- Andy narrando:
Pulo da cama quando percebo que não tem mais ninguém no quarto dos médicos e puxo o meu jaleco do gancho, passando os meus braços por ele para vesti-lo. Pego o meu pager e o celular em cima da cama de solteiro, enfio os dois no meu pijama, um em cada bolso, e saio do quarto ajeitando meu r**o de cavalo depois de calças os crocs.
— Sullivan está uma fera. — ouço Patrick, um dos médicos que trabalham no CTI3 comigo, comentar com James.
— O que aconteceu? — pergunto, curiosa, me mantendo afastada, pois ainda nem escovei os dentes desde que acordei, e repetindo mentalmente: Por favor, que alguém tenha faltado! Por favor, que alguém tenha faltado!
— A urgência está desfalcada... — BINGO! Não espero ele terminar. Caminho apressada em direção a saída do CTI e aceno para Patrick por cima da minha cabeça quando escuto ele e James chamando o meu nome.
Sei o que eles querem, principalmente, James. Ele acha que estou há tempo demais no hospital. Acha que passo tempo demais no hospital. Pelo amor de Deus! Só faz 48 horas que estou de plantão, já tive semanas piores.
Dou duas batidas na porta do meu chefe e entro sem esperar sua resposta. Estou ofegante quando entro na sala dele e Sullivan ergue os olhos, arregalados, na minha direção.
— Posso ficar na urgência. — digo depois de tomar um longo fôlego.
— Não quero que você fique na urgência, Andy.
Eu entro na sua sala e me sento em uma das cadeiras a frente da sua mesa de escritório.
— Sei que está precisando...
— Não de você. — me interrompe, m*l-humorado.
— Conseguiu alguém?
— Você sabe que não. — ele se recosta em sua poltrona e entrelaça os dedos na frente da sua barriga saliente. Eu mostro as minhas palmas e sorrio.
— Eu estou bem aqui. — mostro mais os meus dentes.
Ele se levanta e parece entediado quando se volta para mim mais uma vez.
— Você não pode fazer 60 horas de plantão, Andy. É ilegal! — desvio o meu olhar rapidamente e volto a encará-lo.
— Não será se o governo não souber que estou aqui. Tudo o que tenho que fazer é não bater o ponto.
— Patrick fará o plantão, Andy. Vá para casa, vá viver! — ele caminha até a porta e a abre, indicando que devo sair, mas eu não vou desistir.
— Patrick tem família, Sullivan. Tem um bebê de meses! — giro na cadeira para olhar para ele, mas não me levanto. — Eu não. Meu filho é Northwestern Memorial Chicago, é por ele que eu vivo.
Sullivan bufa. Ele foi derrotado, eu sei. O venci pelo cansaço e todos ficaremos felizes. Ele terá alguém para cobrir a falta na urgência, Patrick poderá ir para casa ficar com a sua família e eu vou continuar fazendo o que eu gosto.
— Tome, pelo menos, um banho antes de trocar de setor. — ele aponta para fora mais uma vez.
Dou um pulo da cadeira e um longo beijo em sua bochecha rechonchuda quando paro na sua frente. Estou pouco me lixando se ainda não escovei os dentes!
— Você é o melhor chefe que existe.
— Tá, tá, tá! Vai logo.
Saio, praticamente, enxotada da sua sala e corro até o CTI3, mas esbarro com James assim que abro a porta dupla.
— Você vai ficar não é? — passo por ele, apressada, e me viro, caminhando de costas para olhar para ele. — Você vai morrer de estafa, Andy!
Ele grita segundos antes de eu entrar no quarto dos médicos. Pego um pijama extra no meu armário, assim como uma calcinha e meias limpas. Tiro minha necessaire de produtos de higiene pessoal do armário e meu secador de cabelo.
Tomo um dos banhos mais rápidos que já tomei na minha vida e seco o meu cabelo no secador quando termino. Não posso trabalhar de cabelo solto, mas também não gosto de prendê-lo molhado. Nunca fui muito vaidosa, mas tenho muita estima pelo meu longo cabelo castanho escuro.
Guardo tudo no armário quando volto para o quarto e fecho a porta do armário, o travando com a minha senha de quatro dígitos.
A urgência fica no primeiro andar e isso me faz descer correndo três andares de escada. Já estou atrasada o suficiente e não preciso me atrasar mais esperando o bendito elevador.
Quando chego a sala de urgência uma equipe passa correndo por mim enquanto empurra uma maca. Eu vou atrás deles e entramos no box 1 da emergência do Northwestern Memorial Chicago.
— O que temos aqui? — pergunto assim que entro. Uma técnica de enfermagem me entrega um par de luvas e um avental descartável. A agradeço com um sorriso.
— Homem branco, mais ou menos 30 anos, encontrado na esquina da Pearson com a Dewitt. Colisão de moto com anteparo fixo. — o residente me responde. Sei que ele é residente, pois o pijama deles é azul-claro e o nosso, dos médicos do hospital, é azul-marinho.
— Ele estava de capacete? — pergunto ao paramédico que o socorreu e que ainda segura a bolsa respiratória acoplada ao tubo grosso enfiado na boca do paciente enquanto examino o peito do garoto. No momento ele não está de capacete e isso me preocupa.
— O capacete foi arrancado com a violência do choque.
— Chame a neurologia. — peço ao residente e ele sai correndo da sala como se tivesse visto o d***o.
Me aproximo do garoto. Seu rosto está muito machucado, inchado, e coberto de sangue. Ele tem uma atadura suja de sangue enrolada na cabeça e está intubado. O colar cervical foi perfeitamente instalado para preservar sua coluna cervical e ele já chegou ao hospital estabilizado, mas provavelmente em estado grave.
Percebo a movimentação na sala, nesse momento sei que chegaram mais enfermeiros e o fisioterapeuta, mas não consigo me desligar do rosto do garoto. Mesmo desfigurado, é como se eu o conhecesse de algum lugar. Como se seu rosto fosse familiar.
Impossível!
Eu não conheço pessoas fora do hospital, não tenho amigos, nunca namorei sério... impossível eu conhecer o garoto de algum lugar. Se ele tivesse estudado comigo na faculdade eu me lembraria, com certeza.
Pego a lanterna na bandeja perto de mim e a seguro na mão direita. Com a outra mão afasto suas pálpebras e abro seu olho esquerdo. Sua íris castanho claro acerta a minha alma quando devolve o olhar e puxo a minha mão rápido quando vejo que sua pupila não se retraiu com a luminosidade da lanterna.
Isso não é um bom sinal, ela devia ter contraído.
Fico encarando o rosto do garoto quando uma angústia toma conta de mim e eu nunca me senti assim antes. Eu não o conheço e já perdi muitos pacientes vítimas de trauma, mas isso nunca mexeu tanto comigo. Alguém nunca mexeu tanto comigo.
Testo sua outra pupila e ela se retrai, minimamente, com a luz da lanterna. Graças a Deus!
— Andy? — sinto uma mão no meu ombro e pulo sobressaltada, pois, por um momento, achei que estava sozinha com o paciente no box. — Precisamos levá-lo para a tomografia.
Me afasto da maca com as palavras do neurologista e deixo que a equipe puxe a maca com o paciente para fora da sala.
Fico parada no meio do box sem saber o que fazer. Fecho os meus olhos e vejo os olhos castanhos do desconhecido focados em mim. Suspiro e ponho a mão no centro do meu peito, bem em cima do meu coração, quando sinto uma vontade imensa e repentina de chorar.
Esse garoto precisa viver.
Isso é tudo o que eu consigo pensar.
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