A sala pequena estava mergulhada em um silencio tão profundo e tenso que se uma agulha caísse no chão, soaria como se fosse um tijolo. Na poltrona de couro marrom, Loren jazia imóvel, seu rosto marcado por lágrimas. No sofá, Alana com os olhos baixos e marejados, Cassandra com os olhos arregalados e Vincent – que em algum momento do grande relato de Loren achou melhor se sentar – mais pálido do que normalmente era.
— E-Eu não... E-eu não consigo acreditar nisso... — Cassandra quebrou o silencio, mas sua voz saiu tão baixa que era quase como se ela não tivesse falado nada. Ergueu os olhos para Alana, como que perguntando se aquilo tudo que acabara de ouvir era mesmo verdade.
Alana suspirou, parecia que havia um sapo em sua garganta por que quando falou sua voz parecia levemente esganiçada.
— Olhe isso...
Ela entregou a Cassandra o pingente em formato de coração, havia estado segurando ele com força durante toda a conversa. Observou a amiga franzir o cenho antes que seus olhos se arregalaram em extremo choque ao encarar as fotos no coração dourado.
— M-Meu deus... — murmurou sob o fôlego e com as mãos tremendo passou o pingente para Vincent.
Vincent encarou as fotos, seus olhos arregalando-se por um segundo antes de se estreitarem até fecharam-se por completo. Quando tornou a abrir os olhos, havia um brilho de pura raiva e indignação nas orbes negras, e apertando o pingente no punho cerrado, colocou-se de pé, começando a andar de um lado para o outro até parar no meio da sala e encara Loren como se ela fosse o inseto mais desprezível do mundo.
— Como puderam? — perguntou, e tanto Cassandra quanto Alana encolheram-se no sofá com a raiva em sua voz. Loren, por outro lado, não esboçou reação nenhuma. Era quase como se nem estivesse ali. — Como puderam fazer isso?... Tem noção do que fizeram?
— Vincent... — Cassandra sussurrou baixo, querendo que o Bennie parasse de falar daquele modo, parar de olhar de modo tão acusador para a dona Loren que de repente explodiu num novo acesso de choro sofrido, como se o peso das palavras do rapaz fossem grandes demais para suportar. — Por favor, pare...
— Não, Cassandra. — bufou o Bennie, apontando o dedo para a mulher na poltrona com raiva. — Não vê o que ela faz? Tem noção de como o Ian vai reagir a isso?...
— Vincent...
— Ah, cale a boca você também Steawart! — explodiu o moreno, seus olhos chispando de raiva para qualquer um que tentasse convencê-lo a ser mais... gentil. — Você me chamou aqui por achar que vou saber como fazer o Ian não surtar com toda essa história, não é? Pois se deu m*l. Ele vai surtar. E com toda razão! — rolou os olhos, deslizando uma mão pelo cabelo e puxando alguns fios no processo. — Estão mentindo pra ele a dezoito anos, pelo amor de Deus!!!
Alana afundou-se ainda mais no sofá. Não podia contestá-lo. Vincent estava certo em sentir-se revoltado. Era revoltante. Ela mesma estivera a ponto de um colapso nervoso ao saber de tudo. Olhou para a dona Loren, a mulher soluçava alto e escondia o rosto banhado a lagrimas nas mãos, sacudindo o corpo para frente e para trás. Apiedou-se dela. Era irônico. Ao mesmo tempo em que sentia pena dela, sentia raiva. Raiva pelo oque fizera a Ian.
Vincent estava absolutamente certo... Ian ia surtar!
Seu coração doeu por ele. Quanta dor mais iriam infligir em Ian? E porque, em nome de todas as coisas no mundo, logo naquele momento? Por que tudo aquilo tinha que vir a tona justo naquele momento? Justo naquele dia? Ian acabara de enterrar uma irmã, santo Deus. Não era justo com ele.
Viu Vincent marchar em direção a Loren e levantá-la ele mesmo a segurando pelos ombros. Cassandra e Alana também se levantaram, com medo do que o Bennie podia fazer a mulher que naquele momento parecia tão mole quanto uma boneca de pano. Vincent exalava fúria.
— Preste bem atenção, dona... — ele cuspiu as palavras com desgosto, como se tivesse nojo dela. — Você vai dizer a verdade. Toda ela! Está me ouvindo? — chacoalhou pelos ombros, e Loren nada fez que não chorar mais.
— Vincent... — Cassandra interveio, tocando o braço dele como que para acalmá-lo. O Bennie relaxou um pouco, mas ainda encarava a mulher a sua frente com desprezo e raiva.
Loren permaneceu em silencio. Não havia nada para dizer. Aquele garoto, com a idade do seu filho, melhor amigo do seu filho, tinha toda a razão. O desprezo que ela via nos olhos negros daquele rapaz, não chegava nem mesmo perto do desprezo e raiva que tinha por si mesma. Como pudera ser tão estúpida? Tão... egoísta?
— Você vai contar a verdade à ele... — Vincent continuou, apertando os dentes e parecendo controlar todo uma vontade de estapear a mulher na sua frente. — Vai contar tudo a Ian, toda a história... E se ele te desprezar, te odiar, te repugnar... Bem, isso não será nem mesmo a metade do que você e o ser desprezível que é Frederick Norton merecem. Está me entendendo? — Loren soluçou. — RESPONDA!!!
— S-Sim... — sussurrou a mulher. Vincent a largou e ela tornou a cair mole na poltrona.
O Bennie se afastou alguns passos da mulher, como que temendo ficar muito perto e ser contaminado pela repugnância dela. Cassandra aproximou-se dele, e foi somente ao abraçá-lo que viu que o corpo todo dele tremia em nervosismo. Não se importou, sabia que Vincent precisava de um abraço. Era tudo o que ele precisava naquele momento. Precisava pelo oque aconteceu com o Yara, e pelo oque acabara de descobrir como Ian. Ali, naquele instante, em que Vincent a abraçava de volta com força e enterrava o rosto em seu pescoço, descobriu o quanto os irmãos Nortons significavam pra ele. Os considerava irmãos, por isso tudo o que os afetasse, acabaria por afetá-lo também.
— A senhora quer um copo d’água com açúcar? — prestativa, Alana perguntou enquanto Vincent e Cassandra cessavam o abraço e se colocavam lado a lado.
— N-Não obrigada. — Loren ficou surpresa por encontrar a própria voz e suspirou em alivio. Ela deu uma boa olhada nos três jovens em sua sala e sorriu levemente, parecendo aliviada com algo. — Meu filho tem sorte de ter amigos tão bons e que se preocupam tanto com ele como vocês.
Enquanto Alana e Cassandra davam sorrisos singelos em agradecimento, Vincent rolou os olhos e bufou.
— É. Certo. — disse ele, irritadiço. — E não o chame de 'filho’. Você perdeu esse direito.
Cassandra deu uma leve cotovelada em seu estomago, mas o Bennie pouco se abalou. Loren desviou o olhar, dando de ombros. Ela levantou-se novamente e caminhou até um pequeno armário de madeira antiga no canto da sala. Alana e os outros dois estreitaram os olhos, querendo saber o que ela fazia, até que a mulher ficou na ponta dos pés e parecia tentar alcançar algo em cima do armário. Quando enfim ela pareceu alcançar o que buscava, todos os três jovens quase podiam ver o sorriso contente dela. Loren foi para o sofá, mas dessa vez com uma caixa de papelão preta nas mãos que depositou ao lado quando sentou. Ela fez um gesto com as mãos para que os jovens se aproximassem e quando eles o fizeram ela removeu a tampa da caixa. Tanto Alana quanto Cassandra prenderam o fôlego, e Vincent ergueu uma sobrancelha.
— Mas isso é... — começou Alana.
— Ian. — Loren disse com um sorriso, observando as fotografias e recortes dentro da caixa, todas de Ian.
A mulher loira começou a observar as fotografias e recortes de revista, havia uma emoção doce em seus olhos, assim como uma tristeza imensurável por aquele ter sido seu único modo de acompanhar o crescimento do filho. A distância. Por meio de fotos e recortes de jornal.
Alana não sabia se sorria pelas imagens de um Ian pequeno, ainda um bebê na maternidade no colo da mãe biológica que ele sequer sabia da existência, ou se chorava devido a tristeza que via nos olhos de Loren por ela ter perdido tudo aquilo.
— Você o ama. — sussurrou baixinho, com medo de que se falasse alto fosse quebrar a magia da cena diante de seus olhos. Loren assentiu, duas lágrimas que rolaram de seus olhos caindo sob o recorte de uma fotografia de Ian, naquele ano, tirada de alguma revista.
— Mais do que a minha própria vida. — respondeu a mulher, e embora Vincent tivesse rolado os olhos em descrença nada disse. Loren respirou fundo, pegando uma fotografia tirada logo após o parto de Ian, a única que tinha naquele tamanho, com o filho nos braços. — Sabe... às vezes fazemos escolhas erradas. Me arrependi de abrir mão de Ian no instante em que ele abriu os olhos para mim. — suspirou com pesar. — Mas já era tarde para arrependimentos, eu havia feito minha decisão e não ia voltar com ela. Ainda assim... durante todos esses dezoitos anos, sinto como se uma parte minha, a melhor e mais feliz parte de minha tivesse sido arrancada de mim.
Alana engoliu em seco, puxando o ar levemente para dentro dos pulmões antes de se agachar a frente da mulher uma vez mais e segurá-la uma das mãos.
— Talvez você possa recuperar essa parte. Talvez Ian a perdoe. — sorriu dócil. — Eu sei o quanto ele sente falta de ter uma mãe.
— Tsc... Certo. — desdenhou Vincent, cruzando os braços e encarando as duas como se elas fossem de outro planeta. — Vocês estão sendo emotivas e otimistas demais. Quer saber o que vai acontecer? Ele vai odiar você. — encarou Loren nos olhos, e viu todo um medo de rejeição ali do qual não se apiedou. Ela merecia o ódio de Ian, se este viesse. — Bem capaz de odiar a todos nós...
— O quê?... Por quê? — Cassandra questionou depressa, não querendo acreditar naquela possibilidade assim como Alana. — Só estamos tentando ajudar.
Vincent rolou os olhos.
— Vocês definitivamente não conhecem o Ian. Nenhuma de vocês. — olhou com desprezo pra Loren uma vez mais. — Ian já odeia o mundo... Irá odiar ainda mais depois que souber de tudo isso e coitado de quem estiver no caminho dele quando isso acontecer. — suspirou, massageando as têmporas com as mãos, já sentindo a dor de cabeça retornar. — Tudo o que podemos fazer é tentar encontrar um meio de contar tudo a ele de modo que saímos todos vivos depois e ele o menos traumatizado possível.
Mal acabara de falar e o celular tocara; sem ao menos olhar para o visor pra saber de quem se tratava levou o aparelho a orelha...
— Alô... Ian!!!
Ao saber de quem se tratava as três mulheres na sala arregalaram os olhos, Alana e Loren prendendo a respiração. Num salto, Alana estava de pé e tentava tomar o telefone de Vincent, tarefa que se mostrou impossível.
— Ian, calma. Fale devagar, não estou entendo p***a nenhuma... — dizia o Bennie, um vinco em sua testa. — Você... O que diabos... Do que você está falando?
Alana sentia o coração aos pulos no peito. Batia tão desenfreado que ela achou melhor sentar-se um pouco para não cair desfalecida no chão. Vincent não ajudava nem um pouco em acalmá-la, falando de maneira irritada e pouco esclarecedora com o loiro do outro lado da linha.
Queria falar com Ian. Queria vê-lo. Queria contar a ele o que lhe fora revelado. Queria lhe abraçar uma vez mais por causa de Yara. Queria estar ao lado dele. Queria saber o que fora aquele ‘Eu’ riscado ao meio no bilhete.
— O que diabos... — Vincent continuava a murmurar no telefone, mais agitado do que Alana jamais se lembrara de tê-lo visto antes. — ... Ian... EI, Ian!!!... — suspirou, afastando o telefone do ouvido. — Desligou.
Alana levantou-se no ato, parando frente a Vincent com olhos desesperado em apenas dois passos.
— E então?... Pelo amor de Deus, Vincent, o que ele disse? — gritou, já no limite de sua paciência. Seu coração doía em preocupação com Ian diante do olhar conturbado e preocupado de Vincent depois da ligação.
— Vincent! — o chamado de Cassandra pareceu despertá-lo, e o Bennie balançou a cabeça, sentando-se ao lado de Loren no sofá e piscando várias vezes.
— Eu não sei ao certo. Ele estava... estranho. Agitado, gritando. Parecia estar tento um acesso de raiva ou de choro!!! — ele suspirou.
— O que ele disse? — Alana andava de um lado para o outro na frente do rapaz, as mãos mexendo-se de maneira nervosa e o coração quase saltando pela boca.
— Disse... Disse alguma coisa sobre cemitério, sobre mentira e... — Vincent travou, uma lâmpada se ascendendo em sua mente de repente. — ... Frederick. — sussurrou.
— O quê? — agoniada, Cassandra tomou a frente da pergunta. Mas Vincent não mais a olhava, ele agora encarava Loren com olhos levemente arregalados.
— Ele sabe. — sibilou, e não foi com surpresa que viu as três presentes perderem completamente a cor de seus rostos e arregalaram os olhos. Levantou-se. — Precisamos ir. Rápido.
— O-Oque? — Loren acordou do transe, também colocando-se de pé.
— Como assim ele sabe?... Como pôde ter descoberto? — Alana gritava a pergunta enquanto já corria atrás de Vincent, assim como Loren e Cassandra, escada abaixo. Vincent não respondeu, e vendo-o continuar descendo as escadas, Alana se virou para Cassandra. — Por favor, fique com Eva. Nós voltamos logo.
Cassandra assentiu. Por mais que quisesse ir, não podiam deixar Eva sozinha.
— Me ligue. — gritou para a amiga, que assentiu rapidamente, sumindo ao lado da dona Loren ao descerem as escadas que levavam a portaria do prédio atrás de Vincent.
— Cassandra?
Ao ouvir o chamado sonolento, a rosada girou sob os calcanhares e deparou-se com uma Eva já de pijama, parada na porta de seu apartamento e que coçava um dos olhos sonolentos.
— Está tudo bem? — perguntou a menina em meio a um bocejo. — Onde a Alana foi? Por que a vovó Loren foi também?
Cassandra suspirou, caminhando até a menina e a conduzindo para dentro do apartamento novamente, trancando a porta antes de responder.
— Está tudo bem querida. Volte a dormir. — sorriu pra menina, indo com ela em direção ao quarto de Alana. — Alana não vai demorar.
Sonolenta demais para discutir, Eva simplesmente concordou com a cabeça, pulando na cama da irmã e escondendo o corpo por debaixo das cobertas pesadas, só deixando a cabeça para fora. Cassandra a observava da porta.
— Está tudo bem mesmo? — a menina tornou a perguntar, não conseguindo ocultar a leve desconfiança em meio ao sono.
Cassandra limitou-se apenas a esboçar um pequeno sorriso, sentindo incapaz de mentir para ele novamente ao dizer que estava tudo bem.
— Boa noite. — desejou e Eva lhe acenou com a mão. Cassandra apagou a luz, sorriu uma vez mais para a menina na cama e deixou o quarto em direção a sala, deixando a porta apenas encostada.
Deixou-se cair no sofá e soltou um suspiro cansado. Sua mente voltando para a conversa com a dona Loren e sentindo todo o peso real daquela história somente naquele momento.
— Pobre Ian. — disse, lamentando honestamente pelo amigo.