Setembro de 2017,
Savannah, Geórgia
Fechei os meus olhos depois de acordar e eu o vi ao longe, eu sempre o vejo parado, sorrindo e em paz, a paz que eu nunca tive: o menino dos cabelos encaracolados, com sua bola sempre ao lado camiseta desbotada e pés descalços, na grama verde, tão verde quanto os olhos dele:
- Você promete, Austin? – eu pergunto olhando fixamente dentro dos seus olhos.
- Eu prometo, Ellie – e ela quase consegue ouvir de verdade o som da voz dele ecoando no quarto quando acorda.
Olho ao redor: dormi com a luz acesa de novo. Provavelmente a minha avó também caiu no sono e nem mesmo percebeu isso. Estava atrasada, provavelmente... Eu olho para o telefone: cinco e trinta e cinco. Precisava comer, tomar banho e voltar ao hospital, pegaria o turno das vinte horas para cobrir uma colega que fora viajar em lua de mel.
- Ellie – a avó grita ao ouvir barulho no quarto – acordou, querida?
- Sim, vovó – respondo abrindo a porta – acho que preciso eu de um banho...
- E comida de verdade – ela diz – vou preparar o jantar.
Desde que eu havia perdido a mamãe, a minha avó era quem cuidava de mim – e cuidava bem demais. O meu pai sempre foi ausente, não sei dizer exatamente quanto tempo faz que eu não o vejo, algo entre seis meses e dez meses? Como eu pude me acostumar com a ausência dele de um jeito tão fácil? Como eu me acostumei com a falta da mamãe?
Pensando sobre isso e sobre o meu sonho persistente, tomei um banho rápido e fui aproveitar o jantar e a companhia da minha avó, e aquela sopa de ervilhas com bacon era a coisa que eu mais precisava na vida antes de encarar outro turno enlouquecedor no hospital, e agora que eu havia sido promovida, eu sabia que a minha responsabilidade aumentava exponencialmente, bem como o meu stress.
- Precisa dormir mais – vovó disse assim que entrei bocejando, eu já vestia calças brancas e uma camisa tão branca quanto ela, sobrepunha uma jaqueta jeans preta cheia de rebites e correntes, que faziam vovó torcer o nariz – precisa se vestir como uma menina, querida...
- Vovó, eu não sou mais uma menina – eu ri – sou uma mulher adulta, de vinte e seis anos... – aquilo fez meu estômago dar um nó – com um emprego e uma carreira, não vão ser spykes e correntes que diminuirão minha qualificação.
- Eu sei – ela sorri – mas aquela moto... – ela referia-se a uma Honda Shadow 750cc que eu usava normalmente para ir trabalhar – aquilo não me parece adequado.
- Vovó – eu a beijei – eu amo você, e pensei... Quero plantar petúnias no túmulo da mamãe.
- Eu também amo você, minha querida – ela sorri – elas não vão durar muito, vai esfriar...
- Ainda assim – eu suspiro – eram as preferidas dela, acho que ela gostaria.
- Então serão petúnias – vovó diz emocionada – eu vou providenciar amanhã cedo.
- E eu estarei aqui assim que acabar o meu turno – respondo tomando a sopa.
Eu amo minha avó, Norah é, de longe, a melhor pessoa que eu conheço nessa vida, a pessoa que me amou e me cuidou, que aguentou todos os meus surtos na adolescência, todas as minhas inseguranças... E ela fez tudo isso, com o coração tão partido quanto o meu, pois se eu havia perdido a minha mãe, ela havia perdido a sua única filha.
Éramos eu e a vovó contra o mundo, desde o trágico setembro de 2005: eu e vovó dividíamos os turnos no hospital, desde que nós havíamos voltado do Gran Canyon, entre as sessões de quimioterapia e radioterapia, em algum momento, ela havia pego uma pneumonia. Algo grave, para quem está saudável, e gravíssimo para quem está debilitado. Ela nunca se recuperou de verdade e em 16 de setembro de 2005, perto das seis da tarde, enquanto cantávamos uma das nossas músicas favoritas, Wake me up When september ends, ela nos deixou. E eu sabia que ela descansaria em paz, que todos os tratamentos estavam sendo muito, muito pesados para ela e que no fim, seria crueldade e egoísmo querer mantê-la conosco, sendo que isso estava sendo tão custoso à ela, sabendo que ela não queria sofrer em um Hospital.
Enterrei a minha mãe apenas com a vovó. O meu pai não apareceu e eu nunca o perdoei por isso. Se já tínhamos uma relação r**m, depois desse momento, quebramos essa linha imaginária, de onde o meu pai era ausente por ser um herói americano, ele era ausente porque escolhia e havia me deixado sozinha no pior momento da minha vida.
Muito disso, me fez ser quem eu sou, médica oncologista, formada em Harvard, graduada com láureas, especializada e muito, muito dedicada e empenhada. Atuando há dois anos no hospital de Savannah, onde eu vivi minha vida toda e voltei assim que eu pude... E agora eu estava ali, às vésperas do aniversário de falecimento da minha mãe, pensando em uma coisa que acontecera há vinte anos atrás.
- Está pensando no que aí, menina? – perguntou vovó recolhendo os pratos da mesa.
- Em um sonho – eu digo – no mesmo sonho...
- O menino do Gran Canyon? – ela sorri.
- O menino dos cabelos encaracolados – eu respondo – eu sempre sonho com ele dizendo “eu prometo, Ellie” – digo sorrindo, que coisa boba.
- É porque seu coração ainda espera que ele cumpra a promessa, Ellie – diz a vovó.
- Que seja – ela deu ombros – mudamos de endereço tantas vezes que eu... – suspiro – nem que ele quisesse me encontraria depois de tanto tempo.
- Isso é verdade – disse minha avó.
- Preciso ir – suspiro – vou me atrasar se eu não sair agora.
- Então vá – ela me faz cócegas – não quero saber de você correndo naquela moto.
E assim eu sai: sete e trinta e dois, cortando o silêncio de uma noite que seria fria e longa nos corredores brancos e claros do hospital. Eu amava a minha carreira, mas detestava os plantões noturnos. Levei um dos meus livros e eu iPod para essa missão, normalmente, eu passava a noite lá e não dava entrada nenhum único paciente oncológico, e eu só era requisitada para clinica geral no caso dos outros plantonistas estarem ocupados... Em Savannah, isso não era muito frequente.