Capitão Nascimento..
Aqui no morro, tudo tem um jeito. As coisas não funcionam como lá embaixo, no asfalto. Aqui, quem manda sou eu. E quando alguém tenta mexer no que é meu, resolvemos do jeito de sempre. Simples, rápido, eficiente. Não tem espaço pra erro.
Os gambé, por exemplo, gostam de aparecer de vez em quando, tentar fazer pressão, mostrar serviço. Eu deixo eles subirem até certo ponto. Se ficarem no limite, a gente acena, dá o dinheiro e eles descem quietos, como se nada tivesse acontecido. É o jeito mais fácil. Menos trabalho, menos sangue. Marcelo é quem cuida disso. Ele sabe bem como essas coisas funcionam. Não precisa de muita conversa, só uma troca rápida, e os gambé viram as costas. Tudo certo.
Mas tem dias que o dinheiro não basta. Tem dias que eles acham que podem forçar a barra, subir mais do que o permitido, ou trazer mais gente. Aí é diferente. Quando eles se metem demais, a gente precisa agir. E quando eu digo agir, é de verdade. Não tem segunda chance. Quando acontece, tem tiro, escolas fechando, e crianças chorando nas vielas. As mães correm, puxam os pequenos pelas mãos e trancam as portas. Todo mundo sabe que, quando os tiros começam, é melhor se esconder. Mas, pra falar a verdade, isso raramente acontece. Não gosto de conflito grande. Evito ao máximo.
Não é que eu tenha medo, longe disso. Mas quanto mais barulho, mais atenção a gente atrai, e quanto mais atenção, mais complicado fica manter o controle. Eu aprendi que a melhor forma de manter as coisas funcionando é fazer acordos. E, pra isso, eu p**o bem. p**o muito bem.
Os gambé sabem que, se eles ficarem longe, a grana continua jorrando. Dinheiro resolve muita coisa. Compra silêncio, compra distância. Eles fazem vista grossa e eu continuo reinando por aqui. Ninguém quer ver o morro explodindo em guerra, e eu, menos ainda. Conflito grande só prejudica os negócios.
Marcelo, meu tenente, entende isso melhor que ninguém. Ele sabe que, se os gambé resolverem aparecer demais, a primeira coisa que fazemos é tentar evitar o pior. Coloca a grana na mão certa, fecha o acordo, e pronto: cada um fica no seu canto.
— E se não aceitarem, Capitão? — ele sempre pergunta, por via das dúvidas.
Dou uma risada curta, jogando o cigarro no chão.
— Se não aceitarem, Marcelo, você sabe como é. Aí o jeito de sempre entra em ação.
— Eles vão aceitar, Capitão — Marcelo fala, sempre com aquela confiança que me agrada.
— Vão, sim. Porque se não aceitarem, quem perde são eles.
Eu p**o pra evitar guerra. p**o pra que a vida no morro siga o curso normal, sem barulho, sem escolas fechadas, sem crianças chorando. p**o muito bem, e eles sabem que é melhor ficar longe. O "jeito de sempre" é um último recurso. E eu faço de tudo pra que ele fique guardado, esperando o momento certo que, com sorte, nunca vai chegar.
Eu apago o cigarro e olho pra Marcelo.
— Hoje, eles vão ficar no limite. Não vão passar. Mas se passarem... — faço uma pausa, encarando o horizonte — ...você sabe o que fazer. Vou dar uma volta no asfalto..
Marcelo acena com a cabeça, sem dizer mais nada. Ele sabe. Eu sei. E os gambé, se forem espertos, também vão saber.
Aqui no morro, a gente resolve do jeito de sempre.
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Estava me preparando pra descer o morro. De vez em quando, gosto de caminhar no asfalto, longe do peso do comando. Gosto de pegar uma praia, sentir o sol, beber uma gelada sem ter que ficar pensando no que vai acontecer aqui em cima. O morro não me deixa descansar, mas eu me obrigo a sair de vez em quando. Me sinto um rei lá embaixo, no meio da multidão que nem imagina quem eu sou.
Tava quase subindo em minha moto quando um dos garotos apareceu. Era o Guto, rápido e nervoso como sempre.
— Capitão — ele disse, sem fôlego. — Tem uma tal de Bebel lá embaixo. Tá querendo subir o morro. Tá te procurando.
Bebel? Não conheço nenhuma Bebel. Fiquei pensando por um segundo, mas o único nome que veio à minha cabeça foi Isabel. E a única Isabel que eu conheço é a filha de Maria Rita. Faz anos que não sei nada dela. Será que...? Não, não pode ser.
— Bebel? — perguntei, franzindo a testa. — Não conheço ninguém com esse nome. Não autoriza a subida. Se não sei quem é, não entra.
Guto balançou a cabeça, como quem já esperava aquela resposta.
— Sim, senhor. Já mandei avisar que ela não pode subir.
Esperei... Não era hora de lidar com problemas novos, ainda mais com gente que eu nem sei quem é. Dei uma última olhada na laje, me certifiquei de que tudo estava em ordem, e estava pronto pra sair quando Guto voltou.
— Capitão, a moça foi embora. — Ele fez uma pausa, coçando a nuca. — Mas, se ela fosse merenda, seria bom. Ela é bonita, Capitão.
Olhei pra ele, sem paciência pra esse tipo de comentário.
— Merenda ou não, se não sei quem é, não sobe. — soltei, sem rodeios.
Guto deu um sorrisinho de canto, mas percebeu que eu não tava no clima pra brincadeira. Bebel... quem diabos seria essa mulher? E por que ela me procuraria? Eu tinha o controle de tudo que acontecia aqui no morro, mas às vezes as coisas surgem do nada, como fantasmas do passado.
Desci o morro, mas a ideia de quem poderia ser essa tal de Bebel ficou rondando minha cabeça. Não gosto de surpresas, e menos ainda quando envolvem gente que eu não conheço.
Se ela for merenda, como Guto sugeriu, pouco me importa. Não é o tipo de coisa que eu procuro. Mas se for mais do que isso, se tiver algum significado, vou descobrir. Porque, no meu território, ninguém aparece sem eu saber quem é e o que quer.