E assim se fez a chama

2749 Words
A noite anterior lhe rendeu, além do sarro das meninas, uma forte dor nas costas e no cóccix. - Roeh! Levante-se. Está quase na hora. - alertou sua mãe da cozinha. Estava quebrado, sem forças e dolorido. Não queria sair da cama pelos próximos anos. Pensou em contar para o pai sobre o despencar da noite anterior e assim conseguir um crédito para faltar na aula, mas descartou a ideia. O tiro sairia pela culatra. Além de ir de qualquer jeito, ouviria sermão sobre não-subir-no-telhado e seria recompensado com um dia adicional de caridade com sua vó. Roeh gritou com a voz fanha: - Já vou. Já vou. Se levantou num embalo, olhos inchados e embaçados de sonolência,se sentindo em meio a marofa das boas, tamanha era a neblina no ar. Deve ser o sono, pensou. Foi até o banheiro deixando no quarto uma névoa e a cama chamuscada. Após lavar o rosto, notou estar com a roupa do dia anterior. Retornou até o quarto e percebeu confuso os lençóis torrados. Para evitar a fúria da mãe, embolou na mochila, trocou o lado do colchão, mudou de roupa e desceu as escadas. - Não vai tomar café, Roeh? - questionou sua mãe. - Não, não estou com fome. Vou cedo hoje. - Você está bem, filho? Roeh pensou por uns instantes, ainda norteado pelo sono. - Claro. Só estou com sono. Só isso. - Ok. Tenha uma boa aula... - a porta bateu. ◇◇◇ Ficou estático na calçada, observando idosos em caminhadas matinais e um pai de família acenando para a esposa antes de ir para o trabalho. Apesar de igual, parecia diferente. A sensação era de formigas transitando por sua cabeça recolhendo pedaços do cérebro para o inverno. Lembrou-se do lençol, removeu-o da mochila e afundou na lata de lixo. Por fim, pôs se a caminhar, acreditando lhe fazer bem. Para sua infelicidade, pouco antes de dobrar a esquina, deparou-se com a vinda enfurecida de Dentinho, o cão maluco do vizinho. Devido à falta de disposição, Roeh não fugiu. Porém, ao invés de saltar e morder, o cão freou, assustado. Parecia indeciso em morder ou não morder. - O que foi Dentinho. Algo te assusta? Dentinho rosnou. Roeh esbanjou desprezo. - Cala a boca. Dentinho latiu initerruptamente. - Mandei calar a boca, desgraça! - Roeh caminhou, mas o cão o perseguiu, esbravejando com investidas. - FICA QUIETO, p***a! - exaltou nas fuças do cachorro, sob um clarão alaranjado da íris, transformando Dentinho numa bola de fogo. O cão corria em círculos, em latidos chorosos. Desesperado, Roeh desferiu uma bicuda no animal, fazendo a pelota incandescente voar por cima do muro e cair no quintal do vizinho, num último grunhido. Estarrecido, o fugitivo Roeh andou em passos rápidos, deixando pegadas de borracha queimada, sob a vigília do vizinho, nu na sacada. Durante o trajeto, notou o malabarista de benga no semáforo, ainda sem sucesso. - Talvez p***o de borracha voando deixou de ser novidade nessa cidade. - comentou para si pouco antes de dar um espirro, catalisador do segundo clarão de sua íris, ateando fogo nos pênis de borracha. Mesmo diante da situação, o malabarista continuou os arremessos, aumentando a velocidade para não queimar as mãos. A cena icônica fez motoristas e pedestres baterem palmas para a linda cena circense de pirocas voadoras molengas flamejantes. Com a mão no rosto e confuso, encostou na parede até se restabelecer, indo para o ponto de ônibus logo em seguida. O veículo chegou; fez sinal; entrou;passou a catraca e sentou-se num banco afastado. Notou estar à dois bancos de distância do garotinho cocô-com-milho do dia anterior, cuja companhia era seu pai carrasco arremessador de gente. Contudo, a preocupação era mínima, poisa exaustão era digna de perder um braço sem sentir dor. Ao reconhecer Roeh, o garotinho iniciou a encarada fatal, pouco duradoura, pois a indiferença causou angústia e raiva. Indignado, tirou do bolso uma bolinha de gude e acertou a cabeça de Roeh, porém, a dor não venceu seu estado de torpor. Embraveado, o anjinho tira do outro bolso um peão de madeira com ponta de prego. Malevolamente arremessa a pelota na testa de Roeh, o qual parecia não sentir dor, afinal, a fadiga parecia ter desligadoseu sistema nervoso para economizar energia. Insatisfeito, o querubim desceu sorrateiro do banco e caminhou pelo corredor, segurando nos suportes das cadeiras até alcançar Roeh. - Ei! Roeh não deu atenção. - Seu bêbado. Acorda! - o alecrim dourado chacoalhou Roeh, o qual demonstrou reação tal qual um boneco de pano. - Vai ver só! - respondeu o gurizinho. Sugou do seu âmago o puro e consistente catarro, digno de reverência, concentrando a gosma na mão enquanto subia o banco e lambuzavao creme na cara de Roeh. Quando a hipnose do sono de Roeh sumiu, debateu-se e derrubou o menino. Tentou ajudar, mas foi barrado pelo choro histérico, alertando o pai, que sabia para onde olhar,direto para Roeh, a qual tentava uma segunda ajuda, mas o moleque não parava de espernear. - Não encoste, porco! Você está com ranho na cara! Ao se limpar, sentiu a presença do pai fungando no cangote. - Além de bater em crianças, fica se lambuzando de ranho? Você é retardado? Ciente de ser arremessado de novo independente da resposta, e ainda afetado pelo sono, dor no corpo e alienação ao mundo, adotou uma postura diferente, de quem não tem nada a perder. - Vá se f***r, seu p*u no... Não precisou sequer completar o cupara ser pego pelos ombros. - Moleque! Vai aprender a não mexer com meu filho e a me desrespeitar. Sob o urro de alegria do garotinho, Roeh foi suspenso como uma toalha no varal. - Espero que tenha um bom plano de saúde moleque, porque quando tocar o solo, só restará sua carcaça fedorenta. A face de Roeh escureceu. Sentia a raiva lhe consumir o corpo, correndo por suas veias,bombeando o sangue da carnificina. A princípio, o pai estranhou a calmaria de Roeh, mas estava convicto em jogá-lopara fora independente da reprovação dos demais passageiros. Entretanto, o calor de uma chapa quente lhe obrigou a largá-lo. Roeh caiu em pé, cabisbaixo e com o cabelo sobre o rosto. Quando encarou o pai, este pareceu ter visto o inferno. ◇◇◇ O ônibus parou no ponto seguinte, mas a porta da frente não abriu, para estranheza daqueles que fizeram sinal. Quem abriu foi a porta de trás, num clarão dourado seguido deum corpo truculento arremessado, e logo atrás um menor voando feito passarinho. A porta dianteira abriu, e o motorista, vidrado, apenas fez um gesto para as pessoas subirem, sem questionar nada. ◇◇◇ Para alívio dos passageiros, Roeh desceu na parada próxima à escola, sendo pontual pela primeira vez na vida. Ao entrar, percebeu os alunos revirando desesperados seus livros e anotações. Seguiu até sua sala em silêncio, sentou-se e baixou a cabeça, sinalizando o improdutivo dia. Em cinco minutos, dormiu. Estava em pé, numa quadra de cimento, abaixo de uma tabela de basquete retorcida e enferrujada,denotandoseu abandono. Não entendia como haviaparado naquele lugar, mas sentia um frio na espinha com o assovio do vento,vindo de lugar nenhum. Aproximou-se da grade que rodeava a quadra e a sacudiu inutilmente. Tentou gritar, mas sua voz não saiu. Mesmo tendo a visão limitada pela névoa, avistou ao norte, um homem de caminhar contemplativo, que atravessava escombros do que um dia fora uma cidade,dedicando um precioso tempo diante de um cipreste, como quem aprecia uma obra de arte num museu, desaparecendo na neblina em seguida. Do lado opostohavia uma silhueta arrastando algo no horizonte.Com a redução do nevoeiro, o indivíduo se relevou: um garoto puxando com dificuldades um corpo pesado demais para sua idade. Roeh gritou, mas o som não propagava. De uma das rachaduras da quadra, pegou uma pedra e arremessou-a por cima da grade, acreditando chamar a atenção, mas foi um fracasso. Ao sair de suas mãos, a pedra desintegrou frente aos olhos. Tentou escalar a grade, mas não saiu do nível do solo, pois ela se movia junto. Preso e incapaz de saltar, sacudiu-aenraivecido num ato desesperado, enfiando a mão por uma a******a. - Ei, você! Me ajude! Me ajude. - gritava Roeh, mas o som não reverberava. Nesse instante, presenciou maravilhadosua mão esfarelar igual a pedra, sem dor. Desta vez, o garoto no horizonte o notou. Roeh tentou retirar sua mão, mas algo o prendia durante a fragmentação. O céu foi coberto por uma cortina de fogo,estendida até o fim do mundo, transformando o ambiente cianótico um fulgor dourado. A todo custo,clamou por socorro, mas o único ali capazde ajudá-lo, nada fez a não ser dizer: - O céu está caindo, Roeh...mas eu posso ajudá-lo. As chamas despencaram do firmamento, cegando Roeh num clarão cataclísmico. Em seguida, veio o silêncio. E após o silêncio, seu nome. - Roeh... - um eco. - Roeh. - uma voz normal. - Roeh! - um grito. O garoto acordou aos prantos, com a cara no chão, encarado por seu professor. - Roeh! Acorde! - repetiu o homem. Roeh esfregou a cara. - Quando vai aprender a ter respeito nessa sala, Roeh? - Professor, eu... - Chega, Roeh. Não quero ouvir suas desculpas. Vamos. Só falta você apresentar o trabalho para a prova de ciências. O pavor do sonho tornou-se realidade. - Trabalho? Bem... Devido ao cansaço, havia se esquecido de pegar o trabalho com Gail. - Esqueci em casa, professor. - arriscou. - Bom, neste caso, sua nota é zero. - Zero?! - questionou desesperado. - Professor, eu fiz, é que ontem... - Não me interessa o ontem. O trabalho foi pedido dois meses atrás. Se não o fez durante esse tempo, um dia extra não resolveria o problema. - Mas... - Venho me decepcionando com você há um bom tempo. Seu descaso em minha aula é pura grosseria. Roeh não tinha argumento e nem disposição energética para continuar com a discussão, restando-lhe assistir o professor sentar-se, e com uma caneta vermelha, riscar o fichário. - Roeh, você está de recuperação em minha matéria. O resto da sala está livre de ciências. - alertou o professor. Qualquer objeção teria sido inútil,visto o festejo da sala, tendo como única opção sair com a aura da derrota, antes que o professor resolvesse fazer outra de suas humilhantes declarações. Deixou a sala sob o semblante pouco amistoso do professor, que dizia sofra as consequências, garoto. No corredor, o festejo inacabável dos alunos era ensurdecedor. Desviou o caminho e passou frente a sala onde Gail estava com sua saudosa espada medieval sacolejando de um lado para o outro, finalizando sua explicação sobre a fantástica jornada a martelo e fogo. Entretanto, antes de ir pra casa, decidiu comer,pois havia saído de casa com o estomago vazio. No refeitório, deparou-se com uma grosseira fila frente a cantina, não tão pior quanto a do pão e leite de soja, a qual era duas vezes maior e agraciada com repetentes. Enfiou a mão no bolso a procura de dinheiro e encontrou o suficiente para comer. Passados vinte e cinco minutos no empurra-empurra, Roeh chegou até o balcão. Era um lugar bonito e bem arrumado. Podia não gastar dinheiro, mas se tratando da sua bombástica segunda recuperação, considerou vagar o máximo que pudesse. - O que vai ser, garoto? - perguntou o cantineiro. Roeh analisou os salgados no vidro e apontou para uma esfiha de carne. O cantineiro laçou o salgado com um guardanapo e entregou-lhe. Em seguida pediu um refrigerante. Quando o cantineiro retornou com o produto, Roeh sentiu a garrafa quente. - Você não tem gelada? - As geladas acabaram. São dois contos. - cobrou o homem. - Bah, se é assim eu não quero.- Roeh devolveu a garrafinha. A mão grande do cantineiro envolveu a de Roeh e a garrafa, e sacou no dente a tampa. - Ela está aberta. Dois paus! - havia firmeza na voz suficiente para obrigar Roeh a pagar, antes que a próxima tampa aberta fosse sua cabeça. Sentou-se num banco, assistindo o pátio esvaziar com o fim do intervalo, exceto a fila do pão de soja: esta continuava interminável. O cheiro do salgado entrou em suas narinas e preparou o estômago para a primeira mordida, macia e suculenta. A segunda foi seguida de um gole do refrigerante, que parecia ainda mais quente. Em paz, mordeu uma terceira vez, sendo premiado com um fio grosso e preto. - p**a que pariu. - cuspiu o pedaço no chão, limpou a boca e fuçou o interior do salgado, encontrando outros. - Que nojo. Aproveitou o fraco movimento da cantina para tirar satisfações com o cantineiro. - Senhor. - Vá embora. O salgado acabou. - respondeu m*l-humorado. Roeh suspirou e persistiu. - Não vim comprar nada e sim reclamar. A palavra reclamar não soou bem aos ouvidos do cantineiro, que se debruçou sobre o balcão. - Meus salgados são ótimos. - Sim, claro, são bons. O problema é vir com teu saco junto. - estendeu o salgado. - Não vejo nada. - Tá cheio de pelos! O cantineiro enfiou a mão dentro, fisgou os fios e puxou até sair por completo. - Não tem mais. A expressão de Roeh não foi das melhores. - Você está de s*******m, não é? - Que m*l há? Eu tirei. - O problema não é tirar, mas sim o que era! - Ah, não seja exagerado. Está dizendo que era pelo? - Exato! - afirmou Roeh. O único impeditivo dessa conversa não ter finalizado com violência foi a aproximação de um professor. - E aí? Vai devolver meu dinheiro ou não? - Roeh retrucou. - O que está acontecendo? - intrometeu o professor. Roeh apontou para o salgado e depois para o fio que estava na mão do cantineiro. - Tinha um pentelho de saco no salgado e eu quero meu dinheiro de volta. A repreensão na face do professor foi desarmada pela sapiência ligeira do cantineiro. - Garoto, torno a repetir: isso não é pelo. - É o que? - questionou Roeh. - Isto é, bom, isso é apenas um fio do pincel... Roeh parecia desconfiado. - Do pincel... - pausa- ...usado para passar gema de ovo em cima dos salgados, para dourarem. É isso. O professor sorriu e tocou o ombro de Roeh. - Não é para tanto, certo garoto? Se é fio do pincel culinário, então é limpo. - deu dois tapinhas amigáveis e afastou-se. Roeh estava perplexo com a existência de alguém tão cretino.Quando o professor deixou o local, o cantineiro mudou a expressão. - Agora, suma daqui! Não era um bom dia, e Roeh não desejava estendê-lo. Ignorou a discussão e retornou ao banco, encontrando sua garrafa de refrigerante tombada por um cachorro lambão. - Pelo menos alguém tem sorte aqui. Tome. - Roeh jogou o resto do salgado. - Bom lanche, amigo. Caminhou até o portão, mas não conseguiu abrir devido ao cadeado. - Moleque! Tentando fugir? Ninguém foge da minha escola! - berrou o inspetor Joh, chamando a atenção de Roeh. - p***a! Quando tô atrasado, não me deixa entrar. Quando quero sair, me prende. Sem chance, Joh. Roeh fugiu para o lado oposto, atravessando latões de lixo e dobrando a esquina, por detrás de um prédio usado como guarda-volumes, mas para seu azar - se não fosse o bastante por um dia-,era o fim da linha. Havia uma grade impedindo-o de chegar até a rua. Além de alta,era protegida com arame farpado. - Calma lá, Joh! Estamos em semana de prova e por isso posso sair cedo! - explicou Roeh. - Os outros alunos, sim. Você, não. -Ontem eu saí cedo e você não me perseguiu! O que mudou em um dia? - antes que Joh pudesse formular algo, Roeh soube a resposta ao avistar seu professor de ciências acompanhando toda a ação pela janela. - Filho da p**a! - Hora de voltar para sala, moleque! Roeh encostou na grade e pensou: agora eu estou perdido. Se me pegar, vai chamar meus pais, que além de me baterem, vão descobrir a segunda recuperação, e eu vou passar o resto da minha vida fazendo compras com minha vó. Com as mãos agarradas firmes na grade, desejou cederem. E cedeu. A grade em suas costas rasgou e derrubou-o de costas para o lado de fora. Levantou e fugiu assustado sob a admiração de Joh que, ao invés de correr atrás, observava a grade em brasa no chão, recortada no formato exato da silhueta de Roeh. - Moleque safado.
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