[...]
Seus olhos azuis eram como dois pontos luminosos na escuridão do amplo escritório em sua casa. A luz bruxuleante da lareira acessa não era o suficiente para iluminar nem mesmo um terço da sala, a madeira precisava ser trocada pois já havia sido queimada quase toda, mas levantar de onde estava não era uma opção que consideraria. Oh, não. Só queria continuar ali, sentado na cadeira confortável e giratória atrás da grande mesa de mogno; um copo quase vazio em uma mão e a garrafa de whisky na outra.
O inchaço em seus olhos seria notável de imediato a qualquer um que se atrevesse a entrar ali e acender a luz, mas não se preocupava com isso. Havia estado chorando sim, e daí? Tinha esse direito. Pelo menos naquele dia, naquela merda de dia, ninguém ia se importar se Norton Frederick sucumbisse a dor e as lágrimas, se portando como o fraco que ele sempre foi e nunca se deixou mostrar.
Sua risada amarga preencheu o local, enquanto balançava o copo na mão, observando o liquido, de uma cor que o lembrava muito a mel derretido, com olhos estreitos.
— Fraco. — disse, rindo novamente para a escuridão do aposento. — Eu sou fraco.
Entornou o resto da bebida, largando o copo sobre a mesa e resolvendo que dali em diante tomaria direto da garrafa. Ora, ninguém estava vendo afinal, ninguém estava ali para dizer que estava se comportando feito um porco ao beber direito da garrafa. Riu novamente, ainda mais amargo, inclinando o corpo para frente e debruçando na mesa, a garrafa de whisky momentaneamente esquecida ao seu lado.
Gostava daquele escritório. Ou pelo menos, costumava gostar antes. Quando havia Ian por ali, quando havia Yara. Mas agora nenhum dos dois morava mais ali consigo. Ian fora o primeiro a se mandar, em um dia acordou e decidiu que tragar o mesmo ar que o pai se tornara insuportável demais até mesmo para ele agüentar, e ignorando os apelos da irmã para que ficasse, para que não os deixasse, arrumou as coisas e foi embora. Depois disso não demorou muito mais para Yara também não estar mais ali, não porque não queria mais, mas sim porque sua residência no último ano havia sido um quarto no hospital, em coma.
Coçando o nariz com as costas das mãos, Frederick deu uma fungada tentando segurar o choro, e fez uma expressão de nojo para si mesmo ao sentir o cheiro de álcool que exalava. Quanto já havia bebido desde que Fábio o deixara ali a cuidado dos empregados que espantou para longe de si aos berros? Muito; só não lembrava o quanto. Mas ainda não estava bêbado, sabia. Riu sozinho novamente, pensando que nem mesmo para ficar bêbado servia mais.
— Perdi minha esposa... — murmurou amargo, tomando a garrafa nas mãos e entornando um pouco mais da bebida. Tossiu. — Minha filha está morta... — continuou, a própria fala parecendo arranhar a garganta. — ... E meu filho me odeia. — gargalhou, em seguida deixando a testa ir de encontro a madeira na mesa. Suspirou exausto. — Eu sou um fracasso.
O que seu pai diria se o visse naquele estado lastimável?
— Provavelmente diria que não fiz nada senão provar que ele estava certo. — disse pra si mesmo, balançando a cabeça. — Tsc, tsc... Aquele velho i****a. — riu. — Nunca acreditou em mim. — soluçou. — Sempre acreditou que eu era um fracasso. Ele estava certo. — riu novamente, o riso misturando-se a um choro que não pode mais segurar.
Fazia muito, muito tempo que não chorava. A realidade é que não se lembrava da última vez que chorou. Talvez quando soube do coma de Yara. Havia chorado? Não lembrava. A mente estava começando a ficar confusa, e quase riu ao ver que, enfim, podia estar começando a ficar bêbado.
Pensou em Ian, em como as palavras dele no hospital doeram de uma forma que jamais pensou possível. Suspirou. Onde estava o filho? Iria deixá-lo também? Se arrepiou diante daquela hipótese. Não podia perder Ian, não mais do que já perdera.
*3*
Ergueu a cabeça, deixando os olhos vagarem pela escuridão do aposento até voltarem a mesa onde parou numa porta-retrato. Segurando a vontade de seu estômago de colocar todo o álcool ingerido para fora, pegou o porta-retrato, examinando a fotografia com atenção e com um pequeno sorriso. Mesmo estando escuro ele conseguia ver um pouco da fotografia; mesmo porque a havia admirado tantas e tantas vezes que já a decorara. Podia fechar os olhos e a imagem, nítida e clara, da foto se reproduzia em sua mente.
Na foto um Ian de cinco anos e uma Yara de seis estavam sorrindo para a câmera, cada um em uma bóia dentro da piscina, estando lado a lado e segurando as mãos. Era uma bela foto, e ele se viu perguntando qual dos empregados a havia tirado. Provavelmente uma das babás que tiveram na época. Respirou fundo. Deveria ser ele tirando a foto, ou ele na piscina, ao lado dos filhos. Mas não. Como sempre, as pouquíssimas fotos que tinha com os filhos foram tiradas todas em eventos, ou para fins profissionais. Nunca haveria uma foto dele em um momento de lazer com os filhos. Suspirou, querendo espantar aqueles pensamentos que lhe faziam ter mais raiva ainda de si mesmo, e concentrando-se na fotografia.
Yara estava uma graça naquele maiô vermelho com borboletas amarelas, o cabelo parecia mais escuro que o normal por estar molhado, e o seu sorriso era tão grande e brilhante que seria capaz de ofuscar as estrelas. Ian, por outro lado, tinha um bico muito contrário nos lábios, encarando a irmã com olhos chispados de raiva. Frederick imaginou se era porque, talvez, Yara o tivesse feito quase se afogar naquele dia, não intencionalmente, claro. Só queria pregar um susto no irmão caçula que usava um samba-canção verde com sapinhos amarelos desenhados e que tinha o cabelo loiro caindo na testa por estar molhado. Sorriu docilmente, olhando para os filhos na foto com atenção. Era impressionante que, mesmo com raiva da irmã, Ian nunca fora capaz de negar nada a ela, nem mesmo naquela idade. Imaginava que o filho talvez não quisesse tirar foto alguma pelo bico contrariado nos lábios, mas que bastou a irmã pedir que mesmo estando com raiva dela pelo susto que lhe pregara, segurou a mãozinha dela na sua e permitiu que quem quer que fosse batesse uma foto deles.
Ian era tão parecido consigo. Muito mais do que se permitia admitir, e Frederick não sabia se isso era algo bom ou r**m. Suspirou, recolocando a fotografia no lugar e tornando a encostar as costas na cadeira, pensando em onde o filho poderia estar. Estava preocupado com ele, mas aquilo não era novidade. Vivia preocupado com Ian. Seu sorriso se estendeu ao pensamento. Sempre se preocupara muito mais com Ian, do que com Yara. Não que não se preocupasse com a filha, se preocupava e amava muito, mas Ian... Ian sempre fora muito escorregadio, esperto demais para seu próprio bem desde sempre. Não importava quantos seguranças colocasse atrás dele, ele sempre conseguia despistá-los. Ian sempre fora muito seguro, muito auto-suficiente desde muito cedo, arrogante até o extremo, incapaz de aceitar ordens de outros que não de si mesmo. Yara, por outro lado, era completamente diferente. Insegura, dócil demais, compreensiva demais, por vezes até mesmo submissa demais. Tinha, claro, o temperamento Norton quando preciso, e quando se tratava do irmão caçula sempre explodia muito facilmente, chegando as vezes a ser bastante assustadora, mas no geral era calma e compreensiva sempre. Enquanto Yara parecia uma brisa suave, Ian era um tornado.
O sorriso de Frederick esmoreceu diante do pensamento de que nunca mais veria os filhos lado a lado, que não por fotos, para admirar todo o contraste que eles eram. Ian e Yara sempre foram diferentes, ao mesmo tempo em que em certas ocasiões pareciam iguais demais. O mais engraçado era o fato de que Ian sempre pareceu o irmão mais velho em diversas ocasiões quando na verdade sempre fora o caçula. Diversas vezes Ian protegeu a irmã, quando na verdade ele que deveria ser protegido por ela. Ian, assim como o pai, sempre fora uma rocha. Agüentava não apenas os próprios problemas e responsabilidades, como tomava para si os problemas e principalmente as responsabilidades daqueles que amava.
Frederick ainda guardava na memória o dia em que estava naquele mesmo escritório em sua casa, conversando com a filha sobre a responsabilidade dela em assumir as empresas. Não alimentava a esperança de que Ian ocupasse sua cadeira, naquela época, pois com a rebeldia do filho achava pouco provável que ele aceitasse. Tão concentrado em explicar a Yara, meio tensa no sofá ao canto, as responsabilidades e deveres futuros que não reparou o brilho triste no olhar da filha com tudo aquilo até que Ian abriu a porta, entrando na sala num rompante. Lembrava-se de ter dito algo ao filho sobre os bons modos que lhe faltavam por interromper a conversa daquele modo, mas suas lições de morais perderam-se quando Ian lhe disse, sem cerimônia alguma, que seria ele a ocupar a presidência das empresas Norton um dia, e não Yara, que esta seria apenas a maior estilista do mundo. Frederick lembrava-se de estreitar os olhos, lembrava-se vagamente de como a conversa seguiu dali em diante, mas lembrava-se, pelo menos, com clareza de perguntar a Ian se ele se considerava capaz daquilo, pois não estava com paciência para brincadeiras. Lembrava-se também do filho, muito sério e já sem nenhuma inocência no olhar, lhe responder a altura que seria um presidente como ele jamais fora. Aquilo, de certo, acertou ao ego de Frederick, mas mesmo enfurecido o patriarca da família limitou-se a sorrir friamente para o filho, deixando um “veremos meu filho, veremos” no ar antes de deixar a sala. A partir de então as exigências de ser um Norton a altura do nome que carregava à Ian triplicaram, o rapaz passava muito tempo na firma, e para surpresa e orgulho contidos de Frederick se saíra melhor do que se esperava. Ian era esperto, sagaz, tinha pulso e sabia ser tão frio e calculista quanto Frederick. Era o Norton perfeito. O único problema, e esse Frederick não previu, é que no meio da criação do Norton perfeito que era Ian, ele perdeu o filho para o ressentimento e raiva que o garoto passou a alimentar por si.
Nunca havia se perguntado, até então, o que levou Ian a querer o domínio das empresas Norton. Por um tempo, pensou que era apenas o sangue Norton falando alto. Só agora Frederick sabia a verdadeira razão do filho. Ian abrirá mão dos próprios sonhos, sonhos estes que ele não tinha conhecimento de quais eram e nem mesmo se existiam, para que a irmã vivesse o dela. Para que Yara pudesse trilhar seu caminho, seu próprio caminho, aquele que desejava e não o que fora imposto a ela. Ian abdicara dos próprios sonhos, das próprias ambições, para que a irmã tivesse pelo menos a chance de correr atrás das realizações dos seus.
Um gosto amargo subiu a boca de Frederick ao pensar que, talvez, fosse responsável pela infelicidade dos filhos. Sentiu ainda mais raiva, ainda mais ódio e mais desprezo pela sua pessoa. Será que nunca ia fazer nada certo? Por que, apesar de suas intenções sempre serem as melhores, acabava infligindo sofrimento a aqueles que amava? Que diabos de pessoa ele era? Será que ainda era capaz de trazer alguma felicidade a alguém, e não apenas lhe destruir os sonhos e esperanças?
Será que aquilo era Deus, ainda castigado pelo erro de dezoito anos atrás? Provavelmente, pensou.
*4*
Assustou-se com o barulho da porta de correr sendo aberta até bater nas laterais com força, a luz foi acessa e fechou os olhos, desacostumado, com a claridade repentina enquanto baixava a cabeça levemente. Soltou um resmungo, já amaldiçoando qualquer empregado que fosse que ousava incomodá-lo no momento.
Quando abriu os olhos, lentamente dessa vez, acostumando-se a luz e correu o olhar rapidamente pela sala não viu ninguém parado a porta pelo canto do olhar. Ergueu a cabeça, mas quando seus olhos focaram-se na frente de sua mesa, só teve tempo de ver o punho fechado que vinha de encontro a si e que o acertou em cheio e com tanta força que o fez cair da cadeira.
O golpe fora tão forte e certeiro que fez um corte no canto direito de sua boca. Frederick cuspiu o sangue no carpete, meio desnorteado e tentando firmar-se nas pernas. Mas o que diabos fora aquilo?
— Me diga que é mentira!
Frederick cerrou os olhos ao reconhecer a voz. Apoiou os cotovelos no chão, impulsionando o corpo para trás e erguendo o tronco. Ainda meio desnorteado pelo soco e pelo álcool, firmou as pernas e levantou-se com o máximo de dignidade que conseguia. Não se preocupou em erguer a cadeira atrás de si, preocupou-se apenas a encarar seu reflexo mais jovem, de pé com os punhos cerrados e dentes trincados, do outro lado da mesa.
— É bom que você tenha um bom motivo para ter feito oque acabou de fazer, filho. — disse em um tom de ameaça que não abalou em nada o jovem a sua frente.
Encararam-se nos olhos, azul contra azul, sem dizer nada por um segundo. Frederick, por um instante, ficou feliz por ver o filho ali. Isso significava que ele estava bem. Mas Ian não estava bem, e Frederick descobriu isso ao observar o estado do filho. Estava uma lástima. Talvez pior do que ele próprio estava. Mas não foi isso que fez o patriarca Norton franzir a testa em preocupação, mas sim aquele brilho que havia nos olhos do filho. Nunca fora capaz de decifrar as emoções do caçula com clareza, mas naquele momento era quase como se Ian – ainda ofegante pelo soco dado no pai – fizesse questão de que ele decifrasse tudo oque estava sentindo. Havia uma tristeza e dor que não conseguiam ser disfarçadas no olhar do filho e era obvio que era pela irmã; mas não fora isso que preocupou Frederick. Foi a raiva, a fúria queimando vivas naquele olhar que o preocuparam e o fizeram se perguntar o que havia acontecido que não era de seu conhecimento. O ódio no olhar de Ian era tão forte e intenso, que parecia que o corpo todo dele estava exalando aquilo, como num alerta para que ficassem longe.
— Diga que é mentira! — Ian tornou a exigir, e havia algo perigoso em suas palavras enquanto não desviava os olhos dos de seu pai.
Frederick suspirou. Muito calmamente ergueu sua cadeira, ajeitando-a de como que ficasse de frente para o filho e sentou-se. Deslizou a manga da blusa social branca – o paletó, assim como a gravata haviam sido tirados a muito tempo e largados em algum canto – na boca, tentando parar o sangramento enquanto encarava o filho.
— Não faço idéia do que está falando, filho. — disse, sua voz soando fria e indiferente para não que não soasse enfurecida pela afronta daquele moleque em lhe dar um soco. Sentia-se tão destruído que não queria nem mesmo discutir com o filho naquele instante, por mais que achasse que aquele moleque merecia porque, afinal, era seu pai e merecia algum respeito. Por Deus, Ian o havia socado! Onde estava o respeito nisso? — Pode clarear minha mente? — sugeriu com descaso, sentindo um latejar na parte lateral da cabeça. Dor de cabeça, pensou com desprezo, que ótimo.
Por um segundo Frederick teve a impressão de que o filho controlou-se muito diante de uma vontade de socá-lo novamente; as mãos de Ian fecharam-se com mais força e seus dentes rangeram um no outro de modo desconfortável. Por fim, o rapaz apenas respirou e expirou lentamente, fechando os olhos no processo. Quando tornou a abri-los e tristeza e dor haviam sido camuflados em seu olhar, e só havia raiva e ódio. Ele deu um passo paro o lado, indicando num gesto de cabeça a porta aberta para o pai. Frederick franziu o cenho, mas seguiu o olhar do filho.
Um minuto se passou sem que nada acontecesse, e o senhor Norton já estava pronto a interrogar o filho sobre do que se tratava aquilo tudo quando o barulho do que parecia saltos contra o chão de madeira foi ouvido. Tornou a atenção para a porta, de onde Ian não despregara os olhos por um segundo sequer, e aguardou. Após um segundo, uma nova figura atravessou a porta aberta e fez seu caminho com a cabeça baixa até o meio do escritório, onde parou sob o tapete persa no chão. Ela – e Frederick sabia que era mulher pelo tamanho e corpo da pessoa – vestia um casaco bege comprido, como um sobretudo que lhe ocultava toda a vestimenta por baixo dele, saltos não muito altos, mas também não tão baixos, e delicadas luvas brancas, mas que pareciam boas aquecedoras, nas mãos. Seu cabelo era curto e n***o, um corte bem feminino em Chanel, mas Frederick não conseguia ver seu rosto direito pois ela permanecia com a cabeça tão baixa quanto possível, os olhos fincados no chão. Mesmo assim, o tom da pele dela fez lhe subir um arrepio pela espinha e lhe despertar um estranho sentimento de déjá’vu.
— Já faz muito tempo, né, Frederick?
O sangue de Frederick gelou.
— Essa voz... — sussurrou baixo, os olhos antes estreitos arregalando-se cada vez mais.
Conhecia aquela voz. Estava gravada em sua mente. Uma voz doce, suave como uma brisa fresca de primavera.
A mulher parada a alguns poucos metros de distancia, começou a erguer o rosto, muito lentamente, e Frederick pegou-se inclinando o corpo um pouco para frente em antecipação, sua respiração ficando presa na garganta. Quando os olhos azuis dele chocaram-se com aqueles olhos de coloração tão peculiar que por vezes pareciam azul-chumbo, dela, Frederick sentiu que seus olhos já muito arregalados estão prestes a saltar das órbitas.
Sua respiração travou, seus olhos tremeluziam em diversas emoções diferentes, seu rosto perdeu a cor em segundos, tornando-se muito pálido como se estivesse diante de um fantasma. De certo modo, ele pensou com amargura, estava.
— Elain. — soltou num fôlego só, vendo a mulher a sua suspirar pesadamente em concordância. (...)