Nunca amei Maria Rita. Não sabia o que era isso. Casei com ela porque ela disse que queria casar, e eu... bem, eu precisava de uma esposa. Era o que se esperava de mim naquela época. Eu estava lutando pra crescer na vida, pra me firmar no exército. Ser casado, ter alguém ao meu lado, fazia parte do pacote.
Eu era jovem, muito jovem. Casei aos 19 anos. Maria Rita tinha 23. Ela era mais velha, mais vivida. Talvez, de algum jeito, achasse que podia me moldar, me fazer ser o homem que ela queria. Mas isso nunca aconteceu. Eu já tinha minha cabeça feita desde cedo. Sabia o que queria: subir na carreira, ser alguém. E consegui. Fui o capitão mais jovem que eles já tinham visto, e lutei por cada passo que dei até chegar lá.
Solto o cigarro. Lembrar disso não faz diferença agora, mas de vez em quando os pensamentos voltam, como um eco distante.
Estou sentado no meu posto de comando, uma bermuda larga e velha no corpo. Aqui no morro, a formalidade fica lá embaixo, no asfalto. Aqui em cima, no meu território, eu visto o que quiser. O calor bate forte e, de tempos em tempos, o vento sopra um pouco de alívio. Acendo outro cigarro e fico observando o movimento lá embaixo. Tudo parece calmo... mas essa calmaria nunca dura.
Ouço passos subindo a laje e não preciso olhar para saber quem é. Marcelo. Meu tenente, o único em quem confio de verdade. Ele é um dos poucos que eu sei que vai até o fim por mim, e que tem as costas tão protegidas quanto eu protejo as dele.
— Capitão — ele diz, quando chega mais perto. A voz dele sempre direta, sem rodeios.
Eu levanto os olhos e vejo que ele não está sozinho. Ao lado dele, uma mulher, uma merenda. Bonita, do jeito que eles gostam por aqui. Pele morena, curvas acentuadas, sorriso tímido. Mas eu já vi esse tipo antes. Servem pra uma coisa só. Não são como as mulheres com quem se pode casar. Aqui no morro, a gente sabe quem é merenda e quem é de verdade.
— O que é isso, Marcelo? — pergunto, soltando a fumaça devagar, enquanto encaro a mulher de cima a baixo.
Ele dá de ombros, mas não desvia o olhar.
— Tava aí rodando pelo morro. Pensei que o senhor podia querer... distrair a cabeça.
Dou uma risada seca, balançando a cabeça. Ele sabe muito bem que isso não é comigo, mas ainda assim tenta de vez em quando. É lealdade. O cara acha que tá me fazendo um favor.
— Merenda, Marcelo? — pergunto, sem tirar os olhos da mulher, que agora me olha de volta, esperando que eu diga alguma coisa. — Você acha que eu tô precisando de merenda?
— Achei que ia gostar, Capitão. Ela é bonita, né?
A mulher solta um sorriso, talvez tentando me impressionar, mas eu não caio fácil. Já vi muita coisa pra ser levado por um rostinho bonito. Aqui no morro, beleza não salva ninguém. Só uma coisa salva: saber a hora de lutar e a hora de se proteger.
— Beleza não me impressiona, Marcelo. — Dou mais uma tragada e volto o olhar para ele. — E você sabe disso.
Marcelo sorri, mas não insiste. Ele sabe o que eu penso. Sabe que eu não confundo merenda com mulher de verdade. Mas o respeito continua ali, no jeito dele falar e no cuidado que tem em sempre me consultar antes de qualquer decisão.
— Beleza não põe comida na mesa, Capitão, mas distrai da bagunça do morro — ele responde, meio rindo.
— Distrai? — Repito, mas sem sorriso. Olho a mulher de novo e aponto para a saída. — Leva essa daí de volta, Marcelo. Eu não tô precisando me distrair. Fica de olho nos gambé, isso sim. Hoje tá calmo demais.
A merenda abaixa a cabeça, sem dizer nada, já acostumada com esse tipo de tratamento. Marcelo dá uma risada rápida, mais de nervoso do que de humor, e faz um sinal para a mulher.
— Vem, vai descer. O Capitão não tá no clima hoje.
Ela segue ele sem questionar, e eu fico ali, observando os dois descendo a laje. O cigarro já está pela metade quando Marcelo para e se vira de novo.
— E os gambé, Capitão? Ouvi que tão rondando mais perto hoje. Quer que a gente intensifique o esquema?
Dou uma última tragada antes de responder.
— Fica de olho. Se vierem mais perto, a gente resolve. Do jeito de sempre.
Ele assente, entendendo sem precisar de mais palavras. Marcelo é assim. Leal, eficiente, e sabe exatamente o que eu preciso antes que eu precise dizer. Isso é raro por aqui. Por isso ele é o meu tenente.