Prólogo
Prova de Biologia é sempre um terror, a matéria que mais detesto, sem sombra de dúvidas, e eu não sei se é porque o meu professor é detestável, ou por ser uma matéria tão difícil de se entender. Talvez pelos dois, afinal, se eu tivesse um bom professor, não teria que passar a noite acordada, estudando.
Olhando para minha irmã gêmea, que dorme tranquilamente enquanto os raios de sol entram pelas brechas da janela, fico me perguntando como nos tornamos opostas em tão pouco tempo? Não somos mais amigas e não compartilhamos mais sonhos. É cada uma por si e, inclusive, nesta prova de Biologia, a matéria que ela mais tira notas boas. Ela nunca quis me ajudar a estudar ou entender melhor o que o professor faz questão de ensinar com má vontade, mesmo tendo muita aptidão na matéria. A observando dormindo despreocupada sinto raiva dela, não só por não me ajudar a estudar, ou por ela tirar notas máximas, na verdade, eu sinto mais raiva de mim que por mais que estude, me esforce, estou sempre na média limite em uma das matérias que mais reprovam alunos na escola e eu preciso passar de ano, meus sonhos dependem da minha superação de aprendizado e, principalmente, desempenho nessa prova.
Enquanto ajeito meus livros na bolsa, ainda lenta do sono que vai me fazer muita falta durante o dia, pois o baguncei para estudar, minha irmã com toda energia recarregada por uma noite de sono invejável, conversa com minha mãe na mesa, tomando café da manhã, sem preocupação. Diferente de mim, os livros dela estão sempre organizados, já que nunca os retira da bolsa. Ouço-a falando:
— Mãe, hoje vai ter grupo de estudo no final da aula, vou precisar voltar mais tarde.
Ela faz parte de um grupo seleto de estudos, o Descomplicando, do professor Tomaz, que escolheu a dedos as meninas mais bonitas da sala para ensinar a tal Biologia descomplicada, como a Carol fala para meus pais. A minha mãe responde:
— Não tem problema, você volta de ônibus hoje?
Ela responde:
— O motorista do Leo ficou de me trazer, pode ficar tranquila que mesmo se eu voltar muito tarde, estarei segura.
De repente, me lembro do Leo, jogando futsal sem camisa e as vezes que ele sorria para mim, ao mesmo tempo que balançava a mão, acenando, e até isso é lindo nele. Então, sinto meu coração bater mais forte e começo a suar de imediato. A mamãe fala:
— Hoje vou precisar ficar à tarde na escola, para fazer a limpeza do auditório. A Jéssica vai voltar com seu pai, no horário normal?
Ouvir o meu nome sem ser o: “Oi, Jess!” do Leo, me faz despertar de um sonho acordada e eu respondo, assustada:
— Volto, sim, afinal, eu não faço parte do grupinho puxador de saco de professor i****a.
Caroline revira os olhos em reprovação e responde:
— Se não fosse tão chata e andasse com as minhas amigas, com certeza faria parte do grupo de estudos Descomplicando. Se você fosse legal com elas, com certeza elas pediriam para te colocar no grupo também, mas como você só anda com a esquisita e caipira da Bárbara, fica com fama de descomprometida e chata, então fica de fora mesmo do grupo mais top do colégio.
Eu coloco um pedaço de pão rapidamente na boca e respondo, com ironia:
— Eu acho que não fazer parte do seu grupo está mais relacionado ao fato de eu usar short que cobre a popa da b***a do que andar com a menina mais legal da escola sem ser eu mesma.
Ela debocha:
— Deveria parar de comer pão e emagrecer, então quem sabe conseguiria usar um short sem mostrar esse monte de celulite que você tem na b***a. Você é patética, sabia? — Ela pausa, me olha com deboche e continua: — Quer dizer, não emagreça, porque quando eu ficar bem magrinha, nem vamos mais parecer irmãs gêmeas. Ou seja, coma, coma muito e exploda. Precisamos ficar diferentes uma da outra urgentemente. Eu não aguento mais parecer com você.
— Somos gêmeas, você vai ter que aturar se parecer comigo essa encarnação toda.
Eu mostro o dedo do meio para ela e ela sorri, despreocupada. Meu pai chega animado, como sempre, balançando a chave do seu carro e fala:
— Parem com essa briga, meninas, todo dia é assim agora! Vocês precisam brincar em vez de brigar.
Ele dá um leve beijo apaixonado na boca da minha mãe e fala:
— Agora, vamos, não podemos chegar atrasados em nossos compromissos.
Meu pai tem razão, este ano eu e minha irmã passamos de melhores amigas a inimigas mortais. m*l nos falamos na escola, temos grupos distintos de amigos... nada, exatamente nada é interligado, exceto o momento que voltamos para a mesma casa e dormimos no mesmo quarto, além, é claro, do fato de compartilharmos características de nossa aparência. Mas até isso ela está se esforçando a mudar, emagrecendo absurdamente em busca de um padrão idealizado pelo seu grupo de amigas.
Minha mãe trabalha na escola como auxiliar de serviços gerais e ter bolsa de estudo na melhor escola da cidade é mais do que sorte, é privilégio e sempre nossos pais nos lembram dessa responsabilidade, pois é a nossa chance de mudar de vida e, como meu pai ama falar: a chance de conquistar o mundo! Fazer o ensino médio naquela escola é um sonho para qualquer adolescente, pois é a escola que mais aprova alunos nas melhores universidades, mas também tem outro motivo, um motivo que a Carol ama falar: escola com o grupo mais seleto e rico da cidade. Eu me enquadro no grupo que quer passar no vestibular de universidade pública e garantir o meu futuro com uma formação profissional, já a minha irmã se encaixa no grupo que quer participar da panelinha de festeiros ricos da cidade.
Meu pai tem um carro antigo, que é mantido com muito esforço e trabalho árduo como porteiro em um dos prédios da orla, mas minha irmã morre de vergonha da profissão e do carro antigo do meu pai e nos faz descer na esquina anterior da escola, para que as amigas dela não vejam o carro que ela chega à escola. Minha irmã, que é a preferida da minha mãe, não teve dificuldades de convencê-la a ato tão repugnante. Minha mãe argumenta que não existe nenhum problema em fazer uma caminhada antes de entrar na escola, acho que ela tem o mesmo sonho da minha irmã, além de sentir certa vergonha da nossa classe social. Enquanto meu pai sonha em nos ver com formação de nível superior, minha mãe sonha com um casamento que nos deixe ricas do dia para noite. Ela vive me falando para arrumar um namorado rico, como a Carol arrumou. O Leo é rico, mas não faz parte do grupinho de idiotas da Carol, ele é um cara em extinção e minha irmã capturou o coração dele rapidamente.
— A revoltada chegou.
Os amigos da minha irmã gritam quando passo pelo portão da escola. Minha mãe dá um beijo na minha testa e fala, como sempre, antes de ir para o seu setor de trabalho:
— Deus te acompanhe.
Já minha irmã, nos ignora e corre para abraçar os amigos que acabaram de me provocar. A Bárbara se aproxima de mim, perguntando:
— E aí, preparada para a prova mais difícil do planeta?
Minha amiga, dona de um sotaque sem igual e que eu acho tão lindo, que me pego às vezes a imitando. Ela também é dona de um sorriso largo, minha amiga transborda amor. Adoro ver aqueles olhos cor de mel brilhando com ideias mirabolantes do livro que ela está escrevendo. Ela tem dificuldade de aceitar o seu corpo e vive tentando esmagá-lo em busca de caber em tamanhos de roupas nitidamente inferiores ao seu tamanho real. Inclusive, não sei como ela consegue conviver com as feridas que as bandagens que usa abrem na sua pele. Eu coloco meus braços por cima dos ombros dela e ela balança seus cachinhos dourados. Ela é linda e precisa entender isso. Saímos caminhando pela escola e eu respondo:
— Passei a noite acordada estudando, acredita?!
Ela responde:
— E quem dormiu?
— Acredita que a Carol dormiu feito um anjo?
Ela para bruscamente e sinto o ombro dela tremer. Ela está nervosa e eu sei bem o motivo. O Leo passa por nós e dá uma leve piscada para mim com um olho. Ela fala, gritando:
— Não acredito que ele piscou para você, de novo! Eu já contabilizei dez só neste semestre.
Ele ouviu, eu tenho certeza, MERDA! Eu coloco a outra mão na boca dela rapidamente e falo baixo, com reprovação:
— Fale baixo, está maluca?
Ela continua falando com entusiasmo, ignorando minha mão:
— Maluca? Ele é o gato dos gatos. Todas deste colégio, exatamente todas, são caidinhas por ele. Inclusive, eu. E ele piscou para você dez vezes só este semestre. Olha só esse cabelo liso caído no rosto. Eu já disse que ele é o protagonista do meu livro, não é?
Ela me gira na direção dele e somos testemunhas da cena da Carol correndo na direção dele, que a corresponde, a abraçando. A Bárbara fala:
— Eu tenho certeza de que ele só fica com ela, porque pensa que é você. E essa será a nova ideia para eu continuar os próximos capítulos do meu livro.
A minha irmã entrelaça as pernas nele que a sustenta no ar. Cena de filme de romance picante para maiores de 18 anos. A Bárbara fala:
— Olhe bem direitinho para aqueles olhos castanhos-claros. Ele não olha para ela como olha para você, não é possível que você não note isso. Eu tenho certeza de que se fosse você agora, na frente dele, ele que teria puxado para cima dele e não como foi agora, em que ela pulou.
O fiscal do colégio apita e grita na direção deles:
— PIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII. Isso não é permitido Carol e Leo, vocês já sabem.
Eu respondo a minha amiga, sorrindo:
— Você é maluca.
— Vai dizer que você nunca notou que ele te olha diferente?!
Talvez, quer dizer, isso é loucura da minha cabeça, quer dizer, da nossa cabeça. O Leo é um cara diferente, os olhos deles demonstram que ele é uma pessoa de bem, uma pessoa legal e sentir o coração bater mais forte por ele, talvez esteja ligado ao perfume dele que é mais cítrico que os demais, ou talvez porque o ver sem camisa durante a aula de Educação Física me dê curiosidade de saber a textura da pele dele que visivelmente parece ser hidratada, macia... com certeza são hormônios da adolescência, eu me lembro de ter estudado isso para a prova, e isso me lembra uma coisa e eu falo em voz alta:
— Prova de Biologia!
A Bárbara retruca, chateada:
— Estamos falando daquele deus grego e você vem falar de prova de Biologia?
O grupinho da minha irmã começa a assobiar e ela dá um beijo rápido na boca do Leo, de brincadeira. A Bárbara fala:
— A biologia que você deveria estudar é a do corpo dele, isso sim!
Eles se separam e percebo um olhar rápido para mim, que ainda estou paralisada assistindo à cena. A Carol olha para onde ele está olhando e, ao me ver, o puxa para o lado oposto. A Bárbara fala:
— Inacreditável isso. A piscada dele para você foi muito mais verdadeira. Ela se jogou nos braços dele, sem ele nem querer. Ele parou de beijar ela para te olhar. Eu preciso pôr isso no meu livro.
O guarda apita e vai na direção dos dois. Eu giro minha amiga de novo, seguindo para nossa sala e falo, sorrindo:
— Você é engraçada.
Ela completa:
— E sua irmã, uma atirada.
Eu finalizo:
— Você faria o mesmo, não tenho dúvidas.
— Ah, querida, com o Leo eu seria muito atirada mesmo e enfrentaria até os verdinhos.
Verdinhos é o nosso apelido para os fiscais do colégio. Gargalhamos juntas e entramos na sala de aula.