ELE
Estava cansado e irritado, há muito o sol se punha, eu devia estar com a minha fêmea e não caçando invasores nas minhas terras.
O número de invasões de lobos perdidos a territórios que nunca conseguiriam dominar é absurdo, mesmo um perdido não seria tão burro, exceto caso haja algo por trás das suas ações. Além disso, os desaparecimentos de fêmeas, especialmente Lunas e Ômegas têm crescido, e não acredito que seja coincidência.
— Alfa, encontramos dois deles na fronteira, não parecem espiões, são muito jovens e carregavam objetos roubados.
A lei é clara, invadir o território de um clã é passível de pena de morte. Lobos perdidos são perigosos, amorais e potenciais assassinos.
Eu sei disso melhor do que ninguém, a minha própria natureza perdeu-se, não fosse a terceira forma, eu já estaria sem controle.
— Os seus lobos estão perdidos?
— Não, senhor, estão muito magros e doentios, mas são saudáveis. Andarilhos, talvez, Alfa?
— Tragam-nos! Vejamos se merecem viver.
Não tenho tolerância com invasores, muito menos com ladrões e vagabundos.
General Igor retornou minutos depois trazendo dois lobos jovens e desnutridos. Estavam imundos, os pelos desgrenhados e cobertos de lama. Estávamos no meio da floresta, embora lobisomens, a dupla de marginais mais parecia presas do que predadores.
Um deles era uma fêmea ainda não madura.
— Quem são vocês e o que fazem no meu território?
Eles permaneceram em silêncio, cabeça baixa, fedendo a medo. A fêmea aproximou-se do macho instintivamente, como se aquele bastardo pudesse protegê-la de alguma coisa. Para a minha satisfação, o jovem macho se posicionou de forma a “proteger” a fêmea, me revelando a sua maior fraqueza.
Segurei a fêmea pelo pescoço e ergui o seu corpo, sufocando-a, e encarei o macho, aguardando a sua reação.
— Não machuque a minha irmã, senhor! Não fizemos nenhum m*l, só estamos com fome, ela precisa se alimentar!
— Não está respondendo a minha pergunta! — Apertei o pescoço dela com mais força e ela parou de gritar, se debatendo pela falta de ar.
— Sou Anias, Senhor, e Alexa é minha irmã. Tenha piedade, Alfa, ela é apenas um filhote!
Abaixei o braço para que os seus pés voltassem a tocar o chão e afrouxei o aperto no seu pescoço. Ela tinha os olhos arregalados, lágrimas escorrendo pelo rosto sujo, inspirando ar rapidamente.
O meu lobo lambeu os beiços com o cheiro do pavor que vinha dela, ele gostava de causar medo, a sua boca salivava com a expectativa de saborear o sangue dos invasores, sem a menor pena ou culpa.
Serem apenas filhotes não afetava a sua ganância por sangue. A terceira forma impôs a sua aura, fazendo a natureza do lobo retroceder no meu âmago.
— De que clã vieram?
— Nós crescemos sem clã, senhor.
Segurei o rosto do macho e apertei, observando algum sinal de perdição nos seus olhos, mas de fato eram saudáveis.
— Explique-se!
— Desde que me lembro, vivemos em florestas, nunca ficamos mais do que três noites me lugar nenhum. Recentemente fomos
atacados por um perdido que queria tomar… — Ele olhou para a irmã que ainda estava em minhas mãos e compreendi o que o perdido queria. — Nossa mãe matou o perdido, mas acabou sofrendo muitos ferimentos… Nós seguimos nômades.
Aproximei o rosto do pescoço da fêmea e inalei a sua essência. Jovem, ainda intocada, mas a sua natureza já estava se fazendo notar. Não demoraria muito para se transformar e passar pelo primeiro cio.
— A sua irmã está amadurecendo, ficar perambulando por aí não é seguro para ela.
— Não temos para onde ir, senhor.
General Igor e Beta Alaor se entreolharam, ambos analisavam mentalmente se haveria alguma vantagem em introduzi-los no nosso clã. Uma jovem e saudável fêmea tem muito valor para o clã, mas o jovem macho era fraco demais e levaria tempo para ser útil no exército.
— O que acha, General?
— Darão muita despesa antes de serem úteis, especialmente o macho. A fêmea é intocada, pode ser companheira de um dos nossos, ou trará lucro caso encontre um companheiro de valor.
A jovem estremeceu e o macho arregalou os olhos, preocupado com as palavras do general. O fedor do seu medo era intenso, sabia que se o rejeitássemos, estaria condenado a morte e a sua irmã nas mãos de estranhos.
— Eu posso ser útil, senhor, sou um bom rastreador, foi assim que encontramos alimentos nas suas terras sem sermos detectados, Não fosse pela fraqueza da fome de minha irmã, teríamos escapado sem sermos detectados nas suas terras.
Os meus homens riram do atrevimento do jovem macho, enquanto simpatizei com a eloquência das suas palavras em meio ao desespero.
— Gostei dele, Alfa, se não estiver mentindo, um rastreador de qualidade será uma boa aquisição para o clã.
Leve o macho contigo, General, estará sob a sua guarda. Beta, diga para Estela cuidar da filhote.
— Não! — A ovem fêmea gritou, estendendo a mão na direção do irmão. — Anias!
O jovem macho estava aflito, desejoso de ir até a irmã, mas dois dos meus lobos o seguraram pelos braços.
— Relaxa, “rastreador”, não faremos m*l a filhote!
— Quieta, fêmea, seus gritos são irritantes! — Ordenei e ela calou de imediato. — Você vai ser cuidada no harém. Nossa Beta vai cuidar que tome um banho e vista algo decente.
— Eu quero ver a Luna, ela vai me proteger! — A jovem exigiu, ainda que apavorada.
Era sabido, que, pela lei, a Luna de um clã é quem cuida das fêmeas, sendo muito mais leniente do que um Alfa.
No entanto, jamais permitirei que uma estranha se aproxime da minha fêmea. Ainda que um filhote, Alexa era selvagem, arredia, e uma loba, e eu temia pela segurança de Esmeralda.
A minha humana é frágil, não poderia arriscar a sua segurança.
— Não verá Luna alguma! Leve-a para Estela, Alaor, ordene que dê um jeito nessa filhote, está fedendo!
— Sim, senhor!
*****
Estava silêncio, mas podia ouvir o som das batidas do coração da minha fêmea. Era uma experiência nova e agradável, ter alguém para quem chegar, além das paredes vazias. O aroma de comida permeava o ar, perfumando o ambiente com uma mistura exóticas de temperos, carnes, vegetais e a essência irresistível da minha companheira.
E um leve odor de queimado.
Segui para a cozinha e Esmeralda estava debruçada sobre a mesa, dormindo. Havia pratos, talheres e copos dispostos para duas pessoas. Corri para o fogão e afastei uma panela de onde saia fumaça. O conteúdo não esta totalmente queimado, apenas a parte que estava me contato direto com o fundo da panela.
A minha fêmea despertou sobressaltada e arregalou os olhos ao ver-me.
— Eu fiz o jantar pra gente… Oh, não… queimou o cordeiro!
Ela tomou a panela das minhas mãos com o rosto tristonho.
— Você cozinhou para mim? — Perguntei, incrédulo.
— Eu estava com saudades da comida do meu mundo, aí fiz um pouco para nós dos meus pratos favoritos. Acho que peguei no sono te esperando, e olha só, estraguei tudo e queimei a carne.
Fêmeas cozinham o alimento caçado pelos machos durante o cortejo como sinal de aceitação e admiração. Ela cozinhou para mim e eu não estava aqui para receber.
Me senti culpado por decepcioná-la.
— Sinto muito, fêmea.
— Não precisa, eu que me desculpou, estraguei a comida, agora vai para o lixo, detesto desperdício!
— Não! — Tomei a panela dela antes que jogasse na lixeira. — Preparou tudo isso para mim?
— Sim… eh…Fui ao mercado da cidade com o Gama, daí comprei algumas coisinhas, tudo na sua conta, é claro. — Ela sorriu, linda, m*l podia me atentar ao que dizia fascinado pelo sorriso no seu rosto. — Fiz charutos de repolho com um pouco do cordeiro picado e cebola. As cebolas daqui são enormes e muito aromáticas. Tem arroz com fritas secas, batatas na manteiga e o cordeiro…
— Eu teria caçado um cordeiro se soubesse que gosta.
Estava com ciúmes de quem quer que tenha abatido o animal que a minha fêmea preparou. Eu deveria ser o único a provê-a e a caçar para ela.
— Eh… mas vende, né, então, está tudo bem. Acho que estraguei tudo…
— Não! — A minha voz soou um pouco alta pela urgência que sentia com o gesto da minha fêmea. — Eu me atrasei por conta dos meus deveres, mas podemos comer juntos.
Coloquei a panela sobre a mesa e sentei-me na frente dela. Ela piscou algumas vezes, e olhou para os utensílios na minha frente.
— Pode se servir, Ares, mas não precisa comer essa carne queimada… — Ela sorriu e serviu um pouco do repolho com coisas dentro no seu prato.
Peguei um pouco de cada prato que ela preparo e uma grande porção de carne.
A minha Fêmea preparou alimentos para mim e me aguardou voltar para comer comigo. Uma sensação desconhecida percorria a minha veia enquanto comia.
Nunca me senti daquele jeito, e queria poder comer tudo o que tinha na mesa, sem desperdiçar um grão.
— Ei, isso é um sorriso que vejo no seu rosto, Alfa? — Ele disse em tom brincalhão enquanto cortava um pedaço pequeno demais de comida.
Não respondi, mordi a carne e a minha fera suspirou de contentamento.
Até o lobo abriu os olhos e observou a fêmea, sem a criticar.
— Está muito r**m? — Ela questionou me observando mastigar.
— Está bom, fêmea!
— Não precisa mentir, a sua boca chega a estar preta…
— Eu não minto, está bom, é a melhor refeição que tive na vida!
— Sério? Mesmo queimada e com tempero diferente do que você está acostumado? Eu coloquei até sal…
— Está perfeito porque você fez!
Ela me encarou por alguns segundos e eu servi mais do arroz. Não gosto de vegetais, mas estava agradável com o mato que ela misturou aos grãos.
Ela estava sorrindo como os olhos verdes brilhantes.
A minha humana parecia uma sereia quando me olhava daquele jeito, o meu coração estava batendo rápido demais dentro do peito.
Talvez eu devesse comer mais devagar…