Nada no mundo me preparou para o momento em que Katryn pediria o divórcio. Katryn, que valoriza família acima de toda e qualquer coisa. Não consigo relacionar essa Katryn fria e indiferente à minha Kat, que por mais ocupada que fosse, ainda era uma mulher doce.
Ouvi-la falando sobre o acordo de divórcio com tanta clareza, com aquela postura altiva e voz calma, me faz perder o controle e iniciar um conflito que só nos magoa e nos afasta ainda mais.
Não posso evitar me ressentir da frieza com que ela trata do assunto, e não consigo evitar jogar isso contra ela, acusando-a de destruir a nossa família. No entanto, inesperadamente, Katryn atira em minha cara "os casos" que algumas pessoas acreditam que venho tendo, virando contra mim a acusação que fiz ainda a pouco.
Embora seja plausível que eu esteja traindo minha esposa, as mulheres e os lugares são apenas disfarces para o fato de que estou ajudando em uma investigação sobre os muitos negócios ilícitos da família do meu falecido sogro. Se houvesse uma escolha, eu jamais faria isso, não por ter qualquer apreço por essas pessoas, mas porque sei que isso dificulta a vida de Katryn. Mas quando fui procurado por um agente federal, alegando que poderia prender minha mulher, e ameaçando o futuro da minha filha, não pensei duas vezes antes de entrar nessa operação, e fornecer todas as informações de que disponho, e me empenhar em obter mais provas pertinentes.
Eu sempre soube o quanto isso era arriscado para a minha relação pouco estável com Kat, mas com ela trabalhando incansavelmente o tempo todo, supus que não estaria prestando atenção em mim o bastante para notar minhas saídas ocasionais.
Nunca me ocorreu que ela soubesse sobre às mulheres com as quais tenho me encontrado, e muito menos que pediria o divórcio por isso. Não importa que haja uma explicação para o que minha esposa pensa que sabe, não posso dar essa explicação, ou verei tudo que mais amo em perigo novamente, e não posso suportar essa ideia.
Mesmo que seja de uma baixeza tremenda, numa tentativa de fazê-la mudar de ideia através do remorso, jogo em sua cara o quanto tem sido ausente, o quanto tem me escanteado, mesmo que não seja sua culpa ter de assumir a posição que antes pertencera ao pai dela.
Ainda assim, tudo o que consigo é uma resposta indiferente. E mesmo depois de a ameaçar, algo que sei que ela não tolera, tudo o que recebo é uma dispensa silenciosa. Ela sequer se dá o trabalho de olhar para mim, ou de pedir licença, tudo o que faz é desviar o olhar e ficar em silêncio, como se eu não valesse nem a cortesia de um olhar, ou umas poucas palavras.
À medida que seu recado vai se fazendo claro, o peso dessa conversa ameaça me esmagar, e não tenho escolha, a não ser fugir do escritório dela. Rumo para a sala de música, e para o piano, que tem sido meu único conforto desde que precisei começar a mentir para a mulher que eu amo.
Meus pensamentos estão tão dispersos, que não consigo extrair nenhuma música do piano, apenas aumentando a minha frustração. Me lembro do envelope pardo largado em uma mesinha de canto na sala e o pego, me preparando para a tortura que será ler esse acordo, estudá-lo, pensar nele. Abro o maldito envelope e começo a pior leitura da minha vida. Ainda que a escrita seja impecável, obedecendo todas as normas, cada palavra gravada ali parece indescritivelmente errada. Nossos nomes de solteiro parecem inadequados, e todos os termos descritos, embora sejam elaborados para me favorecer, parecem mais como uma sentença de punição.
Em suma, saio do casamento com a cômoda quantia de quinhentos milhões de dólares, uma mansão há meio quilômetro da nossa atual residência, um edifício chique de vinte e cinco andares no centro da cidade, um sobrado em Londres e uma quinta na Itália. A guarda de Marianne deve ser compartilhada entre mim e Katryn, e não há a necessidade de pagar nada para ela. Devemos manter as aparências por um ano, morando na mesma casa, comparecendo a eventos, sendo vistos juntos esporadicamente, até anunciarmos um divórcio amigável, de comum acordo entre as partes, e então, voltamos a usar nossos sobrenomes de batismo. Está minuciosamente descrito o que levarei do meu casamento, exceto o coração partido, que já me persegue antes que eu assine o documento.
Entretanto, os trezentos e sessenta e cinco dias em que dividiremos a residência são um raio de esperança, uma fugaz esperança de que nesse tempo terei cumprido a minha missão, salvado Katryn e o futuro de Marianne, e finalmente poderei contar à minha esposa toda a verdade. Não espero que ela volte a confiar completamente em mim depois que souber de tudo, mas acredito que a realidade dos fatos nos proporcionará uma segunda chance para recomeçarmos.
Mesmo que assinar o divórcio cause uma dor tão grande que ameaça me paralisar, chegou o momento de fazer o que é necessário. Deixo minha rubrica em cada uma das páginas do robusto acordo, devolvo-o ao envelope e o levo até o escritório de Kat. Coloco-o em cima da mesa e saio, planejando o que farei nos próximos doze meses, tanto para acelerar o cumprimento da tarefa que devo realizar, quanto para amenizar o ressentimento que minha mulher tem em relação a mim.
Com os ânimos renovados, volto ao piano, conseguindo extrair dele minha música preferida. A melodia leva meus pensamentos até o dia em que Katryn e eu nos casamos. A cerimônia, religiosa demais para uma família de mafiosos que trafica pessoas. O padre não parecia se incomodar com isso, talvez não soubesse, ou não se importasse, mas eu me importava.
Eu não queria fazer parte disso, não queria entrar naquela família. Ainda que eu fosse me tornar apenas um acessório decorativo, para emprestar um ar de respeitabilidade a Kat, eu não queria estar sequer no mesmo ambiente que àquelas pessoas. Mas eu queria Katryn, queria desesperadamente desde o primeiro momento em que a vi, quando a vivacidade de seus olhos me prendeu, além de qualquer possibilidade de escape.
Em todos os momentos do nosso grande dia eu me perguntava se estava fazendo a escolha certa, e me pegava pensando em desistir do casamento, mas bastava olhar para ela, para aqueles olhos, para a postura calma e determinada, e eu ganhava um lindo motivo para persistir em minha decisão.
E são os olhos dela a causa de eu não poder desistir, de não poder abandonar essa missão e deixar que ela perca sua liberdade, ou de eu não poder desistir da nossa relação. Eu não saberia mais viver sem aquele olhar, sem os sorrisos, a calma, a confiança. É por isso, e pela segurança e felicidade de Marianne, que preciso não apenas tentar, mas conseguir.