Uma rotina pesada

1092 Words
Savannah, Georgia Abril de 2018                 O despertador toca. Ellie encara o teto por alguns segundos antes de ter coragem de se mexer: dezoito horas de plantão, quatro horas de folga e agora, precisava voltar ao hospital para a liberação de alguns pacientes. Quando havia escolhido a medicina, sabia que teria dias assim, só não sabia que às vezes, eles viriam em sequência e  agora, quase quatro meses depois de suas férias, Ellie estava em meio à uma rotina pesada.  - Oi – Ellie diz bocejando enquanto a avó a encara em reprovação – tudo bem? - Dormindo muito pouco – a avó resmunga, nos últimos dias ela tem andando um tanto ácida e Ellie sabe o motivo: Thom. Norah sempre dissera que acabaria m*l, e bem, não tinha acabado, ela simplesmente deixara de responder as mensagens e atender as ligações dele – precisa se cuidar – a avó diz. - Sim – ela boceja novamente – eu tenho dois dias de folga, vou colocar meu sono em dia. - Se você diz... – resmunga Norah.                 Ellie sabe que no fundo, a avó tem razão para a preocupação e também para o mau humor. Ignorar Thom e o problema em si, não eram bem uma solução, só provava que ela realmente costumava “deixar de lado” todas as coisas com as quais não podia lidar e isso era uma coisa da qual o seu pai, Patrick, sempre acusava, dizendo que ela era “mais parecia com ele do que pensava” e sim, essa coisa de deixar de lado era totalmente dele.                 Pilotou a moto até o hospital. Dez da noite, corredores quase vazios. O som distante das sirenes das ambulâncias no térreo: ela estava em sua sala, decimo segundo andar... - Oi – Matthew invadia a sua sala com uma extensa pilha de prontuários – acho que alguém precisa dormir... - Café – ela resmunga e tenta sorrir – acho que eu preciso de café. - Por que está cobrindo Donna? – ele pergunta. - Ela precisou levar as crianças para a casa do pai, esse divórcio dela está me matando – ela revira os olhos – enfim, a sentença deve sair antes do fim do mês, acho que eu vou estar feliz. - Sim – Matthew riu – no casamento estávamos felizes e bêbados, e agora estaremos felizes e exaustos – ele suspira – e a Anne? – ele questiona sobre a cardiologista do plantão. - Não sei – Ellie responde – cheguei agora e não passei por ela. Pode ser uma emergência? - Pode – ele suspira – podia verificar com a Sam se ela está lá embaixo? - Claro – ela responde e o enfermeiro afunda-se na cadeira em frente à ela enquanto ela digita freneticamente no celular. - Thom me chamou mais cedo – ele boceja – perguntando de você. - Uhmm – ela finge desinteresse. - Eu sei que estavam saindo – Matthew diz – quem estava organizando os horários? – ele ri. - Ah – ela parece desconfortável – não sabia... - Não julgo – ele suspira – mas uma parte de você deveria saber... - Sim – ela ri – acho que eu todinha, eu sempre soube. - Tudo bem – ele sorri com bondade – ele está arrependido, acho que de verdade. - Não – responde Ellie – ele engana bem, mas não está arrependido, acho que ele sempre deixou bem claras as intenções dele comigo. - Sim – Matt responde – deixou, mas ele está arrependido. Acho que quem sabe, poderiam conversar. - Talvez – ela responde e encara a tela do celular – sim, Anne está lá embaixo, deve subir em uns quinze minutos – Ellie solta o celular sobre a bancada – vou pensar a respeito.                 Matthew sai e ela começa o extenso e chato trabalho burocrático de avaliar prontuários e preencher relatórios. Até Sam entrar em sua sala como um furacão – ela tinha esse dom. - Boa noite, maravilhosa – ela solta dois grandes copos de café sobre a mesa – peguei la embaixo, é melhor – ela ri e tira os sapatos, esticando os dedos e alongando-se – acho que eu estou morrendo aos poucos. - Obrigada – Ellie agradece o café – estamos todos morrendo aos poucos. - O que decidiu? – Sam pergunta: é uma das poucas amigas de Ellie, talvez, a única. Desde o ensino médio, as duas decidiram juntas pela medicina, estudaram juntas, vibraram juntas e se decepcionaram também, e no fim, Ellie decidiu pela oncologia e a amiga, pela emergência. - Sobre o que? – Ellie se faz de desentendida. - Thom – responde a outra. - Não decidi – ela suspira – não quero falar com ele. - Não pode evitar isso para sempre... - Acho que eu posso sim – Ellie ri. - Acho que devia sair com outros caras – Sam diz sem rodeios – ele vai pirar de ciúmes quando souber. - Não quero fazer ciúmes em ninguém – Ellie diz. - Claro que quer – Sam ri – quer fazer esse homem sofrer, precisa disso. - Não, eu não preciso – Ellie ri.                 As duas conversam por mais um tempo, até Ellie acabar com os relatórios e começar sua peregrinação para ver todos os seus pacientes. Sam volta ao térreo, para a emergência. A madrugada passa no silêncio mortal do hospital... “Precisa ter mais cuidado – o menino limpa delicadamente o rosto dela – ai, vai ficar uma cicatriz f**a aqui, hein – ele aperta-lhe o nariz com delicadeza fazendo-a rir – não fica triste, não, vai ser a única menina com uma cicatriz em forma de raio debaixo do queixo... Vai te tornar especial, mais especial do que você já é, Ellie – o menino agora sorri para ela, os olhos brilhantes e os cabelos encaracolados – vem, vem comigo... Mamãe está fazendo chocolate quente – ela quase pode sentir o cheiro de grama molhada e chocolate quente...”                 Ellie acorda assustada em sua cadeira, alguém está batendo à sua porta, outra emergência. Se recompõe e sai andando pelo corredor: sonhara com Austin e o acampamento novamente. Ela toca a parte embaixo do queixo, ficara realmente uma pequena cicatriz, era sensível e ela ri quando pensa na frase que ele usara “mais especial do que você já é, Ellie” – ela sorri e tenta se lembrar, como foi que se machucou? Por quê se sempre se lembra de Austin cuidando dela e do machucado, mas nunca do acidente que lhe causara a cicatriz? 
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