Capitulo 3

4903 Words
Os dias estão passando rapidamente com o meu novo trabalho. Chego cedo à escola e volto tarde da noite, exausta. Eu praticamente não consegui ver meu pai nesses dias corridos de muito aprendizado. Minha mãe que me mantém informada sobre as condições do meu pai, que infelizmente continua em coma. Não tem sido fácil pegar um bonde andando e aprender a dinâmica da professora Vera que é coordenadora atual. Por mais que eu passe a semana grudada nela aprendendo os cronogramas dos professores, conteúdos que estão passando para os alunos, conhecendo alguns pais, ainda assim, parece tudo uma missão impossível. Busquei informações sobre o Descomplicando, mas o projeto é guardado a sete chaves pelo Tomaz e coordenado pelo Pedro. Aos poucos, eu conseguirei as informações necessárias, mas tudo precisa ser lento para não levantar suspeita das minhas investigações. Por enquanto, todos pensam que eu estou aqui pelo salário, não que seja mentira, mas não é um motivo exclusivo, muito menos predominante. Almoço todos os dias com o Theo e a Laura, que me fazem sorrir com suas brincadeiras e conversas descontraídas. Trocamos redes sociais e a esta altura já curtimos até as fotos um do outro e confesso que andei vasculhando mais do que o necessário as fotos do Theo e não deixei de reparar que havia uma loira de olhos azuis linda em algumas fotos. A Laura sempre consegue me tirar muitas gargalhadas com suas conversas que mesclam coisas sérias com algo nada a ver com o contexto, como, por exemplo, sexo. Como ela consegue falar de tanta coisa diferente ao mesmo tempo e sem nenhuma conexão? Não tenho ideia, só sei que o jeitinho peculiar dela é bem divertido e me faz muito bem. Quase não vejo os meus sobrinhos acordados e quando estão acordados, ou estão prestes a dormir ou prestes a irem à escola que não é a mesma onde trabalho, pois segundo a Laura, houve um atrito entre o Leo e o Tomaz, em uma das vezes que o Leo foi buscar as crianças na escola. É sexta-feira e eu estou exausta analisando as diversas planilhas que a Vera me passou, pois segunda-feira ela entrará de licença maternidade e eu precisarei comandar sozinha o ensino médio, sem contar que teremos uma reunião com os professores para me apresentar formalmente como nova coordenadora e falar sobre uma feira de ciências e jogos escolares que a escola está organizando para o fim do ano. A Laura entra na sala repentinamente e fala: — É o seguinte, organizei um happy hour agora para comemorar sua contratação. Ela mostra minha carteira de trabalho, começa a dançar animada e de uma forma bem engraçada. Ela fala, cantarolando: — A mais nova contratada do colégio Evolução! Ela continua dançando e cantarolando. Eu sorrio e pergunto: — Você é sempre assim? — Só quando estou muito feliz! Agora vamos? — Vamos para onde? — O bar da esquina!! Hoje é dia dos universitários gatos irem para lá e estou doida para dormir fora de casa! Enjoei da minha cama! Gargalhamos e eu respondo: — Então, eu tinha outros planos e... Ela me interrompe: — Sem chances! Todo mundo já confirmou. Eu respondo, assustada: — Todo mundo quem? Sem minha permissão, ela desliga o monitor do meu computador e fala: — Vamos! A política da empresa é fazer o mínimo de horas extras e você em uma semana de contratada já excedeu tudo o que tinha para fazer no semestre todo. — Você não vai me deixar em paz, não é? — Sem chances. Eu sou vencida não pelos argumentos, mas pelo cansaço físico e decido ir com a Laura. Ela fala: — Espere só dez minutos, eu jamais vou sair para um bar com esta roupa que me deixa com 1,55m de altura. Eu gargalho e respondo: — E qual a sua altura? — Tudo depende do meu salto e da minha minissaia. Entramos no vestiário, eu me sento no banco e começo a mexer no celular e ela aparece de calcinha fio dental se vendo no espelho na pontinha do pés e fala: — Agora sim!!! Eu gargalho e ela corre de novo para o boxe para colocar a roupa e fala: — Se você quiser, tenho desodorante íntimo, quer? — Não, obrigada! — Nunca se sabe, Jéssica, o importante é ser prevenida. — Você realmente acha que a prevenção está relacionada a um desodorante íntimo? — Depende do seu ponto de vista. — Qual o ponto de vista que usa isso como argumento? — Aquele que quer dormir fora de casa. Hoje vai acontecer um forró danado de bom e eu duvido voltar solteira. Ela sai do boxe com uma minissaia e uma blusa decotada, está linda! E realmente com aquele look ela nem parece tão pequena quanto é, afinal, toda atenção está voltada para o corpo desenhado pela roupa que ela usa e não pela sua altura. Ela joga um batom para mim e fala: — Ao menos, passa um batom. Eu balanço a cabeça negativamente e olhando para meu look de farda e tênis, falo: — Não combina comigo. Ela faz um bico de reprovação e se enche de perfume, eu falo, brincando: — Até eu estou perfumada agora. Ela borrifa perfume em mim e finaliza: — O mínimo para um gato chegar em você é estar cheirosa, aprenda essa lição. Saímos do vestiário e como sempre, ela fala sem parar coisas aleatórias e eu me concentro em desligar as luzes e ativar o sistema de segurança que aprendi nesta semana. Quando finalmente saímos pelo portão, um verdinho que ainda veste farda, falou para a Laura: — Ah, j*****a, se eu te pego! Ela aponta o dedo do meio para ele e eu pergunto: — Quem é? — É o Jonatas, fica insistindo em sair comigo, mas eu não misturo trabalho com lazer, já disse isso a ele! Ele se aproxima da gente e fala: — Oh, j*****a, vem aqui, vem! Ela começa a andar devagar e eu entendo que é para falar com ele, então apresso o passo na direção do bar da esquina da escola. Lá estão os professores do ensino médio, alguns da área administrativa e o Theo, que veste sua roupa informal de t-shirt verde-musgo e sua bermuda branca. Os professores não mudam a postura ao me ver e aposto que sequer perceberam que eu cheguei. O bar é simples, e como em frente à escola tem uma faculdade, aqui é o local de muitos jovens se divertirem. Eu me sento em uma das cadeiras livres e o Theo vem me cumprimentar: — Jéssica!! Parabéns!! Eu sorrio e falo: — Obrigada, Theo! Ele pergunta: — Vamos brindar? Observo todos ao meu redor se divertindo e penso que seria uma boa também me divertir e esquecer um pouco a tensão que estou vivendo. A última festa que estive, foi na minha despedida dos EUA e foi mais de choro do que de diversão, sem contar que para me manter acordada agora, só bebendo algo mesmo, pois corro o risco de eu cochilar sentada devido ao cansaço acumulado e será um verdadeiro desastre para minha primeira saída com meus colegas de trabalho. Eu falo: — Vamos, sim! Quero esperar a Laura para começar a beber algo, ela vai ficar brava se a gente começar sem ela e como você já sabe, ela que já fala pelos cotovelos, vai remoer essa história toda hora e como não sei ainda quando vou embora do Brasil, não quero arriscar passar muito tempo ouvindo isso. Ele sorri e é lindo demais, eu sorrio também. Ele fala: — Ela vai demorar a voltar. Eu vi o Jonatas esperando-a sair do colégio. — Uma leve pausa. — Você tem data para ir embora? — Ela me disse que não mistura trabalho com diversão. E não, eu não tenho a data exata que vou embora. Ele sorri de novo e, sei lá, tenho a impressão de que foi depois que eu disse que não sabia quando irei embora. Que tolice, o sono me fazendo pensar besteira. Ele então bebe a cerveja sem brindar e dá uma leve piscada com os olhos. Que lindo! Ele fala: — Aí que está a charada, ali não é diversão. — Ah, então aquele papo de ser a pegadora é tudo da boca para fora? — Sim. Há uma fofoca que eles eram namorados na adolescência, mas como é tudo informação da rádio fofoca Evolução, não sei a veracidade dos fatos. — E ela volta ainda para cá? Ou eu vou ficar sozinha, mesmo? — Provavelmente ela volta com o batom borrado. — Sorri timidamente. — E você não está sozinha! Eu sorrio, não por achar engraçado, mas porque eu estou o achando lindo demais bebendo, piscando para mim e sorrindo. Ah, que sorriso lindo! Eu pergunto, irônica: — E ele? — Vem atrás despenteado e com a roupa bem amassada. Gargalhamos de novo, ele me serve cerveja e eu respondo: — Obrigada! Ele estica a mão com o copo, simulando um brinde e fala: — À nova coordenadora do ensino médio do colégio Evolução. Eu dou uma leve piscada e brindamos. Começamos a conversar coisas aleatórias da vida e ele tem um dom de me tirar sorrisos leves. Nesta noite não falamos do meu pai, ou do passado, ou da minha família. Falamos sobre nós, sobre nossas experiências e é bom demais. Cervejas e mais cervejas e nos perdemos no tempo. Há quanto tempo não me perdia no tempo sorrindo de forma leve e despreocupada? Aquele sorriso tem o poder de me mostrar que é bom sorrir e estar na companhia do Theo! A Laura chega de repente com o batom borrado e se senta ao meu lado com o rosto sem aquela energia que eu estou acostumada. A essa hora já estão todos dançando, exceto eu e o Theo, que nos perdemos nas nossas conversas. Eu pergunto, brincando, para ver se a anima: — Demorou para chegar, se perdeu no caminho? O Theo dá uma leve piscada para mim e, como esperado, o tal do Jonatas chega com o cabelo bagunçado e a roupa amassada, acompanhado pelo Pedro. Bom, não é um bom sinal eles chegarem juntos. Ela os observa chegando e pergunta, em tom de raiva: — Quero beber todas hoje, quem me acompanha? Eu não entendo muito o tom de raiva nem o motivo dela estar triste, mas acho que devo acompanhá-la, afinal, ela fará isso comigo ou sozinha e ela não merece encher a cara sozinha. Eu balanço a cabeça positivamente e viramos cerveja, em seguida tequila e perco a noção do que mais ela está nos servindo. Ela fala, se levantando da cadeira: — Vou atrás do meu par. Ela anda cambaleando e eu tento me levantar para ir ajudá-la, mas a bebida já me venceu e eu sinto o Theo me segurando: — Calma, Jéssica. Eu falo, com a voz embaralhada: — Eu preciso ajudar a Laura, ela não está bem! Ele fala: — Calma, segura as pontas aqui sentada que eu vou atrás dela. Não tenho condições físicas de discordar e só me resta balançar a cabeça positivamente e ficar sentada esperando-o ir resgatar a Laura. Eu volto meus olhos para o Jonatas e começo a resmungar sozinha, afinal, eu preciso culpar alguém pelo meu estado atual que não seja eu mesma. Ele está conversando com o Pedro e os dois conversam mostrando algo no celular de uma forma íntima, demonstrando que são amigos, e se o Jonatas é amigo do Pedro, não é um bom sinal. O Theo volta com a Laura apoiada em seus ombros e fala: — Vamos embora? Já pedi para colocar na minha conta as bebidas e acerto na segunda. Eu respondo: — A festa foi para mim, então eu p**o. A Laura comenta: — Qualquer pessoa pagando, por mim, ok. Ele responde para mim: — Combinado, você paga, mas será na segunda-feira, está certo? Agora vamos embora, vocês duas passaram do limite. Eu resmungo: — Seu limite? Ele responde: — Do de vocês mesmo. Eu estou sóbrio. Levanto-me da cadeira para resmungar, mas sinto o mundo girar e percebo que ele tem razão. Eu olho para o Pedro e o Jonatas rindo da Laura que sai com ajuda do Theo do bar e sinto uma raiva enorme deles. Então pergunto, alto e com raiva: — Estão rindo de quê? O Pedro então responde: — Eita, que a nova coordenadora é do mesmo tipinho da Laura. Eles começam a rir de mim e minha raiva aumenta. O Theo volta e fala para mim: — Deixe esses babacas. Não vale a pena arrumar confusão com quem é doente na alma. Eu mostro o dedo do meio para eles e o Theo sorri. Então falo: — Só não vou lá encher a cara desses babacas de soco, porque não quero quebrar minhas unhas hoje. O Theo fala no meu ouvido, bem baixinho, e sinto meus pelos arrepiarem por inteiro: — Escolha certa! Quando saímos do bar, encontro a Laura apoiada no poste e resmungando sozinha. Eu então pergunto: — Primeira vez que vejo bêbada falando com poste. Ela, ao virar o rosto na minha direção, percebo que ela está pálida e antes que possamos falar qualquer coisa, ela vomita de imediato nos pés do Theo que está ao meu lado. Confesso, que fico com pena dele! Ele resmunga algo, com toda razão, mas a paciência dele é maior que o estresse e logo depois ele está com aquele mesmo olhar sereno. Ele chama um táxi e pergunta à Laura: — Você consegue ir sozinha? Eu respondo: — Sem chances de deixá-la sozinha nesse táxi. Iremos levá-la para casa. Ele respira fundo, buscando se manter paciente e eu sei que estamos esgotando todos os limites possíveis, mas eu não posso deixar a Laura sozinha em um táxi nesse estado. Eu entro no táxi antes de todos e falo: — Vamos, Laura, eu levo você para casa. A Laura entra no táxi, se juntando a mim e fala o seu endereço para o taxista. O Theo nos observa notoriamente nervoso e sinto que ele perdeu ao menos metade da paciência que ele estava se esforçando para manter. Ou será que esse percentual era maior? Ele balança a cabeça negativamente e fala, entrando no táxi, se juntando a nós: — Ok, vamos todos juntos! No carro, a Laura resmunga que ela não quer dormir em casa, fala da sua calcinha e o Theo nitidamente incomodado com a conversa extremamente íntima, começa a mexer no celular. Fico me perguntando se ele tem namorada, será que aquela loira de olhos azuis que tanto vi nas fotos é alguém que ele se relaciona? De imediato, olho para os dedos dele em busca de aliança. E bingo, lá está a marca da aliança e minha cabeça começa a criar diversas hipóteses, afinal, aquele gatinho dono de um sorriso mágico e um pontinho preto nos olhos mel não deveria ser um solteiro disponível. Ao chegarmos ao nosso destino, eu ajudo a Laura a descer do carro e falo para o Theo: — Pode deixar, Theo, agora é comigo, eu a deixo em seu apartamento e depois volto de táxi para minha casa. Ele responde: — Vocês ficarão bem? Como se ele previsse o meu futuro, eu começo a vomitar e a Laura me acompanha. Eu não percebo exatamente o momento que ele desce do carro, mas só o sinto segurando meus cabelos, me ajudando a não me melecar toda. Quando termino, eu olho para ele e ele fala: — Vamos fazer o seguinte, o táxi já foi embora, então vamos deixar a Laura no apartamento dela e depois voltamos para casa, ok? Eu hoje preciso dormir em casa! Com certeza a namorada dele deve estar o esperando e deve ser a tal loirinha de olhos azuis de sua rede social. Então deixo escapulir: — A sua namorada está te esperando. Ele faz uma expressão confusa, mas não responde, me deixando ainda mais curiosa se ele é solteiro ou tem compromisso com alguém. Eu apoio meus braços nos ombros dele e a Laura também e vamos caminhando os três para o apartamento da Laura, que fica no 2º andar. Subindo as escadas, a Laura resmunga: — Qual a necessidade de tantas escadas? Começamos a gargalhar e nos sentamos na escada, exaustos. Escada e bebida definitivamente não combinam. Ela então fala, com tom de desespero: — Só falta um andar! O Theo parece se divertir com o desespero da Laura de subir o restante das escadas e fala, brincando: — Da próxima vez, vamos escolher uma casa que não precise subir escadas. Estou cansado, vocês são pesadas! Nós gargalhamos de novo e a Laura responde: — Eu consigo ir sozinha. Ela se levanta e começa a caminhar devagar, subindo as escadas, e eu falo para o Theo: — Ela me desafiou. Se ela consegue, eu consigo também. Então, me levanto e quando olho os degraus, sinto meu corpo fraco, o meu horizonte parece que está girando e eu cambaleio. O Theo me segura, mas o meu peso faz a gente se encostar no corrimão da escada e nossos corpos se tocam. Não como das outras vezes só como amigos, desta vez é diferente e eu não sei explicar o quanto diferente e bom isso é. Eu fixo meus olhos naquele pontinho preto dos olhos mel dele e sinto minha respiração ofegante, a dele também está. Eu tenho certeza de que senti o desejo dele por mim, está explícito, é palpável. Neste momento eu nem me lembro da marca da aliança, ou sequer da existência da loira de olhos azuis. Eu só insanamente aproximo minha boca da dele que fica paralisado e quando eu tento tocá-lo, ele se afasta. Merda! Eu entendi tudo errado. Ele fala, nervoso: — Vamos ajudar aquela maluca ali em cima e depois ir embora, ok? Eu me desencosto dele e falo, envergonhada: — Você está certo. Ele coloca meu braço sobre os ombros dele e vamos devagar subindo os degraus. Quando chegamos ao apartamento, encontramos a Laura no seu sofá completamente apagada. Eu falo: — Theo, eu vou esperar até amanhecer, não posso deixá-la sozinha aqui assim. Você pode ir para casa. Ele me olha apreensivo e fala: — Eu não posso deixar vocês duas aqui sozinhas. Vamos fazer assim: ficamos mais 2h aqui e depois eu e você voltamos, ok? É o tempo necessário para garantir que ela ficará bem. Balanço a cabeça positivamente, me sento no chão e encosto minha cabeça na parede. Ele se senta ao meu lado e eu fico pensando se deveria pedir desculpas por entender errado, mas ao invés disso eu encosto minha cabeça no ombro dele e me perco nos pensamentos, no cheiro dele e na vontade louca de saber qual gosto ele tem. Acordo com a voz da Laura, quando olho para onde estou me vejo deitada no chão do apartamento dela, abraçada com o Theo. Minha cabeça dói, meu corpo está lento e eu sei bem o que eu estou sentindo: ressaca. O Theo se levanta devagar e fala, se espreguiçando: — Nunca mais vocês duas vão se juntar para beber! A Laura me entrega um copo de água e fala, imperativa: — Quero saber o que aconteceu! Eu fico sem saber explicar, porque eu acordei e estava deitada no chão abraçada com o Theo e só consigo me lembrar que eu tentei o beijar e ele não quis. De repente, me vem à memória a marca da aliança e então tento me explicar: — Não aconteceu nada com a gente, só ficamos aqui esperando você acordar... Ela me interrompe, sorrindo: — Estou falando de mim, não de vocês dois. O Theo está vermelho, envergonhado, e eu também. Ela percebe e pergunta, se afastando de nós, nos dando um pouco de privacidade: — Querem café? O Theo olha o celular e fala: — Não, na verdade, eu preciso ir embora. Ele me oferece ajuda para me levantar do chão. Por que ele tem que ser gentil até no momento constrangedor? Eu aceito a ajuda, mesmo sendo bem constrangedor, mas nada neste momento é mais forte que a dor da ressaca física. Ele pergunta: — Você vem comigo, Jéssica? Eu balanço a cabeça negativamente, pois eu preciso digerir a vergonha que estou sentindo, além da ressaca física, eu também estou sofrendo de ressaca moral. Ele então fala, se despedindo: — Até mais, meninas. Nós acenamos para ele que saí do apartamento com a cabeça baixa. A Laura então fala: — Vocês só se beijaram ou transaram também? Não consegui decifrar se a mancha na bermuda branca dele foi sujeira normal de balada ou do momento íntimo de vocês. Eu me sento em um dos bancos da cozinha e pergunto, surpresa: — Oi? Você esqueceu que vomitou duas vezes e uma delas foi em cima dele? — Esqueci, mais ou menos. Ela finaliza com a mão na cabeça, mostrando arrependimento, mas como tem o poder de emendar histórias sem nenhuma conexão, continua: — Olha, quero saber o que aconteceu entre vocês, depois falamos de mim, mas agora só me interesso em saber de vocês dois. Eu faço uma leve massagem na cabeça tentando aliviar a dor que estou sentindo e respondo: — Não aconteceu nada. — Eu sempre soube que ele estava interessado em você e por saber que ele é um pegador profissional, achei que vocês já tinham parado com a frescura e estavam se curtindo. — Frescura? Fala sério, Laura. Ela me entrega uma xícara de café e eu pergunto: — Você tem algum remédio para dor de cabeça? Ela começa a vasculhar uma gaveta e continua: — Quando ele chegou lá na secretaria, todo animado, querendo saber se tinha vaga na escola, eu já sabia que era para uma paquera e para fechar com meu senso investigativo, ele não levou ninguém ontem para o happy hour como de costume e, ainda dormiu com você. Então, me conte tudo o que aconteceu entre vocês? Ela me entrega um remédio e eu tomo rapidamente com o café. Então respondo: — Ah, você está louca. Sem contar, que eu percebi que ele tem uma marquinha no dedo, como se fosse noivo há pouco tempo. — Sim, suas especulações estão corretas. Ele estava noivo há algum tempo, mas como falei, ele é pegador e vivia com mulheres diferentes, então um dia a noiva descobriu o que todos já sabiam, exceto ela e eles terminaram o relacionamento. E sem nenhum ressentimento, ele continuou saindo com a cidade inteira. — Ela colocou um remédio na boca e também o ingeriu com café. — Bom, se você precisou olhar os dedos dele para ver se havia compromisso, minhas teorias sobre vocês estão certas. Eu tento esconder o óbvio: — Eu só olhei, porque eu tenho mania de olhar detalhes nas pessoas para saber o que conversar. Ele é amigo da minha família e somos, tipo... — Casal? Eu falo, irritada: — Irmãos. Ela gargalha e fala: — Meu amor, irmãos com esse desejo todo vira outra coisa! A bermuda dele branca não escondeu nada. Eu pergunto, incrédula: — Você ficou olhando? Ela responde com naturalidade: — Você deveria olhar também. Ela consegue me tirar sorrisos com a conversa maluquinha dela e diria que assertiva também. Eu mudo o rumo da conversa: — E você? Qual é a verdadeira história com o Jonatas? — Um i*****l. — Um i*****l que chegou com a boca borrada com a mesma cor do seu batom, cabelos bagunçados e roupa amassada. Que lugar foi esse que você se meteu com ele? Ela responde: — É uma história longa, mas não vale a pena. Prefiro saber de você e do Theo. Acho que já dá para eu fazer — ela faz um jogo da velha com os dedos — #jetheo. Gargalhamos juntas e eu insisto: — É sério, não tem nada entre nós dois. Sem contar que eu estou por aqui com tempo limitado e sem nenhum tempo ou clima para romances. — Por quê? Eu acabei de arrumar uma melhor amiga e ela já quer ir embora? — Porque meu lugar não é aqui no Brasil e já que estamos falando de melhores amigas, melhor amiga não esconde segredo e você está me escondendo o que realmente tem com o Jonatas. — Quer saber? Vou contar mesmo... vai que você aceita ser minha melhor amiga, depois que contar esse segredo e não vai embora do Brasil tão cedo? — Ok! Você me conta e eu avalio. — Eu e o Jonatas estamos “juntos” — ela faz sinal de aspas com as mãos — desde a adolescência. Mas ele gosta de se meter em confusão e sempre quer o dinheiro mais fácil e isso sempre me incomodou. — E o que ele fez de tão grave? — Bom, vou logo te alertar, o professor Pedro não presta e digo isso porque já flagrei ele com algumas alunas. Eu pergunto, assustada, afinal as respostas sobre o Tomaz e sua patotinha para minha investigação podem estar na minha frente com a Laura: — Como assim? — Beijando, paquerando e isso não é permitido na escola e o Jonatas vive acobertando tudo isso. Ele, como fiscal, deveria ser o primeiro a denunciar, acho inclusive que ele também se envolve com uma das meninas do 2º ano do ensino médio. — Por que você não denuncia ao Sr. Manoel? Ou até mesmo a um órgão que possa apurar o caso? Isso não é correto, estamos falando de adolescentes, menores de idade. — Porque eu não tenho provas e com certeza isso vai respingar no meu emprego. Eu tenho que ficar calada, isso sim. Sem contar que não poderíamos nos relacionar, é norma da escola não permitir relacionamento entre funcionários. — Mas você não pode ficar calada sabendo dessas atrocidades contra menores de idade. — Jéssica, você vai perceber que muitas vezes ficar calada é a melhor opção. Eu sei, infelizmente, eu sei, mas neste momento a melhor opção é falar e ela que tanto gosta de se comunicar, não pode ser silenciada. Então, eu tento argumentar: — Não, Laura, temos que ser responsáveis. Se você estiver vendo algo errado, precisa investigar, ir atrás e denunciar, afinal, podem ter pessoas sofrendo nessa história e é nossa obrigação fiscalizar e cobrar que seja feito o certo. Alguém pode estar calado do outro lado por medo de quem está oprimindo e precisa de ajuda para ter voz de se libertar. — Jéssica, no mundo ideal, pode ser. Mas no meu mundo que envolve o meu emprego, necessidade de pagar aluguel, comida e minha pós-graduação, não é assim que deve se proceder. Se você acha que deve investigar isso, faça por conta própria, mas não me envolva. Ela olha para baixo e fala: — Desculpe se pareço rude, mas eu sempre sonhei em estudar naquele colégio e hoje trabalhar lá, pagar minhas contas, fazer minha pós-graduação é tudo o que eu quero na vida. Não serão ações irresponsáveis de professores, ou de fiscais, ou de pais omissos que irão fazer eu perder tudo o que conquistei. — Eu entendo, mas como coordenadora, eu preciso intervir. — Eu acho que você hoje precisa entender a hierarquia da escola: primeiro o Sr. Manoel; segundo o Sr. Tomaz e esse segundo fará de tudo para que não chegue ao primeiro, coisas do gênero. Enquanto a escola estiver rendendo dinheiro, eles não vão mudar ou intervir em nada. O Sr. Manoel é uma boa pessoa, mas ele gosta de dinheiro e o Tomaz faz de tudo para mostrar que ele sabe como ninguém gerar dinheiro para a escola com seus projetos. — Mas eles estão infringindo a norma da escola e cometendo crime contra menores de idades. — Se ele estiver ganhando dinheiro, isso não importa, entende? Porque isso nunca vai chegar até o Sr. Manoel. A ele só chega o saldo bancário e o balanço positivo do mês. Eu baixo a cabeça escondendo meu nervosismo, minha indignação, afinal, ela precisava entender a necessidade de não ser omissa. Ela continua: — Então, eu não fico com o Jonatas por conta disso! Eu não confio nele, eu não confio com quem ele anda e não confio no que ele faz. — Ontem você chegou na mesa triste, o que aconteceu? Ela fica sem jeito e fala: — Olha, não precisamos falar disso. — Sim, precisamos. — Não, não precisamos, assim como não precisamos falar mais nada sobre o que acabei de contar do Pedro, Jonatas e o Tomaz. — Talvez você não precise mais falar ou pensar nessas atitudes que podem estar relacionadas a crimes contra menores de idade, mas eu preciso, porque isso envolve não só o colégio, mas a minha história. Ela fixa os olhos em mim, confusa, e eu falo, entristecida: — Eu vou para casa. A Laura sabe de mais coisas que podem me ajudar e eu preciso trazê-la para o meu lado. Talvez se eu conseguir uma promessa de emprego para ela no escritório do Leo, talvez essa segurança em ter como se sustentar a faça mudar de ideia e me ajudar. Agora não é a hora de falar para ela tudo o que eu passei naquela escola e, principalmente, o pedido do meu pai, mas eu sei que ela precisa me ajudar e sem ela, talvez, as coisas tomem um rumo muito mais difícil.
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