Com o passar dos dias, as coisas começaram a parecer um pouco mais organizadas, ao menos de um modo mais geral: Sophie realmente ficaria com a Fazenda e com o gado, além de uma quantia em dinheiro - que pelas contas dela, seria o suficiente para se manter e manter as despesas da Fazenda em dia até pegar o jeito da coisa - e Lóren e a Mãe, dividiriam os outros imóveis e também as aplicações financeiras e valores em dinheiro de Richard Bones.
Lóren era a alma livre da casa... Claro que parecia que quando era mais jovem, que era a mais apegada, mas assim que provou do gosto da liberdade, não se permitiu mais ficar presa nem a lugares e muito menos à pessoas. Havia deixado Douglas, o namorado do tempo do casamento há poucos meses e agora vivia sozinha, pelo menos oficialmente. Ela trabalhava como designer e tinha uns cinco gatos, vivia na cidade em um apartamento pequeno, mas pensava em se mudar para a “cobertura burguesa” do papai na cidade assim que fosse possível.
Martha estava realmente bem decidida a ir para a casa de praia, disse às filhas que precisava de tempo... Claro que todos entendiam isso. Martha era uma mulher jovem, bem mais jovem do que Richard. Ela estava beirando os sessenta anos com leveza. A dor da perda ainda era muito, muito recente para ela, afinal, conhecera Richard quando ainda era uma menina, e havia casado e tido as filhas cedo, vivendo muito pouco. Confessou às filhas que algumas vezes se arrependeu da escolha, e disse que depois que se acostumasse com a ideia de estar sozinha - algo inédito para ela, até então - ela aproveitaria bem o tempo, a sua saúde e também todo o dinheiro que tinha, disse às filhas que viajaria bastante, conheceria mais lugares, culturas e pessoas e sim, isso tudo também foi bem recebido tanto por Lóren quanto por Sophie, as duas só queriam a felicidade da mãe.
E assim, em um pouco mais de quarenta dias, a Casa Grande da Fazenda estava praticamente vazia: apenas Sophie andava por lá, de um lado para o outro, arrastando-se como um fantasma por entre os cômodos bem conhecidos dela. Ela cuidava das necessidades básicas dela e da pequena Bibiana, cuidava de sua gestação e tentava colocar-se à par de toda a situação da Fazenda, o que era bastante trabalho para uma única pessoa, por mais empenhada que ela estivesse. Aos poucos, o destino de toda a família Bones ia sendo definido...
Provavelmente fora o tempo que parecia arrastar-se lentamente na Fazenda ou mesmo o lugar, que trazia tantas e tantas lembranças, mas Sophie acabou percebendo, tão logo a casa esvaziou-se, que não seria tão fácil quanto ela havia imaginado. Não pelo trabalho em si, mas pela falta de muitas pessoas que faziam parte daquele lugar, ao menos em sua lembrança e é claro que a principal pessoa era Vicente e Sophie perguntou-se onde é que ele estava por mais de uma vez, por várias vezes...
...
O maldito despertador, mais uma vez. m*l havia dado tempo de descansar um pouco entre um turno no bar e o outro na fábrica e já era hora de voltar ao trabalho: aquilo tudo parecia que nunca teria fim. Eram dias como aqueles que faziam com que Vicente sentisse ainda mais falta da vida que um dia havia sido dele, na Fazenda, com Sophie, Lóren, Richard e a Dona Martha. Apesar do trabalho ser pesado, havia tempo para descansar e muito da vida para desfrutar ao lado daquela família que ele por muito tempo, considerara a sua família também.
- Maldita hora que eu fui embora - ele resmunga, um pouco inconformado com as suas próprias decisões.
- O que foi, meu filho? - a mãe aparece na porta do quarto.
- Nada - ele suspira - hora de voltar ao trabalho...
- Sabe que não precisa fazer isso - ela diz.
- E você sabe, tão bem quanto eu, que eu preciso sim, senhora - ele sorri - e está tudo bem.
- Se você diz - ela dá de ombros e vai para a cozinha: ao menos isso ela sabe que pode fazer pelo filho, preparar as suas refeições.
Vicente espreguiça-se longamente. Tudo o que ele mais detestara a sua vida inteira, era exatamente o que ele tinha agora: de volta à casa da mãe, com um padrasto um tanto abusivo com ela, com gritos, com incômodos, sem nenhuma privacidade, nem mesmo em seu próprio quarto. Escolhas - ele suspira enquanto vai para o banheiro - um dia eu fiz uma ou outra certa e depois, fiz uma ou outra errada... E cá estou.
Desde que voltara para a capital, ele já fizera muitas coisas e agora, ele dividia seu tempo entre um turno de seis horas em uma grande fábrica de acessórios de couro, como supervisor de logística e um turno de mais seis horas em um bar, que era de um velho amigo dele, do tempo da adolescência, Marcelo. Ele acabara cursando apenas o curso técnico em veterinária, mas não conseguira um bom emprego naquela área dentro da capital e por isso, havia desistido da graduação. Claro que muito provavelmente, Sr. Richard ficaria um pouco decepcionado com isso mas, não havia muito que ele pudesse fazer.
Quase todos os dias, principalmente quando acordava e tudo o que conseguia ouvir era o infernal barulho da linha de trem, dos carros e das gritarias da vizinhança, Vicente arrependia-se de ter voltado e então, ele pensava em correr para a Fazenda mais uma vez e isso o fazia lembrar-se que aquilo que ele mais amava naquele lugar, também traria a dor de saber que a pessoa que ele mais amara, durante toda a sua vida, estava casada com outro homem...
- Tá estranho hoje – a mãe lhe diz assim que ele senta-se a mesa.
- Cansado – ele responde.
- A que horas chegou? – ela pergunta.
- Quase às duas – ele confessa – aí tomei um banho e ainda levei um tempo para dormir...
- Até quando vai levar a vida desse jeito? – ela parece séria.
- Acho que nós dois já tivemos essa conversa – ele sorri - estou dando um tempo, logo eu acho um rumo e está livre de mim.
- Eu não quero que vá embora - ela protesta.
- Mas eu vou - ele responde - e nós dois sabemos muito bem disso, sabemos que não tem como dar certo e que é provisório.
Ela desiste: não vai querer ela, dizer para um homem daquela idade o que ele deve ou não fazer ou ainda, impor o que ele pode ou não pode fazer de sua vida, seu tempo e tudo mais. E sim, no fundo ela bem sabe que o filho tem razão: sempre que ela tem um namorado, simplesmente não funciona bem se Vicente está em casa.
A verdade era que nem mesmo ele sabia o que ele deveria fazer de sua própria vida, afinal, o seu coração lhe dizia para voltar e a razão, para se manter longe. Se ao menos ele pudesse saber o que era que estava acontecendo... Talvez se sentisse melhor, vai saber. Tratou de terminar a sua refeição e seguir para o seu trabalho: havia muito o que fazer por lá, o suficiente para manter a cabeça ocupada para que não ficasse pensando em coisas que haviam ficado, há muito tempo, no seu passado.