Boston – EUA, 2017.
Merlia
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Saio do box do banheiro e logo me enrolo numa toalha branca grossa, pego outra pequena para enxugar meus cabelos médios para que eu retire o excesso de água deles, passo a mão no espelho embaçado para que eu me veja.
Enquanto olho meu reflexo, minha tia quem me criou aparece na porta do banheiro com um sorriso lindo acompanhado de um cupcake e uma única velinha acessa.
Retribuo com um sorriso o gesto que tenho acompanhado durante vinte anos.
— Parabéns, meu bebê. – Uma lagrima cai.
— Ah, titia, não fique assim. – Largo a toalha e acompanho ela ao nosso quarto que fica no mesmo cômodo que o banheiro.
— Você sabe como sou boba com essas coisas, agora venha fazer seu pedido.
— Ok. – Sorri.
Sentamos em minha cama uma de frente para outra, com uma das mãos ela pega na minha e a outra segura o pequeno bolinho a poucos centímetros dos meus lábios.
— Feche os olhinhos e assopra.
Fecho os meus olhos e faço pedido.
Abro meus olhos e vejo minha tia Alex retirar a vela e me entregar o meu bolinho. Sempre foi assim, desde que me entendo por gente, nunca tive uma festa de aniversário tradicional com muitos doces, decorações e todas essas coisas. Mais sou grata por tudo que ela tem feito por mim após a morte de meus pais.
Alex não gosta que tocamos neste assunto, eu sempre fui muito curiosa em querer saber das coisas, e depois de muito insistir ela me disse que meus pais morreram por bandidos, e só, nunca entra em detalhes. Mais acredito que tenha sido um assalto muito violento.
Então o resto dos anos me conformei em saber disso e também por ser muito amada.
— Lia? – Ouço a voz dela me chamar. — Temos que conversar.
— O que foi?
— Sabe que não pode mais ficar aqui no convento, exceto se…
— De jeito nenhum. – Levanto cortando sua fala. — Eu não tenho vocação ou sentido que Deus tenha tocado meu coração para ser freira.
— Então o que faço, se diz que não teve nenhum chamado divino? Eu estou tentando convencer a madre superior esses dois últimos anos, mas não consigo mais.
— Então tenho que ir embora.
— Para onde você iria? Você não conhece o mundo lá fora.
— Mais uma hora eu terei que conhecer. Eu preciso viver titia, conhecer o mundo, conhecer as pessoas, estudar, você sabe que sonho em ser médica.
Vejo ela levantar, cruzar os braços, e olhar pela janela.
— Conheço esse olhar.
— Como assim?
— Sua mãe, era exatamente assim, sonhadora. E olha como terminou.
— Eu não entendo.
— Você não precisa Lia. Eu vou dar um jeito de conseguir um lugarzinho para você.
Ela suspira fundo, pega nas minhas bochechas rosadas e olha nos meus olhos.
— Só quero que o seu destino seja diferente.
Beija minha testa e sai pela porta.
Dou os ombros e volto a fazer o que estava fazendo, troco de roupa, coloco uma saia cumprida na cor bege e uma camisa sem nenhuma estampa branca, a roupa típica deste lugar.
Vou até à janela desejando ser um pássaro para voar bem alto, sento no paradeiro da janela e pego meu livro que estava ali aguardando para que eu logo termine. É sobre um amor obsessivo, louco e obscuro. Duas pessoas que se amam e lutam contra todas as adversidades para ficarem juntos, minha tia quis morrer quando voltei da biblioteca com este livro, porque é o único lugar aonde me permitiam ir.
Coloco uma mexa atrás da orelha e olho o movimento da rua, com poucas árvores e do outro lado casas uma do lado da outra. Em frente uma delas para um carro, de muito luxo. Observo com muita atenção o homem que sai lá de dentro, jovem, mais com aquela barba já se mostrava ser muito maduro. No mesmo instante seu olhar encontra o meu, e um frio na barriga surgi qual nunca senti.
O tal homem, ainda olhando para cima na minha direção, coloca às duas mãos no bolso. Neste instante o mundo parece parar, e as únicas pessoas que existem sou eu e aquele desconhecido do outro lado da rua. Reparo bem em seus cabelos louro escuro, sobrancelhas e barba nos mesmos tons, seus olhos penetrantes, sua boca em um formato perfeito. Alto e corpo atlético que combinava bem com sua roupa de playboy, o que deixava bem claro que esse conjunto de qualidades vinha de muita riqueza.
Logo ele começa a se movimentar após outro alguém bater em seu ombro como se o falasse para andar, então essa troca de olhar termina, meu coração falta sair pela boca e sinto minhas bochechas queimaram. Mais eu achei que ele simplesmente fosse embora, mais quando ele atravessou a rua antes que pudesse sumir das minhas vistas ele deu uma última olhada para trás e deu o sorriso mais lindo que já recebi em toda a minha vida, quer dizer foi o único homem qual olhei de uma forma como se o desejasse.
À noite cai e aquele homem continuou a perturbar meus pensamentos.
— Merlia! – Ouço minha tia alterada.
— Oi tia.
— Escute o que digo, você desde que saiu daquele quarto está com os pensamentos em outro planeta, o que houve?
— Nada.
— Já disse para devolver esses livros cheios de pecado a biblioteca.
— haha, titia, são apenas romances.
— A minha menina, você é tão inocente.
— Por que diz isso?
— Por nada. Agora me escute, consegui um lugar aqui perto, amanhã você irá para um apartamento de um conhecido meu que faz algumas doações para o convento.
Abaixo minha cabeça. E logo uma tristeza me invade, largo o garfo qual apenas brincava com a comida e suspiro fundo.
— Fico triste em ter que deixá-la.
Um sorriso fraco surgi no rosto dela, que logo pega nas minhas mãos.
— Você não ira me deixar. Estarei sempre aqui para vir me visitar, o quartinho não fica longe daqui. Irei pedir permissão para lhe visitar, vamos lhe ajudar arrumar um emprego e um jeitinho para você entrar logo na faculdade de medicina.
Corro para os braços maternos que sempre tive e dou-lhe um grande abraço. Depois de todo um chororô e boas risadas com nossas companheiras, volto ao meu quarto enquanto minha tia Alex vai para sua reunião de oração noturno que acaba quase no meio da noite.
Subo novamente para o quarto, troco de roupa, coloco o meu conjunto noturno nos mesmos tons da roupa anterior, com a diferença que a saia é substituída por uma calça. Vou até o banheiro para escovar meus dentes, lembro de pegar um celular que minha tia me deu qual usava apenas para estudo, ouvir músicas, para outros afins, mais tive que prometer não fazer nenhuma rede social. Concordei. Passo pela janela e de relance vejo novamente o mesmo carro parado na mesma posição.
Paro ali retirando a escova da boca e continuo parada olhando até que o mesmo homem sai do carro, fecha a porta, encosta na mesma, cruza as pernas e ascende um cigarro, e novamente os seus olhos encontram os meus me atingindo com mais força que a primeira vez. Vejo a fumaça sair da sua boca, e por um instante desejo ser aquele objeto e sinto minha pele queimar, não sei por quanto tempo fico ali paralisada.
Só percebo que os segundos se passaram até que ele termina de fumar e joga o resto no chão quando dou um passo para me aproxima mais um pouco da janela, quando vejo uma mulher com roupas provocativas aparecer e beijá-lo. Uma de suas mãos toca sua nuca e a outra aperta a b***a da mulher, e eu poderia jurar que neste exato momento vendo aquele ato pecaminoso o tal sujeito misterioso me olha enquanto a toca.
— Merlia.
Dou um pulo de susto quando ouço minha tia entrar no quarto me chamando. Corro para o banheiro e jogo a espuma da pasta na pia.
— Que susto tia.
— Por que susto? – Olha para mim e a janela ao mesmo tempo, se aproxima e olha para fora procurando o que tanto olhava. — Já disse para não ficar perto dessa janela à noite. – Assim que termina fecha a cortina.
— Nada. – Falo sem jeito.
Me encara desconfiada, mas não pergunta mais nada.
— Eu vim falar para você colocar nossos despertadores para tocar amanhã às sete. Eu estava chegando na capela quando me lembrei.
— Pode deixar.
Ela me dá, a benção e sai pela porta. Corro para a janela e arrasto apenas uma frestinha da cortina para o lado e o que eu procurava já havia desaparecido.
— O que deu em você em Merlia? Por que isso por um desconhecido? – Falo comigo mesma.
Dou os ombros e penso que amanhã será um novo dia para min, que uma nova vida me aguarda e sei que todos os meus sonhos quais pedi durante a vida vão começar a se realizar.
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Finalmente as poucas coisas que tinha foi levado ao pequeno apartamento que minha tia conseguiu para mim perto deste convento, qual foi meu primeiro lar. Minha nova casa era pequena apenas para mim mesma, sem muitos móveis, apenas o necessário e com o tempo eu poderia ir comprando quando arrumasse o emprego.
Quando entrei pela porta, fiquei feliz em saber que aquele lugarzinho seria meu. Os cômodos são pequenos eu não teria que dar muitos passos para mudar de ambiente, com as cores claras deixa o local bem mais simples, mais com certeza que com o tempo deixaria a minha cara.
Agora vim de volta com minha tia Alex para o convento, por fim chegou a nossa despedida.
— Eu sentirei muito sua falta. – Digo dando um grande abraço nela.
— Fala como se fosse se livrar de mim, né mocinha! Haha, mas não irá ser tão fácil. – Debocha.
Antes que eu pudesse retrucar, seu semblante muda.
— O que foi tia?
— Tenho que lhe entregar uma coisa que guardei por todos esses anos.
Vejo ela caminhar em passos lentos até o nosso guarda-roupa e pegar uma caixinha. Vindo de volta na minha direção, observo o objeto em suas mãos: É retangular, seu fundo é um rosa bem claro com bastante detalhe em arabescos dourados, era tão brilhante seus detalhes que parecia ser de ouro.
Quando pego percebo que no meio da tampa da caixinha tem o desenho de um dragão. Ergui olhos para minha tia e seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Essa caixinha era de seus pais, aí contém fotos, cartas, uma pulseirinha sua, entre outras coisas.
Olho bem para objeto qual estava em minhas mãos e sinto um grande aperto no meu coração ao ver o que aquele simples presente me causou.
— Obrigada titia!
Me jogo em seus braços e logo as lagrimas surgem, e a falta que ela irá me causa já se faz presente.
Depois de muitas lágrimas e uma longa despedida de todos que ali viviam, finalmente saio daquele lugar, e respiro fundo me preparando para uma nova vida. Não abandonarei minha tia, a única família que tenho, virei visitá-la semanalmente e prometi que quando ganhasse um dinheirinho eu ajudaria ela.
Olho para trás e vejo aquele grande prédio com um monte de janelas e bem na entrada uma cruz gigante no topo da fachada. Dou um sorriso fraco e sigo minha direção ao meu novo lar.
A rua com um pouco movimento nesse fim de tarde me assusta um pouco, porque raramente sai sozinha. Sempre para ir à biblioteca ia acompanhada de uma das irmãs. Mais abraço forte a minha caixinha e continuo andando.
Distraída em meus pensamentos...
— Se gritar eu mato você. – Ouço uma voz grossa no pé do meu ouvido.
Meu coração no mesmo instante gela e o desespero me consome e quando me dou conta que estou sendo assaltada.
— Me passa essa caixa devagar e se tentar uma gracinha atiro em você.
— Moço, por favor não faça nada comigo, mais eu não posso te entregar essa caixinha.
— Eu não te perguntei nada. Se vire com os olhos fechados e me entregue a p***a da caixa agora.
Sem saída e ninguém agora na rua para me ajudar, fico de mãos atadas e arrasada por perder a história de meus pais e minha em segundos.
Viro-me bem devagar e com olhos fechados.
— Isso mesmo... Boa garo...
O homem para de falar no meio da frase quando apenas escuto ele gritar, após ouvir também um carro frear com muita força.
— HAAA... POR… FAV…
Abro os olhos e muito espantada vejo um homem bem-arrumado deferindo socos e mais socos no rosto do assaltante.
O vejo bufando e respiração ofegante que seus ombros subiam e desciam. Eu assustada, sem saber o que fazer e paralisada por nunca ter visto algo assim de perto.
— A próxima vez que chegar perto dela eu mato você. – Sua voz grossa sai com muita raiva.
— Desculpa senhor. – O homem diz trêmulo.
O ladrão sai dali como se estivesse vendo o próprio d***o. Meu salvador se abaixa e pega minha caixinha, antes que pudesse se virar passa a mão no cabelo.
E então ali estava ao vivo e as cores o homem qual vi pela janela do meu quarto, qual senti coisas que eu não deveria sentir não agora ou nunca, apenas com o meu marido no futuro.
Então sorriu novamente e aquele foi o sorriso mais lindo que eu já vi. Confirmei de perto.
Literalmente foi o único.
— Oi.
Foi o que ouvi, antes de tudo escurecer.
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