sem controle do meu corpo. O Otávio gritou com os dedos rígidos em minha direção e podia apostar que se ainda estivesse de pé, entraríamos numa briga corporal:
— Olha como você fala da Lídia, a v***a aqui é você!
Eu gritei com o restante de forças que tinha e desta vez tinha certeza de que mesmo com a porta fechada, todos do escritório escutaram:
— Vão embora daqui e me deixem em paz! Já falei o meu veredito! Eu preciso trabalhar!
A minha mãe começou chorar de soluçar e observando àquela cena que partia o meu coração, decidi baixar a minha cabeça para não perder a coragem que havia invadido o meu coração naqueles minutos. Sentei na minha cadeira e comecei a mexer nos papéis que estavam na mesa de forma aleatória. Eles viram que eu os ignorava e saíram lentamente da minha sala. Antes que eles fechassem a porta, eu falei com um tom grave, sem olhar na direção da porta:
— A demissão inclui também a quebra de contrato com a suas três lojas no “shopping”, Otávio.
Eu não olhei para eles, mas não pude deixar de ouvir o choro da minha mãe, que agora estava mais estridente. Eles fecharam a porta e eu finalmente pude desabar em meus verdadeiros sentimentos, chorando sem nenhum controle.