Roeh atravessou aos trancos uma avenida em passos frenéticos, até esconder-se num terreno baldio, local este usado como depósito de lixo dinâmico, pois bastava arremessar o dejeto por cima do muro. Deitado na beirada desmatada havia um mendigo intrometido.
- Mininu!
Roeh fitou de soslaio.
- O que?
- Mi emprexta fogo?
- Fogo? Que d***o fogo? Eu não fumo e não tenho isqueiro comigo.
- Comu axim? - resmungou o mendigo enquanto mascava a ponta de seu cigarro de palha. - E ixo aí na tua mão é u que?
Roeh vislumbrou abismado seus dedos incandescentes. Desesperado, sacolejou a mão até extingui-lo.
- Oia, bélu truqui, mininu. Mas venha, acenda a palhinha aqui pro mindingo...
- Agora não! - berrou Roeh afastando-se para o fundo do matagal que clamava por uma poda. Apoiou-se no muro pichado e encarou suas mãos com receio.
- Que é isso, caramba? - molhou os lábios. - Por que isso está acontecendo comigo? - uma confusão mental lhe tomou os pensamentos, alocando peça por peça de suas lembranças até formar uma linha de raciocínio coerente: a cerca na escola se soltando, o sonho estranho com o céu de fogo, o surto no ônibus, o refrigerante esquentandoe o cachorro do vizinho se transformando numa pelota de fogo. Algo havia mudado.
- Será que é esse o motivo de estar cansado desde cedo? Estou morrendo? Pegando fogo? Mas... - apontou as mãos para a parede, mas nada ocorreu. Balançou para cima e para baixo durante alguns segundos, sem sucesso.
- Qui doidera é exa? - perguntou o mendigo ao ver Roeh mover os braços, arremessando algo invisível. O garoto não deu atenção e continuou a gesticular, agora com gritos.
- Acende! Acende, p***a! Queima!
Curioso, o mendigo comentou através de sua empalhada barba esbranquiçada.
- Mininu. Tu tá bêbado é? Vô chamá a puliça!
- Cala a boca! - retrucou Roeh irritado não pela perturbação e sim por não conseguir replicar as chamas. Pegou do chão uma lata de refrigerante e amassou-a sob o constante espreite do mendigo.
-Queima, desgraçada! Queima! QUEIMA! - berrou desvairado. Preocupado, o mendigo interferiu:
- Ei mininu. U que qué queimar aí, heim? - deu um pescoção por cima do ombro de Roeh. - Me dá um poco do que você tá queimando aí. Um tirinho só pô véi...
- Saia daqui! - gritava focando a lata!
- Poxa, apruveita e queima a palhinha tamb... - para infelicidade do mendigo, além de não ter conseguido terminar a frase, tombou no chão devido ao urro enfezado de Roeh. Apesar da queda, sua expressão era de admiração. Não só os dedos, mas todo o braço do garoto ardia em chamas. Em segundos, a potência levou a lata ao seu estado líquido. Aquele mesmo fulgor se refletia no interior de sua íris, concedendo-lhe um aspecto dourado que sugeria sentenciar o mendigo a um julgamento eterno.
- Satanás! - disse o indigente.
Em seguida, o fogo apagou, retornando também a cor castanha de seus olhos. O mendigo ajoelhou aos pés de Roeh, em reverência.
- Pu favô, sinhô das trevas. Perdoe meus insultos e poupe minha alma.
Confuso, e com medo de ser visto, Roeh tocou a cabeça de seu adorador e em solavancos abençoou.
- Seja bom e... e não, não... não roube nem mate. Amém! - fugiu deixando o mendigo de mãos em louvor aos céus.
- Ó Senhô, perdoaí-me. Fui tucado pelu demonho. Purifique minha alma!
Um jato de água surgiu do céu e banhou o mendigo, mas não com água benta, e sim, com chorume arremessado por cima do muro por um morador.
- Se é para berrar, faça isso na igreja, seu maluco. Deus não é surdo! - advertiu.
◇◇◇
Na opinião de Roeh, aquele dia deveria acabar, e com receio da situação, decidiu procurar Gail, para juntos, tentarem entender o que estava acontecendo.
- Ei, Roeh. Por que não passou em casa para pegar o rastreador térmico para seu trabalho de ciências?
Roeh não deu ouvidos, visto estar preocupado fechando portas e janelas da garagem.
- Roeh, você me ouviu? - questionou Gail preocupado. Roeh deixou apenas uma luminária acesa.
- Você precisa me ajudar. - pediu nervoso.
- O que aconteceu, cara?
- Eu tô pegando fogo! - esclareceu, certificando-se de que não estavam sendo vigiados.
Gail arqueou a sobrancelha.
- Qual é Roeh. Você entra aqui, fecha tudo, apaga as luzes e vem me falar que está com fogo?
Roeh deu um soco na mesa.
- Eu não estou brincando!
- Calma. Conte o que aconteceu.
- Eu estou pegando fogo! - pensou um pouco e reformulou. - Meu corpo, de vez em quando, está pegando fogo.
- Tá de s*******m!
- Não estou não.
- Tá dizendo que pega fogo e ainda estáaqui, vivo?
- Me pergunto até agora. Por isso vim até aqui. Preciso de ajuda.
- Tipo?
- Sei lá.
Por não notar diferença alguma, Gail supôs que Roeh estivesse bêbado ou drogado, mas evitou o comentário para não o perturbar.
- Me mostra. - pediu Gail.
- Não posso.
- Por quê?
- Eu não controlo. - elucidou. - Simplesmente aconteceu. Estou desesperado.
- Se eu não puder ver, não tem como ajudar.
- Você está duvidando, não é? Pois bem... - Roeh tentou procurar algo na garagem para servir de demonstração, sem sucesso.
- Talvez precise ficar irritado. Se me lembro bem, foi nessa condição.
- Irritado? Tipo bravo?
- Isso.
- Bom, e eu te irrito de que forma?
- Sei lá.
Quando nos é requisitado o insulto, ele não vem. Mas quando brota do coração, surge tão natural quanto uma diarreia. Gail não sabia por onde iniciar, mas o desespero na face do amigo era tão comovente, que decidiu atirar no escuro.
- Seu i****a!
Roeh franziu a testa.
- Sua mãe é uma porca imunda!
Nenhuma reação.
- Você é um burro e não sabe porcaria nenhuma, além de viver nas minhas custas!
Roeh arqueou uma sobrancelha, em discórdia.
- É para irritar e não humilhar.
Gail riu constrangido.
- Tenho sonhos eróticos com sua irmã!
A perplexidade estampou a cara de Roeh.
- Gail, qual é. Não quero saber de seus desejos pornográfico. Quero algo irritante. Sei lá, você me conhece a um tempão e deve saber de algo que...
Uma pá de construção acertou a testa de Roeh, derrubando-o no chão.
- Ei, você é louco? - repreendeu com a mão na testa.
Gail elevou a pá e executou um segundo golpe, desmontando o corpo de Roeh. Antes da terceira pancada, rolou e engatinhou para longe.
- Pare com isso Gail. Você vai acabar me matando! - o terceiro golpe zuniu em seu ouvido. Desesperado, afastou-se aos tropeços até ser encurralado.
- Pode parar. Não precisa disso! - Gail parecia não dar ouvidos. - Gail, corrija-me se eu estiver errado, mas você começou isso para me ajudar e agora pegou gosto, é?
A quarta pancada só não acertou a cara de Roeh, pois o instinto o fez usar os braços para se defender. E ao invés de parar, acabou por incentivar Gail nas pancadas, martelando o amigo no chão, rindo endoidecido.
- Pára Gail. Pára. PÁRA! - em seu último grito, Roeh estendeu a mão e segurou o cabo da pá, interrompendo o ataque. O brilho dourado tomou frente a íris castanha, acompanhada das dançantes chamas em suas mãos. Assustado, Gail afastou-se enquanto presenciava a pá incinerar-se.
- Deus é pai! - exclamou Gail. - Você pegou fogo, cara.
Dolorido, Roeh resmungou:
- Eu te disse.
- Desculpe, mas eu precisava ver. E foi impressionante. Não machuca?
- Não. - Roeh se levantou.
- Cara, que doideira. Nunca vi isso. Você parece um daqueles heróis dos gibis.
Roeh alisava os braços na tentativa de amenizar a dor das pazadas.
- Só que não consigo controlar quando surgem.
Gail sentou-se perdido em pensamentos.
- O que eu faço? - requisitou Roeh.
- Bom. Eu não tenho a mínima ideia. Você pega fogo sem se machucar. Isso é bizarro. Você devia procurar um canal de televisão.
- Gail!
- Ok, ok. Tudo bem. Vamos fazer o seguinte. Vamos até a escola.
- Para quê?
- Vamos falar com o professor Dani.
- O professor de ciências? Ele me reprovou hoje porque não entreguei o trabalho!
- Esqueça isso. Ele poderá nos dar uma explicação sobre o que aconteceu com você.
- Melhor não. Se isso espalhar, irá piorar.
- Não vamos contar para ele. - explicou Gail. - Vamos apenas questionar sobre um ser humano pegar fogo. Com isso conseguiremos pelo menos uma pista.
- Entendo.
Gail abriu a porta da garagem.
- Vamos.
- Antes de ir preciso de um boné e um óculos de sol.
- Para que?
Roeh sorriu com certo constrangimento.
- Inspetor Joh.
Gail riu e ambo partiram para a escola.
◇◇◇
As aulas no colégio eram divididas manhã, tarde e noite. Dani, o professor de ciências, era um caso à parte, pois diferente dos demais,preenchia seu tempo livre no laboratório, causando estranheza até mesmo no diretor.
Roeh e Gail entraram sob a vigilância desconfiada do inspetor Joh, cuja sensação era de ter visto o moleque de boné e óculos escuros, porém, a natureza chamava, e desta vez, ignorou sua intuição por conta da indigestão.
- Não precisa se esconder, cara. Ele deu linha. - alertou Gail para Roeh, escondido na camiseta igual tartaruga dentro do casco. Só retirou o rosto depois de espiar por um furo e certificar da verdade.
- Para onde agora?
- Ué, para o laboratório, é claro.
- Sim, eu sei. Mas por onde? - indagou Roeh.
- Roeh. Você não sabe onde fica o laboratório? - cruzou os braços e arqueou os ombros. - Cara, você está nesta escola desde o primário.
- Ah, quem se importa com o laboratório? Eu não vou ser nenhum cientista e nem físico nuclear!
- Mas cara, tivemos aula lá semestre passado com o professor Dani. Ele ainda comentou sobre o trabalho valer no lugar da prova.
A face de Roeh se enrijeceu.
- Vamos ficar aqui discutindo bobagem?
O silêncio seguinte foi suficiente para ambos saberem a resposta.
◇◇◇
Após lances de escadas e trespassar por corredores, Gail e Roeh chegaram até o laboratório da escola. O lugar era amplo, com janelas de vidro por toda a parede,semelhante a um aquário. Roeh avistou o professor caminhando de um lado para o outro,anotando e vistoriando pertences.
- Ok. Como vai ser?
- Não tem essa de como vai ser, Roeh. Vamos entrar e falar com ele. Deixa comigo, ok?
Roeh acreditou na esperteza ímpar do amigo.
- Professor Dani! Você por um acaso leu, O Quarteto Fantástico? - disse Gail adentrando ao laboratório.
- Perdão? - respondeu Dani, sob um encarar perplexo pela entrada bárbara do aluno.
Dani era conhecido por ser um professor avoado. Não participava com regularidade das reuniões da diretoria, dedicando-se apenas ao que lhe era interessante. O cabelo ruivo bagunçado o tornava um tanto exótico.
- Leu ou não? - Gail sorria, retribuído com frieza digna de um tapa na cara.
- Não! - respondeu o professor sem a mínima vontade. Desarmado, Gail atacou por outro lado.
- Na verdade, estamos aqui para resolver o problema de uma aposta.
- Não tenho tempo para apostas. Deveriam aproveitar melhor o tempo terminando seus trabalhos escolares à tempo. - alfinetou, se referindo a Roeh e sua recuperação em ciências.
- É uma história de super-heróis. Um dos membros é o Tocha Humana, a qual consegue atear fogo em si, sem se machucar. Para Roeh, um poder assim só pode ser através da venda da alma para o d***o.
Dani não deu ouvidos e Roeh esbanjou aversão.
- Eu disse que havia uma explicação científica.
Nenhuma reação do professor.
- E sabe qual a resposta dele? - Gail sorria sabendo do impacto de suas próximas palavras. - Não há explicação científica e tudo era obra do cramunhão.
Desta vez, Dani parou, ajeitou os óculos e deixou as anotações de lado.
◇◇◇
Dani decidiu responder à pergunta, mesmo lhe ocupando parte de seu tempo.
- Não fico explicando teorias sobre personagens de histórias em quadrinhos, mas, neste caso, vou abrir uma exceção, afinal, acho que fará bem para a mente de vocês. Talvez incentive vocês a estudarem. - repetiu a cutucada.
Roeh não conseguiu captar se era insulto ou elogio. Decidiu pelo insulto.
- Estamos ouvindo! - disse Gail cutucando Roeh para prestar atenção.
Dani ajeitou os óculos.
- A pele humana, como quase todo o órgão celular vivo, não tem tolerância ao fogo. Isto quer dizer que, extrapolando os limites, ela queimará e derreterá. - retirou as mãos do bolso e cruzou os braços. - E um homem flamejante, se tivesse a capacidade epidérmica de suportar o calor a esse nível, não seria obra do d***o. - era visível o descontentamento com o comparativo.
- Então? - incentivou Gail.
- Teoricamente, as mitocôndrias, uma das organelas celulares importante do nosso corpo, relevante para a respiração celular, poderia gerar calor suficiente para inflamar um corpo, pois é a responsável por obter energia para as células. Já houve casos de combustão espontânea em humanos, apesar de não terem sido comprovadas. Conforme falei no início, a pele humana não tem essa resistência. Aos quarenta e dois graus, as proteínas começam a cozinhar e todo o organismo entra em pane. Qualquer valor acima disso é fatal. - voltou a colocar as mãos no bolso.
- E se o fogo não esquentasse a pessoa? Digo a pele?
- Se o fogo não queima, qual a serventia de um tocha-humana? Iluminar o escuro?
Roeh desfez o riso ao notar a indiferença de Dani.
- Sim, entendo. Mas digo, e se essa chama pudesse esquentar tudo, menos quem controla?
- Nesse caso, seu desejo está fora da esfera científica. O fogo é fato, uma verdade absoluta e irrevogável. Portanto, não se considera em momento algum na ciência, um fogo sem queimar. Se houver, não deve fazer parte do que conhecemos como existência.
- Portanto, é impossível! - afirmou Gail.
- Não diria impossível, e sim, impraticável para os nossos padrões.
- Excelente. Foi esclarecedor. Obrigado, professor Dani.
- Agora com licença. Tenho trabalho a fazer. - Dani esbanjou uma face azeda e deu as costas. A princípio, Gail não entendeu, mas ao tocar o ombro de Roeh para irem embora, compreendeu o motivo da irritação.
Roeh estava dormindo, em pé.
◇◇◇
Roeh esfregava o rosto na tentativa de afastar sua sonolência.Areia nos olhos, dizia sua avó.
- Posso te perguntar uma coisa? - questionou Roeh.
- Claro.
- Como conseguiu fazer o professor Dani falar com a gente? Ele não parecia disposto e de uma hora para a outra, resolveu colaborar.
- Simples, Roeh. Para qualquer aficionado pela ciência, afrontar seu conhecimento é igual insultar a mãe. Após misturar religião, não me admiraria se ele tirasse a cueca pela cabeça.
- Mas você falou do capeta, demônio. Isso não é religião.
- Ah, e daí? É tudo loucura de mesma procedência.
- E o que vamos fazer quanto ao meu problema? Eu não vi solução nenhuma.
- Você estava dormindo, Roeh.
- Sim, claro. Mas estaria acordado se fosse interessante.
- Roeh, tecnicamente, você não pode se atear fogo sem se matar. Ou seja, se no planeta não existe essa possibilidade e nenhum ser vivo aqui pode fazê-lo, você tem algum dom alienígena.
- Talvez eu tenha sido abduzido e não percebi.
- Te enfiaram sondas no cu. - Gail desatou a rir.
- Vá se f***r, Gail.
- Labaredas anais.
Houve um silêncio entre os dois, irrompido por Roeh.
- Mas digamos ser algo real.
- O fogo na raba? - Gail sentia-se um comediante.
- Não!Sobre as chamas serem alienígena.
- O que tem?
- Como entrei em contato com isso?
Gail coçou a cabeça.
- Não tenho a mínima ideia. Deixaremos isso para depois.
- Depois?
- Você disse não controlar o fogo, certo?
- Sim. Se manifesta sozinho. Tentei fazê-lo ativar, mas não consegui. Lembro-me de manhã,onde meu quarto estava cheio de fumaça. Até mesmo o cachorro do vizinho achou esquisito.
Gail ouvia com atenção.
- Cachorros sentem essas paradas. Algo mais?
- Sim, no ônibus. Um babaca com um filho merda me incomodaram tanto que eu os joguei para fora num lampejo de raiva. E teve o mendigo.
- Mendigo?
- Sim, um indigente próximo a mim quando tentei ativar o fogo.
- E conseguiu?
- Não. Eu tentei, mas nada acontecia, até que o velho me aborreceu tanto que o fogo...
- É isso! - concluiu Gail. - Você não o controla porque ainda está no início. É igual aprender a andar. Aos poucos o corpo vai se adaptando e se acostumando, até obter domínio.
- Está me dizendo que vou conseguir controlá-lo, sem precisar fazer nada?
- Quase isso. Deve ser algo em processo, e daqui a pouco, será tão mecânico quanto mover um braço.
- Isso é verdade. A ocorrência desses desastres flamejantes vem aumentando durante o dia. Portanto, só nos resta esperar.
- Esperar? - a face de Gail se enegreceu. - A partir de amanhã, depois da escola, iremos para minha casa.
Desatou a andar enquanto Roeh, ainda imóvel, gritava.
- Para sua casa? O que vamos fazer lá?
Gail se virou, com olhos vidrados.
◇◇◇
Chegou em casa após o horário do jantar, a fim de minimizar a bronca por conta da segunda reprova. Entretanto, ao atravessar a sala, deu de cara com sua mãe e um homem, sentados na penumbra, frente à televisão.
- Oi, Roeh. - sua mãe sorriu.
- Aconteceu algo?
- Por que não se senta aqui pertinho? - deu tapinhas no sofá.
Roeh desviou a atenção para a visita.
- Eu tô bem aqui. Pode falar.
O velho cochichou.
- Filho, veja bem. Só queremos conversar. Poderia por favor, vir aqui?
- Quem é esse cara?
Outro cochicho ao pé do ouvido.
- Sente-se, e eu explicarei, filho.
- Eu disse que estou bem em pé.
No terceiro cochicho, Roeh se exaltou.
- Vai abrir essa boca logo, ou vai ficar só tagarelando no ouvido da minha mãe?
Quando pretendeu cochichar pela quarta vez, a mãe de Roeh o interrompeu, tirando de um saco plástico um lençol todo chamuscado.
- Encontrei isso jogado no lixo.
Roeh empalideceu.
- Além disso, notei fuligem no chão do seu quarto. Quando verifiquei em baixo, descobri os mesmos queimados no colchão.
As mãos do garoto suavam e as pernas, tremelicavam.
- Ainda não falei com seu pai, mas a julgar pelo seu comportamento irritado de hoje de manhã, em conjunto com essas coisas, não tive opção...
- Mãe, quem é esse cara? - Roeh estava cagado de medo.
- Sou o reverendo Pennus, e vim em nome de nosso senhor Jesus Cristo, expurgar o demônio que se alojou nesse lar, e se encostou em você.
- Mas que merda é essa? - a tensão nos ombros de Roeh suavizaram em segundos. - É isso? Só porque tem uns queimadinhos no lençol e colchão, e eu estar de m*l humor, é porque tem a bosta de um demônio dentro de casa? Faça me o favor...
- Filho, não fale assim. O reverendo só quer ajudar.
- Mãe, se tem um demônio aqui dentro, é o gato safado. Exorciza ele!
- Mânhê! O Roeh ficou de recuperação em ciências! - berrou Syl, passando correndo, do quarto para cozinha.
- p**a merda... - Roeh arqueou as costas. - Aproveita e expurga essa menina junto.
- Roeh, você pegou outra recuperação?
A tensão voltou.
- Mãe, agora não. Estamos tratando aqui de um assunto sério!
O silêncio constrangedor foi quebrado pela entrada repentina de uma repórter, ao vivo, entrevistando o malabarista peniano do semáforo.
- Estamos aqui numa entrevista exclusiva com o rapaz mais "famoso" da cidade. O malabarista de consolo flamejante, Lildo. Olá, tudo bem?
- Estou ótimo. - respondeu enquanto dois dos seus objetos balançavam de um lado para o outro.
- O "povo" quer saber: de onde veio essa ideia tão original?
- Ah, você sabe como é. Nós, artistas de rua, estamos sempre inovando. Nossa criatividade não tem limites.
- Entendi. E você não pensou que esse ato pudesse ser visto como obsceno, correndo o risco de ser preso ou linchado pela população, por atentado ao pudor?
- Que nada. O pessoal vem me dando apoio, pois valorizam meu trabalho. Estou nesse semáforo há 3 anos. Inclusive, venho recebendo propostas de merchandising. Aguardem novidades..., opa, com licença, preciso ir. O sinal vai fechar. Abraços!
- E lá se vai mais um "artista de rua" que, curiosamente, teve sua arte estimada mais do que saneamento básico nessa cidade. Resta saber se isso é uma esquizofrenia passageira ou m*l caratismo de uma sociedade que considera malabares fálicosmais interessante que desenvolver a cultura local. No fim, sabe o que todos tem mais? Mais é que se fod... - a câmera corta para o âncora do noticiário.
- Esportes!
Quando a reportagem terminou, Roeh havia fugido às pressas para seu quarto, fechando a porta.
- Tudo bem. Vamos devagar com ele. - salientou a mãe.
- Esses demônios estão em todo lugar. - comentou Pennus, horrorizado com a televisão.
Em seu quarto, Roeh deitou-se sem ao menos tomar banho, e apagou em questão de minutos, pois a única preocupação que tinha naquele instante, eram as últimas palavras do amigo:
- Para sua casa? O que vamos fazer lá?
Gail se virou, com olhos vidrados.
- Vamos treinar!