Savannah, Georgia
Abril de 2018
O despertador toca. Ellie encara o teto por alguns segundos antes de ter coragem de se mexer: dezoito horas de plantão, quatro horas de folga e agora, precisava voltar ao hospital para a liberação de alguns pacientes. Quando havia escolhido a medicina, sabia que teria dias assim, só não sabia que às vezes, eles viriam em sequência e agora, quase quatro meses depois de suas férias, Ellie estava em meio à uma rotina pesada.
- Oi – Ellie diz bocejando enquanto a avó a encara em reprovação – tudo bem?
- Dormindo muito pouco – a avó resmunga, nos últimos dias ela tem andando um tanto ácida e Ellie sabe o motivo: Thom. Norah sempre dissera que acabaria m*l, e bem, não tinha acabado, ela simplesmente deixara de responder as mensagens e atender as ligações dele – precisa se cuidar – a avó diz.
- Sim – ela boceja novamente – eu tenho dois dias de folga, vou colocar meu sono em dia.
- Se você diz... – resmunga Norah.
Ellie sabe que no fundo, a avó tem razão para a preocupação e também para o mau humor. Ignorar Thom e o problema em si, não eram bem uma solução, só provava que ela realmente costumava “deixar de lado” todas as coisas com as quais não podia lidar e isso era uma coisa da qual o seu pai, Patrick, sempre acusava, dizendo que ela era “mais parecia com ele do que pensava” e sim, essa coisa de deixar de lado era totalmente dele.
Pilotou a moto até o hospital. Dez da noite, corredores quase vazios. O som distante das sirenes das ambulâncias no térreo: ela estava em sua sala, decimo segundo andar...
- Oi – Matthew invadia a sua sala com uma extensa pilha de prontuários – acho que alguém precisa dormir...
- Café – ela resmunga e tenta sorrir – acho que eu preciso de café.
- Por que está cobrindo Donna? – ele pergunta.
- Ela precisou levar as crianças para a casa do pai, esse divórcio dela está me matando – ela revira os olhos – enfim, a sentença deve sair antes do fim do mês, acho que eu vou estar feliz.
- Sim – Matthew riu – no casamento estávamos felizes e bêbados, e agora estaremos felizes e exaustos – ele suspira – e a Anne? – ele questiona sobre a cardiologista do plantão.
- Não sei – Ellie responde – cheguei agora e não passei por ela. Pode ser uma emergência?
- Pode – ele suspira – podia verificar com a Sam se ela está lá embaixo?
- Claro – ela responde e o enfermeiro afunda-se na cadeira em frente à ela enquanto ela digita freneticamente no celular.
- Thom me chamou mais cedo – ele boceja – perguntando de você.
- Uhmm – ela finge desinteresse.
- Eu sei que estavam saindo – Matthew diz – quem estava organizando os horários? – ele ri.
- Ah – ela parece desconfortável – não sabia...
- Não julgo – ele suspira – mas uma parte de você deveria saber...
- Sim – ela ri – acho que eu todinha, eu sempre soube.
- Tudo bem – ele sorri com bondade – ele está arrependido, acho que de verdade.
- Não – responde Ellie – ele engana bem, mas não está arrependido, acho que ele sempre deixou bem claras as intenções dele comigo.
- Sim – Matt responde – deixou, mas ele está arrependido. Acho que quem sabe, poderiam conversar.
- Talvez – ela responde e encara a tela do celular – sim, Anne está lá embaixo, deve subir em uns quinze minutos – Ellie solta o celular sobre a bancada – vou pensar a respeito.
Matthew sai e ela começa o extenso e chato trabalho burocrático de avaliar prontuários e preencher relatórios. Até Sam entrar em sua sala como um furacão – ela tinha esse dom.
- Boa noite, maravilhosa – ela solta dois grandes copos de café sobre a mesa – peguei la embaixo, é melhor – ela ri e tira os sapatos, esticando os dedos e alongando-se – acho que eu estou morrendo aos poucos.
- Obrigada – Ellie agradece o café – estamos todos morrendo aos poucos.
- O que decidiu? – Sam pergunta: é uma das poucas amigas de Ellie, talvez, a única. Desde o ensino médio, as duas decidiram juntas pela medicina, estudaram juntas, vibraram juntas e se decepcionaram também, e no fim, Ellie decidiu pela oncologia e a amiga, pela emergência.
- Sobre o que? – Ellie se faz de desentendida.
- Thom – responde a outra.
- Não decidi – ela suspira – não quero falar com ele.
- Não pode evitar isso para sempre...
- Acho que eu posso sim – Ellie ri.
- Acho que devia sair com outros caras – Sam diz sem rodeios – ele vai pirar de ciúmes quando souber.
- Não quero fazer ciúmes em ninguém – Ellie diz.
- Claro que quer – Sam ri – quer fazer esse homem sofrer, precisa disso.
- Não, eu não preciso – Ellie ri.
As duas conversam por mais um tempo, até Ellie acabar com os relatórios e começar sua peregrinação para ver todos os seus pacientes. Sam volta ao térreo, para a emergência. A madrugada passa no silêncio mortal do hospital...
“Precisa ter mais cuidado – o menino limpa delicadamente o rosto dela – ai, vai ficar uma cicatriz f**a aqui, hein – ele aperta-lhe o nariz com delicadeza fazendo-a rir – não fica triste, não, vai ser a única menina com uma cicatriz em forma de raio debaixo do queixo... Vai te tornar especial, mais especial do que você já é, Ellie – o menino agora sorri para ela, os olhos brilhantes e os cabelos encaracolados – vem, vem comigo... Mamãe está fazendo chocolate quente – ela quase pode sentir o cheiro de grama molhada e chocolate quente...”
Ellie acorda assustada em sua cadeira, alguém está batendo à sua porta, outra emergência. Se recompõe e sai andando pelo corredor: sonhara com Austin e o acampamento novamente. Ela toca a parte embaixo do queixo, ficara realmente uma pequena cicatriz, era sensível e ela ri quando pensa na frase que ele usara “mais especial do que você já é, Ellie” – ela sorri e tenta se lembrar, como foi que se machucou? Por quê se sempre se lembra de Austin cuidando dela e do machucado, mas nunca do acidente que lhe causara a cicatriz?