Acendo a metade de um incenso queimado como se a fumaça fosse capaz de me reconectar com minha voz interior. Só que semelhantemente aos livros que gosto de ler, houve um m******e em mim. O amargor do café torrado e moído me lembra que preciso de um cigarro (e eu nem costumo fumar). Inspiro e aspiro arruda com a intenção de me reconectar com sei lá o que, mas não tenho certeza se deveria querer me reencontrar desde que fui convencida pela doutrina da depravação universal.
Essa m***a toda nunca fez tanto sentido. A escuridão em mim, não da maneira sexy, melancólica e romântica que eu costumava pensar, existe. A incapacidade de me ajudar, de fazer qualquer tipo de bem espiritual. Faz todo sentido saber que Deus sabe que meu eu interior está para sempre amaldiçoado. E ainda insistem em acreditar que há algum tipo de salvação para a humanidade através de nós mesmos. De qualquer forma, há algo de dom em nós. E o meu exerço agora, não por escolha própria, mas por não saber fazer diferente e por suspeitar que a deidade me ama mesmo na minha fraqueza.
Eu nunca fui o tipo de pessoa que sabe fingir. Quer dizer, como artista, sou uma ótima atriz. Só que peças de teatro acabam, câmeras desligam e as falas dos roteiros não sustentam toda uma vida. Não suporto a ideia de ser de mentira e, se posso me vangloriar de um pecado, será o do orgulho de ir para o inferno assumindo que eu fiz tudo que era necessário para me levar até lá. Não acho que eu seja boa, não consigo nutrir esse autoengano moderno de que todos somos pessoas maravilhosas que merecem felicidade infinita e paz interior. Temos exatamente o que merecemos como espécie.
Ainda assim, nessa sexta de manhã, consigo sentir a brisa suave atravessando minha janela, os pássaros cantando ao fundo e o gentil sol de primavera. A oportunidade de viver mais um dia me foi dada, assim como foi dada aos meus pais e a empregada doméstica que acaba de cruzar o portão da casa do vizinho. Ela sorri pra mim, com sua beleza de mulher nos seus trinta e poucos, suas marcas de violência doméstica nos braços e os quadris volumosos que foram o berço de três filhos.
De vez em quando, meus pulmões não alcançam o ar (fato sem r*****o com a pandemia mortal que estamos enfrentando) e eu imagino o que acontecerá quando tudo ficar eternamente escuro. Quando os problemas sociais, emocionais e físicos não mais me atingirem. Quando a perda total da saúde for consumada, quando a velha inimiga morte me abraçar. Quando a falta de grana e a v*****e de deixar um legado não forem mais que meros pensamentos que uma vez habitaram a massa mole cinzenta que apodrecerá dentro do meu crânio.
O que acontecerá quando o perfume doce que espalho religiosamente sobre o meu pescoço não for suficiente para esconder que sou de carne, sangue e ossos e que meu espírito não reside mais na estrutura?