_____ Beijo

2110 Words
Valentina Não fazia sentido algum, mas a sensação de estar prestes a correr perigo era irracionalmente deliciosa. Ao mesmo tempo, inquietava-me saber que qualquer pequeno atraso me faria ultrapassar a linha da iminência para me deixar cara a cara com um lado menos paciente de Caio. Então eu apressei-me ao tomar banho, satisfeita por poder sentir-me limpa após passar todo o dia na escola, e depois voltei até a mochila que a minha mãe tinha preparado só para descobrir que ela tinha realmente colocado todos os itens de higiene básica, como tinha dito, mas sentindo uma inevitável vontade de morrer quando vi as poucas opções de roupas disponíveis. Não acho que seja algo restrito somente à minha mãe, mas ela sempre teve um gosto um pouco controverso quando se tratava de escolher roupas para mim. Então quando me disse que tinha colocado uma roupa bonita, eu já deveria ter imaginado que todas as peças ali dentro seriam as mais cafonas do meu armário. ___Mãezinha, eu amo-te tanto, mas assim não dá... — Choraminguei, erguendo a blusa social bege no meio do banheiro e imaginando o horror que ela ficaria com a única calça na mochila. Mas mesmo sabendo que a combinação seria deplorável, eu não tinha tempo para me lamentar, porque Caio estava me esperando e eu não queria que ele desistisse de me levar para sair devido à minha demora. Então vesti-me, confirmando que a blusa de velha ficava ainda mais horrenda quando combinada à calça marron, e finalmente saí do banheiro abraçando a mesma mochila para tentar esconder o desastre que era minha roupa. Quando parei na sala, um pouco ansiosa por não saber quanto tempo tinha demorado para voltar, eu vi que Caio tinha vestido outra blusa, uma branca de botões com mangas curtas e uma estampa de motocicletas um pouco estranha — mas que ficava muito bem nele, de qualquer forma — e também trocado a sua calça por uma mais justa. E por mais que os seus jeans usuais não falham em mostrar como a suas pernas eram fortes, a que ele usava levava a imagem das suas coxas a algo muito além. Mais que isso, fez-me reforçar a já dolorosa certeza de que eu o desejava como uma louca. Essa percepção fez-me odiar um pouco mais a minha roupa, principalmente quando Caio me notou ali e eu senti o seu olhar me avaliando da cabeça aos pés. Eu encolhi os dedos dos pés sobre o assoalho frio, constrangido, quando ele se recostou na janela da sala com as mãos escondidas nos bolsos da sua calça e continuou-me olhando, em silêncio. ____Eu demorei? — Perguntei, ainda sem conseguir decifrar se ele estava achando a minha aparência tão desastrosa quanto eu mesmo achava, mas também com medo de descobrir. ____Um pouco. — Caio respondeu, e então deixou que ficássemos em silêncio enquanto me analisava por mais um tempo, até que ele mesmo voltou a falar. — O que foi, anjo? Eu fiz uma careta um pouco confusa, sem entender o seu questionamento. ____Você não parece confortável. — Caio explicou, ainda sem sair do lugar. Entendendo a motivação da sua pergunta, eu olhei para baixo antes de abraçar a minha mochila, levantando-a um pouco mais para que pudesse enterrar o meu rosto nela e esconder a minha vergonha. ____Minha roupa... — Eu respondi, sentindo a minha voz sair abafada. Mas Caio não disse nada, por muito tempo. Então eu levantei a minha cabeça, um pouco curiosa, e vi que ele parecia estar a ter problemas em controlar uma risada. Rindo de mim, de novo. Envergonhada e com a certeza de que o meu rosto ia ficar todo vermelho, eu voltei a escondê-lo na mochila, dessa vez com mais determinação e por menos tempo, porque não demorou para que eu sentisse Caio puxando os meus braços antes de tirar a bolsa de mim e colocá-la no sofá. ____Qual o problema com ela? — Ele perguntou, parado na minha frente, começando a dobrar uma das mangas da minha blusa. ____Parece as roupas que a minha avó usava... — Expliquei, ainda sentindo o meu rosto mais quente que o normal quando ele começou a arrumar o outro lado da minha camisa. - Eu não devia ter deixado a minha mãe escolher... ____Não se preocupe com isso, meu bem, — Ele disse após dobrar as duas mangas, e então começou a arrumar a gola que eu nem mesmo tive a decência de desamassar. — você fica linda de qualquer jeito. Eu pisquei, um pouco desajeitada, diante da forma como a expressão de Caio continuava serena após me dizer aquilo. Quer dizer, eu sempre tropeçava nas palavras quando tentava dizer algo parecido, e acho que essa sempre foi a maior diferença entre nós dois, ainda acima da lacuna entre as nossas idades. Caio tinha confiança em tudo que fazia ou dizia. Eu, por outro lado, precisava sempre lidar com a insegurança. Talvez eu tivesse esse pequeno complexo por estar rodeada de colegas que viviam apontando os dedos para as falhas dos outros. E, com certeza, via isso ser intensificado porque Caio simplesmente tinha esse efeito sobre as pessoas. Mas ele tinha outro efeito, que era o de conseguir-me fazer pensar demais, ou não pensar de forma alguma. E com o seu rosto tão próximo do meu e o acúmulo de sensações que ele me provocou nas últimas horas, foi exatamente a última opção que venceu. Então eu não raciocinei, como se sequer fosse capaz de fazê-lo. E talvez eu não fosse, não naquele pequeno instante em que Caio reafirmou que me achava bonita. Definitivamente não quando eu senti a vontade que por tanto tempo achei que deveria sentir quando estivesse tão perto de um garoto de quem gostasse. Mas eu já sabia que um garoto nunca me faria sentir desse jeito, assim como tinha a mais absoluta certeza de que eu precisava fazer aquilo. Então foi um gesto um pouco impulsivo, mas eu fiquei nas pontas dos pés e beijei a boca de Caio, pela primeira vez. Um beijo tão furtivo que eu mesma afastei-me logo em seguida, com os olhos ansiosos esperando uma reação, mas até mesmo ele pareceu ser pego de surpresa, e então nada veio pelos primeiros segundos. ___Eu não me vou desculpar por isso — Eu disse, soando muito menos decisivo do que esperava. Mas eu não ia, mesmo que a minha voz falhasse em transmitir quão sério eu estava falando. Talvez por isso, por ver-me soar tão inconsistente ao dizer algo tão definitivo, Caio acabou sorrindo. E eu gostava quando ele sorria daquele jeito meio-atravessado, meio perigoso, mas gostava ainda mais quando o seu sorriso era suave como o que ele-me mostrou naquele momento. ____Parece que eu estou sendo muito permissivo com você, — Ele disse, enfim, enquanto eu ainda esperava com ansiedade. — mas não precisa se desculpar por isso. Então eu apertei os meus lábios, tentando não evidenciar o sorriso enorme que queria aparecer quando interpretei as suas palavras. ____Você também queria-me beijar! — Afirmei, um pouco inconsequente e completamente deslumbrada. Caio uniu as sobrancelhas como se a minha euforia fosse infundada, e o seu sorriso pequeno se quebrou quando ele passou a língua sobre os lábios, antes de responder. ____ Alguma vez eu fiz-te pensar que não queria, anjo? E então lá estava, de novo, a mesma incapacidade de reagir com qualquer coisa além de exibir os meus olhos surpresos. Eu senti alguma satisfação ao ver como consegui deixar Caio sem reação, mas muito pouco depois ele me lembrou que eu nunca o deixaria tão incapaz de agir como ele fazia comigo, com tão pouco esforço. E como o seu sorriso voltou a aparecer também me fez ter a certeza de que ele sabia que tinha deixado aquilo muito claro. Mas não era tão fácil deixar Caio satisfeito, então eu estremeci quando ele inclinou um pouco a cabeça, ainda sustentando o sorriso obliquo no canto dos lábios. ____ É melhor você me responder quando eu te fizer uma pergunta. Valentina. Eu pisquei várias vezes, um pouco acuada. ____Eu... — Comecei, ainda desajeitada. — Eu não sei... Caio puxou o ar, fingindo estar um pouco surpreso. ____E eu achava que sempre fui tão óbvio com você... - Ele disse, sem parecer incomodado, como se aquela conversa estivesse a seguir exatamente o rumo que ele queria. ____Você é tudo, menos óbvio... — Eu rebati, com toda a sinceridade possível, e vi Caio dar um passo para mais perto. Eu não desviei o meu olhar nem mesmo quando precisei inclinar o meu rosto para poder continuar a olhá-lo por estar tão próximo, mas foi impossível seguir respirando normalmente quando ele segurou o meu rosto com firmeza, mas também com cuidado. ____Eu tenho que ser mais claro, então? — Ele perguntou, e eu senti o peso do meu peito subindo e descendo com força quando respondi, um pouco atordoado, com um balançar de cabeça. Caio então desceu com a mão que estava no meu maxilar até a minha nuca e eu perdi um pouco do equilíbrio quando ele me puxou na sua direção, me forçando a usar as minhas próprias mãos para não deixar o meu corpo se chocar desastrosamente contra o seu. Ainda com a sua mão segurando a minha nuca e as minhas espalmadas contra o seu abdômen, ele aproximou o rosto e o deixou dolorosamente perto, com os seus olhos escuros atraindo os meus como um imã atrai metal. ____Eu quero-te beijar, Valentina, — Ele disse e então beijou o canto da minha boca de forma demorada, me fazendo suspirar — mas eu também quero fazer muito mais que isso com você. De volta ao estado em que pensar deixou de ser uma opção, eu amassei a sua blusa com as minhas mãos e fechei os olhos, ainda sentindo os seus lábios tocando a minha bochecha daquele jeito tortuoso. ____ Então faz, por favor... — Eu pedi, num sussurro quase sem forças, quando movi o meu rosto para o lado, tentando fazer a minha boca alcançar a sua. E eu consegui, mas Caio não deixou que eu fizesse mais nada, sorrindo contra os meus lábios ansiosos antes que a sua mão soltasse a minha nuca, a sua boca deixasse a minha e o seu corpo se afastasse do meu. ____Por enquanto nós só vamos jantar, anjo. Você está pronta? Eu abri os olhos de novo, sentindo vontade de chorar por ter-me enchido de esperanças ao achar que daria o meu primeiro beijo de verdade para logo depois perceber que Caio nunca pensou em deixar isso acontecer, não naquela noite. ____ Caio... — Eu chamei quando vi ele começar a caminhar em direção à porta, ainda com aquele sorriso no rosto. — Caio... — Insisti, vendo que ele parou de caminhar e me olhou, mas sem esperar que eu dissesse o que eu queria. Era muito óbvio, afinal. ____Eu não gosto de fazer isso. Valentina, mas você entende que eu preciso, não é?- Ele disse, e eu não entendi do que ele falava até que completou. ____Você não pode ouvir a minha conversa com outras pessoas e achar que não vai ser castigada por isso. Eu continuei em silêncio por um tempo, pega de surpresa por aquilo. ____ Mas você disse que ia-me perdoar — Choraminguei como se estivesse me defendendo de um erro enorme. E mesmo sabendo que não era, Caio fazia parecer que sim. Mais que isso, ele fazia-me sentir que eu deveria mesmo ser punida por ser tão curiosa. Mas aquilo era c***l demais. ____Agora eu perdoei, boneca. — Ele disse ainda com a sombra do sorriso no seu rosto voltando a caminhar até a porta de saída. — Você não vem? Eu sempre me deixava levar tão fácil por Caio. Ele podia-me fazer de boba ao fingir que me beijaria e mesmo assim, ao ser chamada, eu tinha vontade de segui-lo como um filhotinho obediente. Mas dessa vez eu não estava só frustrada. Eu estava irritada. Então estanquei os meus pés no chão antes que eles tomassem a liberdade de fazer-me correr até onde Caio estava. ____Eu não quero mais ir. — Respondi, apertando os meus punhos com força a ponto de sentir as unhas machucando as minhas palmas. Caio parou de andar outra vez e olhou-me em silêncio de uma forma que quase me fez voltar atrás. Mas antes que eu o fizesse, ele mesmo piscou devagar e assentiu, com calma. ____Então vamos ficar. — Ele anunciou, assim, simplesmente, antes de voltar a caminhar até o sofá. Quando se sentou, já com o celular numa das mãos, ele continuou. — Eu vou pedir o nosso jantar. Você gosta de comida japonesa?
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