— Ell, não posso ter reuniões hoje. Quero que notifique o conselho de que não teremos a assembleia, que será adiada para daqui a três dias.
Minha assistente anota o que digo, e parte para realizar a tarefa que lhe dei. Enquanto eu, caminho vagarosamente até a minha sala, apreciando a decoração sofisticada e impessoal do meu andar. Entro, e admiro a vista estonteante do centro da cidade, proporcionada pelas vidraças, e pela altura do último pavimento do prédio.
Um lampejo de movimento chama a minha atenção, e me foco em Ícarus, sentado displicentemente em uma poltrona de couro. É impossível não reparar em seus cabelos pretos levemente despenteados, sua pele bronzeada, os músculos que se insinuam no terno feito sob medida, em seus olhos verdes profundos e seu sorriso despreocupado ao me ver.
Embora o terno seja extremamente elegante, e tenha o objetivo de fazê-lo parecer sofisticado, as características dele o fazem parecer indomável, quase como eu imaginaria Poseidon, o deus grego dos mares, selvagem e incontido como o mar, escultural e belo além da compreensão. E por mais que a combinação deva destoar, na verdade, apenas o faz mais fascinante do que deveria ser humanamente possível.
Há seis meses o contratei como consultor por ser extremamente instruído nos crimes em que estamos envolvidos, no entanto, é sua habilidade em "legalizar" negócios ilegais que me interessa de verdade. Enquanto minha família acredita que o mantenho porque quero expandir nosso império criminoso, na verdade, o tenho por perto com a intenção de diminuir cada vez mais a nossa participação em atividades ilícitas até que sejamos um grupo de empresas totalmente dentro da lei, enquanto apago qualquer rastro do que somos realmente.
Cerca de um ano e meio depois que assumi a posição de Christian, antes mesmo que Ícarus fosse meu consultor, eu o procurei em busca de um conselho para me livrar do controle de algumas das atividades mais execráveis que a minha família estava envolvida.
Seu plano duvidoso era dividido em quatro partes. Primeiro eu levantaria a receita gerada pelas vendas das drogas, pela venda das mulheres e pelos bordéis de luxo sob nosso comando, valor das estruturas e equipamentos usados nas operações, então colocaria um preço e condições numa oferta de venda bem atrativa.
O segundo passo era encontrar um comprador para os negócios. Alguém que já houvesse tentado tomar o controle de nós pela força, e houvesse falhado, e então fazer a essa pessoa uma proposta que parecesse irrecusável. Definir um negócio lícito, seguro e lucrativo. Ao mesmo tempo, em que garantisse com o nosso amigo, o Excelentíssimo Senhor Presidente Jefferson Emannuel Mayers, que a origem do dinheiro não seria apurada.
Com o comprador garantido, a segurança de que não haveria suspeitas sobre o dinheiro e o alvo do investimento determinado, a terceira etapa era convencer nosso conselho, meus dez tios e cinco tias, de que precisávamos nos desvencilhar desses crimes, para preservar nossa imagem como família perante a alta sociedade, e nossos outros negócios, que eram maiores e mais lucrativos.
Acertados todos os detalhes, e aprovada a venda pelo nosso conselho, eu deveria fechar o negócio e investir o dinheiro em um sólido negócio legal, e esse seria o quarto e último passo.
Embora eu tenha sido cética com relação a essa estratégia, eu adaptei e apliquei cuidadosamente cada passo, tão cuidadosamente que levei um ano para terminar, e mesmo com todos os percalços, o plano foi um tremendo sucesso.
Eu não pude deixar de ver o talento latente dele, e o quanto sua ajuda seria indispensável para o funcionamento do meu plano secreto de legalizar as operações da minha família. O que fiz foi mentir para o conselho, alegando que ele nos ajudaria a ganhar território no mundo do crime, o contratei sob esse pretexto. E desde então, há seis meses, ele tem sido um aliado valiosíssimo em minha cruzada particular.
O que eu não esperava, é que nesses seis meses Ícarus se tornaria mais que um consultor de negócios, não imaginava que ele viria a ser um grande amigo. E é justamente por termos construído essa relação de amizade, que ele tem autonomia para estar no meu escritório sem que eu precise estar lá para autorizar. Então não me surpreendo ao encontrá-lo completamente a vontade no sofá de couro, aproveitando o silêncio para ler um dos inúmeros livros da minha estante.
Ele me olha atentamente e pousa o livro ao seu lado, seu sorriso despreocupado dá lugar a uma expressão de leve curiosidade e ele começa com as indagações em tom debochando.
— Noto a ausência de um certo brilho em você hoje…
Sem o mínimo humor para brincadeiras, o interrompo, dando-lhe logo a resposta que ele quer.
— Entreguei o acordo de divórcio para Dominicke hoje, e ele não gostou.
O deboche some de sua expressão, e o que vejo em seu lugar é um olhar de compaixão que me faz querer chorar mais uma vez em menos de três horas. Seu tom é suave quando fala as próximas palavras.
— Como está se sentindo?
Dou um suspiro cansado, e pela primeira vez no dia me permito pensar em como realmente me sinto.
— Estou com o coração partido, mas sinto alívio por finalmente ter feito isso. Só gostaria de não ter que enfrentar uma briga logo cedo, me sinto exausta, e o dia m*l começou.
Percebo o quanto isso soa verdadeiro, e o quanto essas palavras queriam sair de mim. Não tinha me dado conta do quanto precisava desabafar, expor meu sofrimento a alguém que não julgasse meus sentimentos como fraqueza. Acabo me surpreendendo ao notar pela primeira vez que Ícarus é essa pessoa, que o filho do mafioso, negociador da máfia e meu ex-pretendente, é a pessoa em quem confio para falar sobre o que sinto sem medo de julgamentos.
Dou um leve sorriso com a constatação, e o olho com um carinho que jamais pensei sentir por ele. Ele retribui o sorriso, que se desfaz logo em seguida, quando ele retoma as perguntas.
— Dominicke vai assinar?
Minha réplica vem rápido, sequer preciso pensar para responder a esse questionamento.
— Não é como se eu concedesse a ele outra opção.
No entanto, Ícarus não se convence de que eu tenha tal poder sobre essa situação.
— Mas acredita de fato que ele não irá relutar em assinar?
Suas íris cor de mar estão curiosas sobre o assunto, quase curiosas demais. Mas não me incomoda partilhar tudo com ele.
— Até um cego veria que é inconcebível continuarmos como estamos