1
Mantinha os dedos das mãos entrelaçados de maneira muito displicente, o corpo inclinado para frente, em direção a mesa, e apertava os olhos a cada nova pontada de dor que lhe atingia a cabeça. Suspirou baixo e lentamente, controlando o impulso de levar às mãos a cabeça para massagear as têmporas como se de alguma forma isso fosse fazer com que a dor infernal sumisse.
— Aqui Vincent, tome... — o Bennie quase – quase, apenas – pulou da cadeira e abraçou Cassandra ao ver que ela trazia um copo com água em uma mão, e um pequeno comprimido branco e redondo na outra palma aberta. — Vai ajudar com a dor de cabeça. — concluiu a rosada, entregando-lhe o comprimido e deixando o copo frente a ele antes de tomar lugar na outra extremidade da mesa.
— Obrigado. — murmurou ele, baixo demais para um agradecimento, alto o suficiente para que ela ouvisse. Cassandra deu de ombros, um sorriso mínimo nos lábios rosados.
Observou Vincent levar o comprimido a boca para em seguida entornar o copo d’água e ao notar que estava admirando com muito afinco os lábios molhados dele, ou o modo como seu pomo de adão subia e descia enquanto engolia a água, desviou o olhar para a entrada da lanchonete quase imediatamente.
Suspirou. A chuva ainda caia, muito mais fraca do que a uma hora atrás, mas ainda sim bem incomoda e com trovões clareando o céu escuro hora ou outra.
— Você está me encarando. — disse num suspiro, e mesmo não se virando para encará-lo, sabia que Vincent sorria de lado.
— Estou.
A honestidade dele fez com que o encarasse quase se perdendo naquela escuridão envolvente que eram seus olhos.
— Então... — começou a rosada, com um falso pigarro que fez Vincent erguer uma sobrancelha.
— Então?... — indagou confuso, e Cassandra soltou um bufo impaciente.
— Qual é Vincent, você está aqui há quase uma hora, sentado nessa mesa sem dizer ou fazer nada... — respirou fundo, tomando um tom mais preocupado quando continuou. — Não quer conversar sobre isso?
— Isso o quê? — fez-se de desentendido, desviando o olhar para o copo vazio na mesa. Ouviu um novo suspiro cansado de Cassandra, e quase sorriu; mas ao contrário do que pensou a voz dela não veio de modo irritado ou agressivo quando tornou a falar, mas sim de um modo suave, gentil.
— Sabe do que estou falando. Disso tudo, do que está acontecendo, do que você está sentindo... Sobre Yara...
Vincent ergueu o olhar no instante em que ouviu o nome da amiga de infância, buscou alguma tristeza ou rancor nos olhos verdes de Cassandra, mas tudo o que encontrou ali foi preocupação e carinho sinceros que fizeram estremecer suas barreiras sentimentais, mas não a ponto de derrubá-las. Ainda.
— Não te incomoda me ouvir falar sobre ela? — questionou com insegurança camuflada, tornando a encostar o corpo na cadeira, exausto.
Cassandra subiu e desceu os ombros de maneira muito lenta e displicente.
— Por que me incomodaria? — disse em voz suave. — Só porque vocês cresceram juntos, e que num determinado momento da sua vida você achou que estava apaixonado por ela? — um sorriso meio divertido e melancólico formou-se no canto de seus lábios. Respirou fundo. — Acho que um pouco. Quero dizer, tem uma parte minha que está muito magoada com você ainda, mas... eu me preocupo com você antes de mais nada. Eu sei o quanto Yara significou pra você, sei que perder ela está sendo difícil pra você... E não importa o quanto você tente parecer forte quanto a isso, sei que está destruído por dentro. Pode enganar os outros com sua frieza, mas não a mim. Nunca a mim.
Vincent sorriu. Encarando os olhos verdes de Cassandra, encarando toda a sinceridade dela enquanto falava, se perguntou se era merecedor dela. A resposta era não, ele sabia, e incomodou se dar conta disso assim como o encheu de um orgulho extremo dela. Cassandra era uma pessoa muito, muito melhor do que ele. Se fosse ele no lugar dela, definitivamente odiaria Yara e a si mesmo mais do que qualquer outra coisa. Por que era egoísta. Mas Cassandra não. Cassandra não culpava ou nutria raiva por Yara, ao contrário, ficou nítido o quanto ela lamentava pela morte de uma garota que sequer conheceu... E ainda se preocupava imensamente consigo.
— Acho que não mereço você. — disse, e a dureza em suas palavras não assustaram Cassandra pois ela sabia que não era para com ela, e sim para com ele mesmo.
— Nunca mereceu. — respondeu num sorriso, piscando divertida. — Mas o que há de se fazer, não é mesmo? Não é como se eu pudesse simplesmente arrancar todo o amor que eu sinto por você. — um brilho de esperança passou pelos olhos negros de Vincent ao ouvir aquilo.
— Ainda me ama? — Cassandra assentiu à pergunta, e quase riu quando Vincent pareceu segurar um suspiro de alivio. — Então... por que estamos separados?
Foi à vez da rosada a suspirar, mexendo-se desconfortável no assento e começando a estralar os dedos das mãos num tique que demonstrava nervosismo.
— Eu ainda estou magoada com você. Muito. — começou, sincera, deixando-o ver toda a mágoa, mas também o amor em seus olhos. — Não culpo Yara pelo passado que vocês tiveram, ou deixaram de ter, não sei... Não culpo você por ter se sentido confuso. Te culpo apenas por ter omitido isso de mim...
— Eu achei que fosse te perder se contasse...
— E não me contar nos levou aonde Vincent? Estamos juntos agora? Não. — ela suspirou. — Deveria ter me dito... Mas você nunca me diz nada, não me diz como se sente, seus medos, seus sonhos — Vincent torceu o nariz com nojo a menção da palavra e Cassandra sorriu. — Não faça essa cara, sei que tem seus próprios sonhos; sonhos seus e não de sua família. Mas você nunca fala nada, vive omitindo as coisas de mim... Agora entendo a Alana. É meio difícil se sentir segura quando a pessoa que você ama dá todos os motivos pra isso não conversando abertamente consigo.
— E o que você quer eu diga, exatamente? — ele perguntou com um tom de desafio na voz, deixando escapar uma risada seca e debochada. — Espera declarações melosas e poemas?... Tsc. Isso é ridículo. — fez um gesto displicente com as mãos.
— Não, não é isso que espero. — Cassandra estava mais séria agora, seu olhar tão firme e decidido como Vincent jamais virá antes. — Você me perguntou por que não estamos juntos agora... Aqui está sua resposta: você omite coisas de mim.
— Eu não omito nada de você!... Certo, Yara foi uma exceção, mas é apenas isso Cassandra...
— Sério? — uma sobrancelha da rosada se ergueu, seus lábios torcendo-se num bico descrente enquanto Vincent afirmava com afinco num gesto de cabeça. Cassandra respirou fundo, puxando o ar com força e deixando-o circular por seus pulmões um pouco antes de expirá-lo. — E a sua família?
Ela observou, com uma satisfação triste, o corpo de Vincent ficar tenso a sua frente, os olhos dele estreitando-se levemente.
— O que têm eles? — indagou ele, a voz saiu mais rouca e grave o que, em junção com seus olhos estreitos, denunciava que aquele não era um assunto que queria falar.
— Viu? É exatamente disso que estou falando! — acusou a Swan, tentando manter o controle sobre seu tom de voz para que não saísse histérico. — Você omite coisas de mim. Omitiu Yara, omite sua família... O assunto ‘família’ parece ser um tabu entre nós... O que me faz pensar no por que disso. Vamos, me diga Vincent, porque nunca falamos sobre a sua família? — o maxilar de Vincent estava tenso a essa altura, as mãos fechadas em punhos cerrados sob as próprias coxas e os olhos com um brilho que denunciava perigo, mas Cassandra não ia parar. Ela ia até o fim com aquilo, afinal, ele que começara. — Acho que eu sei por que... — ela soltou uma falsa risada, lutando contra as lágrimas que queriam escorrer. — Você tem vergonha de mim. Claro, é isso. É isso não é?...
Isso é absurdo, pensou Vincent. Vergonha dela? Era isso que ela achava? Ridículo! Não era vergonha, era simplesmente medo. Sabia muito bem como as coisas funcionavam em sua família, e era bem simples na verdade: Fábio mandava, e, de um jeito ou de outro suas ordens sempre acabavam sendo cumpridas. Conhecendo o pai como conhecia, sabia que ele não ficaria nada satisfeito com sua escolha, e não era isso que o incomodava, mas sim o que Fábio podia fazer para separá-los. Não havia limites para se conseguir o que quer, quando se tratando de um Bennie, e Vincent sabia – sempre soube, na verdade – que seu pai não era exatamente alguém que media esforços para conseguir o que quer. Sabia também que, na visão de seus pais, não havia espaço para nenhuma garota em sua vida que não a que eles determinassem digna de um Bennie. Tsc, idiotas! Mas ainda sim, idiotas com muito, muito poder e pouco escrúpulo se assim considerassem melhor... Pouco importava a seus pais quantas garotas levava para cama, mas o contexto final era sempre o mesmo: não se apaixonar. E se apaixonou por Cassandra, quebrou uma única, mas crucial regra de sua família, a de que seus pais decidissem seu futuro. Ora veja bem, o futuro de um Bennie é destinado a ser glorioso, certo? Onde, em nome de todos os deuses, seus pais incluiriam Cassandra nesse futuro? Não estava menosprezando a rosada, ao contrário, Cassandra era uma pessoa muito melhor do que ele e sua família jamais seriam, mas um fato era um fato. Sua família jamais consideraria Swan Cassandra digna de Bennie Vincent, não importando o quão inverso os fatos fossem e o quão ridículo era tudo aquilo, e Vincent sabia... Sabia com todos os seus ossos que no instante que apresentasse Cassandra a seus pais, no instante em que eles vissem o brilho em seus olhos ao estar do lado dela, estaria acabado. Fariam de tudo, desde coisas simples – como importunar muito a rosada, bancando os típicos sogros chatos – até coisas mais elaboradas e trágicas – e Vincent tinha arrepio só de pensar nas possibilidades trágicas – para separá-los. Eventualmente conseguiriam. Então não era vergonha, nunca poderia ter vergonha de Cassandra. A amava, afinal! A amava mais do que admitia pra si mesmo, mais do que achou possível acontecer um dia... E apenas o simples pensamento de sua família por um fim no que tinham, no relacionamento que tinham, era terrivelmente insuportável. Então não era vergonha, nunca foi vergonha, sempre foi medo – e Vincent odiava o quão patético isso soava, apesar de ser a mais pura verdade. E por isso mantinha os assuntos ‘Cassandra’ e sua ‘família’ o mais longe um do outro possível. Para proteger o que construiu com a rosada. Algo do qual sabia, não poderia viver sem, nunca mais.
Estava pronto pra dizer todas essas coisas a ela, não importando o quão difícil fosse colocar tudo aquilo pra fora – era um Bennie no fim das contas e Bennies não saem por aí falando o que sentem – quando o toque eletrônico de seu celular preencheu-lhes os ouvidos. Suspirou, indeciso entre atender ou ignorar, quando Cassandra fez o favor de responder suas dúvidas do que devia fazer quando se levantou de supetão da mesa, desaparecendo pra cozinha da lanchonete. Vincent bufou, apoiando os cotovelos na mesa e escondendo a cabeça no vão entre os braços. Estava com uma vontade tão grande de destroçar alguma coisa que seu celular – tocando incessantemente até então – quase que foi a vitima.
— Alô... — praticamente gritou ao atender, lançando todo tipo de maldição a quem quer que fosse do outro lado.
Cassandra tremia. Por Deus, seu corpo todo tremia! E não era de frio ou choque, era de raiva. Raiva e dor. Por que ele demorou tanto a responder? Talvez por que fosse verdade, pensou, Vincent tem vergonha.
Não. Não pode ser, uma voz em sua mente gritou. Mas e se fosse? Como saber? Bufou, apoiando-se na pia e respirando lenta e profundamente, tentando tomar o controle de seu corpo novamente. Agradeceu mentalmente por Eva estar no estoque com Caim, contando os suprimentos. Podia ouvir a risada infantil de Eva ao longe e os resmungos de Caim sobre ela o ter sujado de ketchup, ou coisa parecida. Sorriu sentindo-se mais calma, um pouco mais leve.
Ficou alguns minutos na cozinha, respirando fundo e tentando esvaziar a mente. Não devia ter discutido com Vincent. Não naquele dia, afinal, ele acabara de perder uma amiga. De repente se sentiu muito enojada de si mesma. Resolveu voltar para o balcão, conferir se Vincent ainda estava ou se já tinha ido embora. Se tivesse sorte, talvez ainda pudesse pedir desculpas. Não exatamente por discutir com ele – ele merecia, afinal – mas por fazer isso no momento errado. Estava já com um pé na porta da cozinha, pronta pra sair, quando deu de cara com ele.
— O que está fazendo aqui? Não pode entrar aqui... — disse, empurrando-o levemente em direção às mesas. — Vincent, você está bem? — perguntou preocupada ao notar o olhar distante desse sobre si. Franziu o cenho, a preocupação aumentando cada vez. — O que foi? Aconteceu alguma coisa? Quem era no telefone?... Sua família está bem? Encontraram Ian?... Fale alguma coisa!!!
Vincent piscou.
— Eu preciso ir. — disse, parecendo novamente ter recobrado a consciência. Piscou mais algumas vezes, sacudindo levemente a cabeça, como se tivesse estado desnorteado por um momento.
— O que aconteceu? — Cassandra já nem se importava mais em esconder seu histerismo. Estava preocupada, oras!
— Sua amiga... a Steawart... — respondeu o moreno e vendo Cassandra perder por completo a cor do rosto, provavelmente imaginando que coisas horríveis aconteceram a sua amiga continuou logo. — Relaxe, ela está bem. O problema não é com ela, é com o Ian...
Cassandra que havia relaxado consideravelmente ao saber que Alana estava bem, novamente se viu muito tensa ao saber que o problema era Ian.
— Oh meu Deus... — ofegou. — Ele está bem?
— Eu não sei. Não entendi direito o que sua amiguinha disse, ela estava falando muito rápido... — o Bennie suspirou, metendo as mãos nos bolsos da calça e estralando os ossos do pescoço. — Parece que nossa conversa vai ter que ficar pra depois, Cassandra. Sua amiga pediu para que eu fosse até o apartamento de vocês, talvez Ian esteja lá... Não sei. Não consegui entender nada além das palavras ‘Ian’, ‘minha casa’ e ‘imediatamente’. — bufou. — Já desconfiava da mentalidade da sua amiga apenas pelo fato dela se envolver com Ian, mas, sinceramente, não pensei que ela fosse tão mentalmente perturbada assim. Não conseguiu sequer formular uma frase corretamente antes de desligar o telefone na minha cara. Na minha cara! — botou ênfase, rolando os olhos. — Ian não tem sido uma boa influência para ela. Está abusada como ele.
— Ela estava nervosa com alguma coisa, Vincent. — Cassandra partiu em defesa da amiga, já tirando o avental por cima do corpo e deixando-o sob uma mesa. — Espere aqui, eu vou com você até lá. — disse e antes que Vincent pudesse sequer pensar em protestar – não que fosse – ela rumou pra cozinha sumindo de seu campo de visão.
Alguns poucos minutos depois ela estava de volta, e não estava sozinha.
— Ah. Veja só se não é a fedelha abusada. — Vincent sorriu com zombaria para uma Eva muito emburrada por estar tendo de ir embora mais cedo e, pior ainda, ir embora com o – como ela mesma gostava de chamá-lo em segredo – “filho das trevas”.
— Cale a boca. — resmungou a menina, aproveitando por estar próxima o bastante de Vincent para pisar no pé dele.
Vincent sentiu ganas de enforcá-la, mas Cassandra meteu-se entre os dois dizendo qualquer coisa sobre Vincent tomar vergonha na cara e não agir como um menino de cinco anos, e qualquer outra coisa sobre Eva se comportar.
— É melhor irmos logo antes que eu faça uma besteira. — murmurou ele, seus olhos brilhando estreitos para Eva que lhe deu a língua. — Veja se não faz xixi no meu carro, sim?
— Ei. Tá achando que sou o quê? Um cachorro por acaso? — rugiu Eva, ela tentou avançar contra o moreno mas os braços de Cassandra a seguraram. Vincent sorriu de lado, vencedor.
— Acho que não. Cachorros provavelmente são bem mais comportados que você. — piscou para a garotinha que só teve ainda mais vontade de pular no pescoço daquele filho das trevas. Cassandra bufou, encontrando alguma dificuldade para segurar Eva em seus braços, mas não deixando a menina se soltar.
— Será que podemos ir logo?... Alana está precisando de nós! — disse, lançando um olhar reprovador para os dois. A menção do nome da irmã, Eva se acalmou, ergueu o queixo para o Bennie e rumou para fora da lanchonete pisando firme, rumo ao carro parado frente a ela. Vincent teve vontade de rir da pose da menina, se perguntando como alguém tão pequena podia ser tão irritante e cheia de pompa como ela, mas a vontade passou diante do olhar reprovador de Cassandra e da sobrancelha erguida da mesma. O Bennie deu de ombros de modo, não se importando com aquilo, e caminhou para fora com Cassandra logo atrás.
[...]
Ele não reconhecia a música tocada na radio, mas não era como se realmente pudesse reconhecê-la uma vez que não estava prestando atenção. Seus olhos mantinham-se bastante atentos na pista, as mãos firmes no volante, mas os pensamentos corriam soltos. Precisava ver Lisandra.
Sorriu, pensando no quão terrível boa irmã Antonia era. O que era bom por um lado, era terrivelmente r**m por outro. Antonia era uma excelente Deeper quando queria ser, e por isso, uma incrível manipuladora. Certo que raramente usava de manipulação para fazer m*l a outros, menos ainda a seu irmão caçula em questão, mas ainda sim era uma manipuladora. Ela sabia como manipular através de palavras, e quando estava com a razão então... Aí não era nada difícil ela conseguir o que queria.
David lembrava bem do sorriso nos lábios da irmã uns minutos atrás, quando a deixou no loft em que estava com a família pelo período que passaria na cidade. Era um sorriso típico de quem dizia um ‘eu te disse’ vitorioso, e ainda sim cheio de orgulho dele por estar indo resolver as coisas com a namorada. E mais uma vez seus pensamentos se voltaram para Lisandra e não pode evitar o suspiro.
Ela tinha errado? Sim, tinha. Devia ter contado sobre Elizabeth. Devia ter acreditado que ele podia lidar com aquilo. Mas também, como culpá-la por ter medo? Ele mesmo vivia com medo o tempo todo. Medo de uma recaída. Não podia simplesmente sair jogando toda a culpa em Lisandra, quando ele mesmo tinha uma pequena parcela de culpa em tudo àquilo por nunca ter realmente pensado em como toda a situação, a sua situação, a afetava até aquele momento. Além disso, ainda havia o pequeno fato do ciúme. David sorriu de lado, enquanto manobrava o carro para fazer uma curva. Por mais que Lisandra não viesse a admitir isso nunca, ele sabia muito bem que ela tinha ciúmes de Elizabeth. Não era como se fosse um ciúme totalmente infundado, afinal de contas, bem ou m*l tivera um pequeno... caso, com a megera. Seu pior erro. Elizabeth o levou a ruína. Não tirava a culpa de si mesmo em relação às drogas, mergulhou no mundo do vicio por que quis, mas isso não alterava o fato de que fora Elizabeth a abrir as portas pra isso.
Apertou as mãos com mais força no volante.
Elizabeth. Conhecia bem a v***a, sabia bem o que ela queria, e sabia que não mediria esforços para conseguir. A obsessão dela por Ian era algo com o qual vinham lidando a anos, mas a coisa parecia um pouco diferente dessa vez, como se dessa vez Elizabeth estivesse realmente disposta a ir aosextremos para conseguir ter Ian. Soube disso pelo brilho no olhar dela, quando a viu mais cedo entrando na Ferrari com Ian. A garota estava completamente maluca, pirada de vez, e isso era tão nítido que David não conseguia não se preocupar com o amigo loiro e com todos eles, afinal, Elizabeth não parecia se importar nem um pouco em esmagar feito mosca quem se pusesse em seu caminho até Ian.
Respirou fundo, imaginando se algum dia a vida seria normal para ele, para todos eles. Riu secamente. Era tão obvio que não. Os problemas podiam ser resolvidos, mas eventualmente novos viriam. A Trindade era um ima para problemas, cada um em seu grau preocupante.
A música no radio mudou, tornando-se uma mais agitada. David tentou relaxar os ombros, sentindo toda uma tensão ali que não ia embora, assim como o vazio em seu peito. Sabia bem que vazio era aquele. O vazio da perda.
O peito comprimiu ao pensar em Yara. Sua prima. Sorriu levemente com a lembrança dela. Jamais esqueceria Yara, ou sua risada, ou o modo como ela estava sempre disposta em socar não apenas Ian, mas também ele e o próprio Vincent quando se comportavam – ao ver dela – como completos idiotas.
A cabeça latejou, sentindo todo o estresse do dia, toda dor, toda raiva, toda preocupação. Era simplesmente muita coisa para lidar. Imaginou como Ian devia estar, e sua preocupação apenas aumentou.
— i****a. — murmurou por sob o suspiro.
Ian era um i****a mesmo. Um grande i****a, na verdade, mas quem era ele para julgar certo?
David riu, a cabeça parecendo latejar mais a cada novo segundo.
— Somos todos grandes idiotas. — disse, novamente, balançando a cabeça em negativa e rindo sozinho por um tempo.
Quem olhasse de fora com certeza o consideraria um maluco, mas a verdade era que o riso era um meio para evitar as lágrimas. Antes uma risada falsa, do que lágrimas dolorosas. Suspirou, enfim recobrando o controle de si mesmo. Precisava relaxar.
— Preciso relaxar... — murmurou pra si mesmo, mudando a marcha, e, de repente, quase pisando no freio diante do pensamento que lhe chegou a mente. Diante da maneira que pensou em relaxar. Balançou a cabeça com força. Não. Não podia fazer isso. Não podia se render ao vicio. — Controle-se. — disse, novamente para si mesmo, querendo espantar aqueles pensamentos para longe. Não precisava de drogas, certo? É. Não. Não precisava.
Respirou fundo, entrando em uma rua estreita que levaria a uma grande estrada, um atalho mais rápido para a casa de Lisandra. Precisava ver Lisandra. Agora mais do que nunca. Lisandra sempre o ajudava quando sua mente ia de encontro ao vicio, as drogas.
Mas David reparou que pegar o atalho foi uma péssima idéia ao parar no sinal vermelho. Seus dedos ficaram batucando no volante ao som da música, seus olhos fixos no farol como se com o poder da mente fosse fazê-lo abrir. Bufou, sorrindo ao pensamento de cometer mais uma infração de transito, quando sobressaltou-se ao ouvir um batuque em sua janela. Havia um menino do lado de fora, vestido no que David considerava como ‘trapos’ e não roupas.
— O quê? — disse ao baixar o vidro da janela pelo pequeno botão na porta, o garoto – provavelmente de uns 14 ou 15 anos – deu um passo para trás diante do tom frio do ruivo, mas logo se recuperou, fungando com o nariz.
— E aí tio, o que vai ser? — perguntou com um sorriso de dentes amarelos. David franziu o cenho, mas demorou apenas uns segundos para entender ao que o garoto se referia.
Algum ponto da sua mente, provavelmente a parte boa, lhe alertou para não responder, para seguir em frente, ir para a casa de Lisandra. Mas não foi isso que aconteceu. Apenas nos dois minutos em que a David travava uma verdadeira batalha consigo mesmo internamente, ele deu uma olhada onde estava. Definitivamente um ponto de drogas e prostituição. Podia ver alguns jovens se drogando num canto mais escuro da rua, próximo a mendigos deitados em papelões, assim como via garotas de programa na outra calçada com quase nenhuma roupa as cobrindo.
“Saia daí”, sua mente gritou. Uma parte sua queria ir, queria ir embora, queria ir para perto de Lisandra. Mas havia também outra parte, uma que queria desesperadamente ficar.
“Você vai se arrepender disso depois... Não jogue fora o que conseguiu até agora. Você está indo bem... Está indo muito bem. Lute contra isso. Lute contra a vontade.” – uma voz em sua mente lhe gritava, sua consciência provavelmente, e David quase riu ao ver a voz parecia e muito com a da sua irmã mais velha.
— O que Antonia acharia disso? O que Lisandra acharia disso? — murmurou pra si mesmo. O garoto do lado de fora nada disse, provavelmente achando que o ruivo já estava chapado o bastante pra falar sozinho. Apenas sorriu, esperando.
Não precisou esperar muito.
O corpo de David tremia, uma parte sua gritando desesperadamente para sair dali, para ir embora... Mas os gritos iam ficando cada vez mais baixos, cada vez mais fracos, diante do pensamento de que precisava daquilo. Ao menos mais uma vez. Ele queria aquilo. Seu corpo parecia implorar por aquilo. Sua mente dando voltas diante da recordação de como era a sensação. Sentia-se livre. Leve.
— Preciso relaxar... — disse, novamente num sussurro baixo. E que melhor maneira de relaxar que não essa?, pensou. Um pensamento muito errado, mas aquilo não importava no momento.
Bateu com a cabeça no volante, ficando com a testa encostada no mesmo por alguns segundos. Sua mente era uma confusão só. Vozes gritando para não fazer aquilo, para sair dali, enquanto outras gritavam que era exatamente aquilo que ele queria, que ele precisava. Ele precisava, certo?
Pensou ter ouvido a voz de Lisandra gritando em sua mente que não, mas não tinha certeza, já não conseguia ouvir direito, não conseguia pensar direito. No fundo de sua mente sabia que ia se arrepender daquilo, que teria conseqüências incrivelmente ruins, mas...
— O que você tem aí? — perguntou numa lufada de ar, tornando a olhar o garoto do outro lado da janela. O sorriso do menino se alargou ainda mais, começando a lhe relatar as mercadorias que tinha aquela noite. David não reparou que o garoto por si só já estava mais do que drogado, talvez se tivesse reparado nos olhos dele, no quanto a droga fazia m*l ao corpo dele, a ele, teria recuado, teria ido para junto de Lisandra. Mas não. Ele ficou. Ficou e escolheu o que queria. Pagou o que devia. E então... Estava feito. Uma recaída que duraria a noite toda, que se arrastaria por alguns dias... David ainda não sabia, mas o resto da noite lhe passaria como um borrão devido ao efeito das drogas. Em algum momento da noite ele teria a impressão de ouvir um choro, muito parecido com o de Lisandra, em sua mente, mas não daria importância. Ele iria rir, não porque era engraçado, mas porque a droga em seu sistema faria parecer ser.
Era tarde pra voltar atrás agora.